Nos últimos meses a sociedade brasileira debruçou-se em uma ferrenha discussão atinente aos planos de saúde. Ainda que se trate de contrato regulamentado há mais de 20 anos, desde a Lei 9.656/1998, a reviravolta promovida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em sua jurisprudência fez com que tal contrato ganhasse relevante discussão no cenário nacional.
Tudo começou quando a 4ª Turma do STJ, ao julgar o Recurso Especial n. 1.733.013 PR (DJe: 20/02/2020), mudou o entendimento até então adotado por aquele órgão fracionário (overruling) e passou a entender que o rol de procedimentos e eventos em saúde elaborado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) é taxativo, razão pela qual não haveria obrigatoriedade de os plano de saúde custearem procedimentos ou tratamentos não previsto naquela relação. Ressalte-se que, de acordo com a doutrina, o overruling é uma técnica de superação do precedente aplicável às hipóteses em que se identifica há modificação das balizas fáticas e jurídicas existente à época da formação do precedente (LOPES JR., Jaylton. Manual de processo civil. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2022. p. 936).
Embora houvesse entendimento robusto do STJ reconhecendo que o rol de procedimentos e eventos elaborados pela ANS era apenas exemplificativo, a solidez dos argumentos lançados no julgamento do Recurso Especial n. 1.733.013 PR não poderia ser deixada de lado.
O fato de se tratar de rol exemplificativo ou taxativo é ponto fundamental na interpretação de tais contratos. Se adotado o entendimento de que o rol seria apenas exemplificativo, ao menos em tese, seria possível que os planos de saúde fossem obrigados a efetuarem o custeio de outros eventos, ainda que não previsto no rol da ANS. Foi isso, inclusive, que ocorreu durante vários anos. Amparados no primado da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal) e no direito à saúde (art. 6º, caput, da Constituição Federal), era absolutamente comum que Juízes desconsiderassem o rol da ANS no bojo de processos judiciais, desde que houvesse indicação médica acerca da imprescindibilidade do tratamento. No entanto, esta mesma abrangência não seria possível se se adotasse o entendimento de que o rol seria apenas taxativo, pois, tratando-se de rol restrito, contratualmente, desapareceria a obrigação de os planos de saúde custearem tratamentos nele não previsto.
Nada obstante o overruling promovido pela 4ª Turma do STJ, a 3ª Turma do STJ continuou reafirmando o entendimento acerca do caráter exemplificativo do rol, como se observa, por exemplo, do Recurso Especial 1.876.630 SP (DJe: 11/03/2021). Saliente-se que a 3ª e a 4ª Turma do STJ, ambas componentes da 2ª Seção do STJ, tem competência para julgar matérias atinente ao direito privado.
Instaurava-se, com isso, uma das controvérsias mais importantes a serem dirimidas pelo STJ, com reflexos em milhares de contratos, que foi solucionada nos Embargos de Divergência em REsp. 1.886.929 SP e 1.889.704 - SP (DJe: 03/08/2022). Na oportunidade, fixou-se a seguinte tese:
1 - o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar é, em regra, taxativo; 2 - a operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com tratamento não constante do Rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado ao Rol; 3 - é possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra Rol; 4 - não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do Rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que (i) não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao Rol da Saúde Suplementar; (ii) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como CONITEC e NATJUS) e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS.
Assim, em regra, prevaleceu a taxatividade do rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar.
É evidente que, em uma primeira análise, do ponto de vista da defensa do consumidor que conta, inclusive, com previsão constitucional no art. 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal , a solução dada pela 2ª Seção do STJ pode não agradar. A despeito disso, o imbróglio merece uma análise ampliativa, para além do diploma consumerista, e que perpassa, necessariamente, pelas razões que embasaram a decisão da 4ª turma do STJ e que, posteriormente, justificou o desfecho dos Embargos de Divergência acima referidos.
