Foi com incredulidade que a maior parte dos brasileiros acompanhou os eventos nefastos ocorridos em Brasília em 08.01.2023. Uma horda de manifestantes invadindo e promovendo destruição de patrimônio público, agressão a policiais e até a animais no local. Os atos foram praticados com lastro na ideia de uma liberdade de expressão ou de manifestação. Há quem defenda a maneira como tais manifestações foram conduzidas. Lamentavelmente, até entre juristas vemos posicionamentos favoráveis à tais barbáries, como a justificativa do exercício de liberdade.
O problema é de simples compreensão: em uma sociedade civilizada, a liberdade não existe de forma plena, absoluta e irrestrita. O Estado utiliza seu aparato para garantir a manutenção da ordem pública, e a consequência é a mitigação da liberdade dos indivíduos.
Os eventos que iniciaram ainda nas eleições de 2022, levam à reflexão do chamado paradoxo da liberdade, expressão difundida pelo falecido historiador do Direito, e professor da Universitá di Macerata, Mario Sbriccoli. A discussão reside na oposição ao bem político que é a segurança dos cidadãos (segurança pública), e o inalienável direito do indivíduo à sua liberdade inviolável.
Em suma: todos desejamos liberdade, mas ao mesmo tempo, almejamos ordem. Imaginemos um cenário onde todos exercem sua liberdade da forma que lhes parecer mais apropriado. Onde ficaria a ordem? Logo, a liberdade do indivíduo encontra limitações pela necessidade de imposição de ordem pelo Estado.
Pode o Estado reduzir ou suspender as liberdades dos cidadãos para conservar a si mesmo, ou seja, para conservar a ordem? (SBRICCOLI, 2011).
A resposta tende a ser positiva.
Rousseau, em sua obra O Contrato Social escreveu que o homem nasceu livre e por toda parte está agrilhoado, defendendo, de um lado, a relevância da liberdade, mas ao mesmo tempo, deixando claro que a ordem social é um direito sagrado fundado nas convenções sociais (ROUSSEAU, 1999, p. 09). O pacto social de Rousseau aborda a necessidade de abrir mão de algumas liberdades em nome da ordem, para que seja possível a convivência em sociedade.
Beccaria flerta com o pacto social ao longo de sua obra, afirmando que os homens, seres naturalmente livres, unem-se em sociedade, sacrificando uma porção de sua liberdade para viver em paz e segurança (BECCARIA, 2012). Novamente, liberdade versus ordem.
Sigmund Freud (2010) em seus estudos aborda o mal-estar que a limitação da liberdade possa causar no indivíduo, mas ao mesmo tempo, afirma que de nada adianta o indivíduo ter plena liberdade, se não puder defendê-la:
A vida humana em comum se torna possível apenas quando há uma maioria que é mais forte que qualquer indivíduo e se conserva diante de qualquer indivíduo. Então o poder dessa comunidade se estabelece como Direito, em oposição ao poder do indivíduo, condenado como força bruta. Tal substituição do poder do indivíduo pelo da comunidade é o passo cultural decisivo. Sua essência está em que os membros da comunidade se limitam quanto às possibilidades de gratificação, ao passo que o indivíduo não conhecia tal limite. Portanto, a exigência cultural seguinte é a da justiça, isto é, a garantia de que a ordem legal que uma vez se colocou não será violada em prol de um indivíduo. (...) O resultado final deve ser um direito para o qual todos ao menos todos os capazes de viver em comunidade contribuem com sacrifício de seus instintos, e que não permite de novo com a mesma exceção que ninguém se torne vítima da força bruta. (FREUD, 2010, p. 37-38).