De início, não se pode negar a opção do legislador em conferir à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) a competência para elaborar o rol de procedimentos e eventos em saúde, que constituirão referência básica para os fins do disposto na Lei n 9.656, de 3 de junho de 1998, e suas excepcionalidades (art. 4º, inciso III, da Lei 9.961/2000), com previsão semelhante, inclusive, na Lei dos Planos e Seguros de Saúde, que apregoa no sentido de que a amplitude das coberturas, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será definida por normas editadas pela ANS (art. 10, §4º, da Lei 9.656/98).
Neste cenário, se se afirmasse que o rol seria apenas exemplificativo, e se isso fosse utilizado como fundamento suficiente para que ele fosse afastado em demandas judiciais tão somente diante da indicação de tratamento médico nele não constante, a própria razão de ser do rol de procedimentos e eventos deixaria de existir, o que fulminaria a competência prevista no art. 4º, inciso III, da Lei 9.961/2000 e no art. 10, §4º, da Lei 9.656/98.
O argumento principal que embasa o entendimento pela taxatividade do rol, no entanto, reside no equilíbrio contratual. É preciso, antes de mais nada, que se parta do pressuposto de que as operadoras de plano de saúde não se confundem com o Estado, não tendo, portanto, o dever de universalidade que figura como princípio fundamental do Sistema Único de Saúde (SUS) (art. 196, caput, da Constituição Federal). Das operações de plano de saúde pode-se exigir, como regra, as prestações correspondentes ao valor mensal pago a título de mensalidade para o plano, na medida em que o cálculo destas mensalidades, ao menos em tese, é feito com base nos riscos que podem vim a ser suportados pelas operadoras. O valor da mensalidade está atrelado aos procedimentos e eventos previstos no rol. Na medida em que se altera o rol, também se altera, proporcionalmente, o valor da mensalidade. É inegável a correlação que há entre o binômio valor da mensalidade versus procedimentos e eventos constantes no rol. Não por outra razão o percentual do aumento das mensalidades também é regulado pela ANS, que deve considerar os procedimentos e/ou eventos inseridos no rol, que é constantemente atualizado.
Admitir que o rol seja apenas exemplificativo importa na quebra deste equilíbrio contratual, porquanto abre-se a possibilidade de que a operadora venha a ser obrigada a custear procedimento ou tratamento que não fez parte da base de cálculo do risco daquele contrato, transformando a contratação em um negócio jurídico incerto, de risco indeterminado, o que pode levar, inclusive, à derrocada das operadoras de plano de saúde, que não possuem recursos infinitos, o que seria ainda mais prejudicial para os consumidores.
Enfim, a taxatividade do rol aparenta ser a medida mais consentânea com o princípio do equilíbrio contratual, bastante caro para a manutenção da própria contratação.
O ponto final desta celeuma, no entanto, certamente não foi colocado pelo STJ no julgamento dos Embargos de Divergência em REsp. 1.886.929 SP e 1.889.704 - SP (DJe: 03/08/2022).
Isso porque há no STF diversas demandas (ADIs 7088, 7183 e 7193 e ADPFs 986 e 990) nas quais se discute a constitucionalidade de dispositivos da Lei 9.961/2000 e da Lei 9.656/1998, que possuem direta relação com o fato de o citado rol ser exemplificativo ou taxativo.
Além disso, em 21/09/2022, foi aprovada a Lei 14.454/2022, que alterou a Lei 9.656/1998 e, na prática, derrubou a taxatividade do rol da ANS, na medida em que, agora, os planos de saúde poderão ser obrigados a financiar tratamentos de saúde que não estiverem na lista mantida pela ANS. De acordo com o art. 10, §13, da Lei 9.656/1998, na hipótese de tratamento ou procedimento não elencado naquele rol, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que:
a) exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou b) existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.
Trata-se de evidente reversão jurisprudencial ou reação legislativa (superação legislativa da jurisprudência) promovida pelo Congresso Nacional, que busca superar o entendimento do STJ tomado nos Embargos de Divergência acima referidos.
De todo modo, certamente será do STF a última palavra acerca do tema, a quem cabe, em última análise, a verificação da constitucionalidade da matéria. Por ora, no entanto, é certo que as alterações promovidas pela Lei 14.454/2022 mitigam o entendimento do STJ.