Acrescenta Freud (2010, p. 39) que a tarefa mais complexa é achar um equilíbrio entre a vontade de um indivíduo (liberdade individual), e a necessidade de respeito às regras de condutas sociais enquanto grupo-comunidade, uma vez que o homem possui a tendência de impor sua vontade individual sobre a vontade geral, apontando a necessidade de restrição das liberdades individuais na tentativa de buscar a felicidade do indivíduo, bem como do grupo social onde está inserido. Muitas vezes isso fomenta uma hostilidade à civilização, pois é a vida em sociedade que limita as liberdades individuais. Se não vivêssemos de forma civilizada, poderíamos ceder a todo e qualquer pulso de vontade.
Sobre a felicidade citada por Fred, oportuno nos remontarmos à corrente do utilitarismo, que serviu como um dos lastros para o Direito Penal moderno. Conforme observação de Ricardo Sontag (2008), apesar da identificação do bom com o útil remontar a Epicuro, o utilitarismo é corrente de origem inglesa dos séculos XVII e XIX, tendo Jeremy Bentham como consolidador, o qual definiu o utilitarismo como "a maior felicidade possível, compartilhada pelo maior número de pessoas.
O Direito Penal representa um papel central na sociedade, servindo como freio para abusos nas liberdades individuais, com o intuito de proporcionar aos indivíduos a maior felicidade possível. O Direito Penal também pode ser considerado como um instrumento civilizatório (SBRICCOLI, 2021). A Lei, por mais que imperfeita, se constitui (ao menos na teoria) em uma representação da vontade da sociedade. E como tal, deverá ser respeitada.
A liberdade tão ferrenhamente defendida deve ser compatibilizada com outros direitos fundamentais existentes em nosso sistema constitucional (FREITAS; CASTRO, 2013). Não deve se sobrepor a outros princípios e direitos, e nem considerada absoluta, mas sim, encarada com a devida proporcionalidade.
O professor Sbriccoli (2011) nos conduz a uma conclusão: uma vez ameaçado, o Estado sempre irá optar por fazer prevalecer a ordem sobre a liberdade. E foi o que observamos, com as centenas de prisões ocorridas no dia 08.02.2023, e a busca pela responsabilização dos autores de eventuais delitos praticados na ocasião[1].
Obviamente, esta não é uma discussão simples. O problema penal é mais amplo. Garantismo, punitivismo, crimes políticos, devido processo legal, contraditório, ampla defesa, direitos humanos, e inúmeros outros aspectos devem ser observados a partir de tal evento.
O objeto deste breve artigo é observar a necessidade de restrição de algumas liberdades (individuais ou mesmo de alguns grupos) justamente para que se permita a manutenção da ordem como sustentáculo da própria civilização. Se o Estado for permissivo com o exercício pleno e incontrolável de quaisquer liberdades, estará fadado à ruína.
REFERÊNCIAS
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas; tradução de Neury Carvalho Lima. São Paulo: Hunter Books, 2012.
DAL RI JR., Arno; CASTRO, Alexander Rodrigues de; PAULO, Alexandre Ribas de; SONTAG, Ricardo. Iluminismo e Direito Penal. Florianópolis: Boiteux, 2008.
FREITAS, Riva Sobrado de; CASTRO, Matheus Felipe de. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio: um exame sobre as possíveis limitações à liberdade de expressão. Seqüência (Florianópolis), n. 66, p. 327-355, jul. 2013. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/2177-7055.2013v34n66p327.
FREUD, Sigmund. Obras completas volume 18: O mal-estar na civilização e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. São Paulo. Martins Fontes, 1999.
SBRICCOLI, Mario. Justiça criminal. In: Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro, n. 17/18, 2011.
SBRICCOLI, Mario. A Penalística Civil: teorias e ideologias do direito penal na Itália unificada. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2021.
Notas
[1] Sobre os crimes praticados, recomendo as análises do Prof. Diego Nunes: https://eurolatinstudies.com/laces/announcement/view/194 e https://www.juscatarina.com.br/2023/01/11/podemos-falar-em-crime-contra-o-estado-democratico-de-direito-em-brasilia-uma-resposta-por-diego-nunes/.