Capa da publicação Paradoxo da liberdade e garantia da ordem pública
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O paradoxo da liberdade: garantia de liberdade ou manutenção da ordem pública?

11/01/2023 às 16:25

Resumo:


  • A liberdade individual encontra limitações pela necessidade de imposição de ordem pelo Estado para garantir a convivência social pacífica.

  • Teóricos como Rousseau e Freud destacam a importância de sacrificar parte da liberdade individual em prol do bem-estar coletivo e da manutenção da ordem social.

  • O Direito Penal atua como um mecanismo de controle social, limitando as liberdades individuais para assegurar a ordem e possibilitar a maior felicidade possível para a comunidade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Se o Estado for permissivo com o exercício pleno e incontrolável de quaisquer liberdades, estará fadado à ruína. 

Foi com incredulidade que a maior parte dos brasileiros acompanhou os eventos nefastos ocorridos em Brasília em 08.01.2023. Uma horda de manifestantes invadindo e promovendo destruição de patrimônio público, agressão a policiais e até a animais no local. Os atos foram praticados com lastro na ideia de uma liberdade de expressão ou de manifestação. Há quem defenda a maneira como tais manifestações foram conduzidas. Lamentavelmente, até entre juristas vemos posicionamentos favoráveis à tais barbáries, como a justificativa do exercício de liberdade.

O problema é de simples compreensão: em uma sociedade civilizada, a liberdade não existe de forma plena, absoluta e irrestrita. O Estado utiliza seu aparato para garantir a manutenção da ordem pública, e a consequência é a mitigação da liberdade dos indivíduos.

Os eventos que iniciaram ainda nas eleições de 2022, levam à reflexão do chamado paradoxo da liberdade, expressão difundida pelo falecido historiador do Direito, e professor da Universitá di Macerata, Mario Sbriccoli. A discussão reside na oposição ao bem político que é a segurança dos cidadãos (segurança pública), e o inalienável direito do indivíduo à sua liberdade inviolável.

Em suma: todos desejamos liberdade, mas ao mesmo tempo, almejamos ordem. Imaginemos um cenário onde todos exercem sua liberdade da forma que lhes parecer mais apropriado. Onde ficaria a ordem? Logo, a liberdade do indivíduo encontra limitações pela necessidade de imposição de ordem pelo Estado.

Pode o Estado reduzir ou suspender as liberdades dos cidadãos para conservar a si mesmo, ou seja, para conservar a ordem? (SBRICCOLI, 2011).

A resposta tende a ser positiva.

Rousseau, em sua obra O Contrato Social escreveu que o homem nasceu livre e por toda parte está agrilhoado, defendendo, de um lado, a relevância da liberdade, mas ao mesmo tempo, deixando claro que a ordem social é um direito sagrado fundado nas convenções sociais (ROUSSEAU, 1999, p. 09). O pacto social de Rousseau aborda a necessidade de abrir mão de algumas liberdades em nome da ordem, para que seja possível a convivência em sociedade.

Beccaria flerta com o pacto social ao longo de sua obra, afirmando que os homens, seres naturalmente livres, unem-se em sociedade, sacrificando uma porção de sua liberdade para viver em paz e segurança (BECCARIA, 2012). Novamente, liberdade versus ordem.

Sigmund Freud (2010) em seus estudos aborda o mal-estar que a limitação da liberdade possa causar no indivíduo, mas ao mesmo tempo, afirma que de nada adianta o indivíduo ter plena liberdade, se não puder defendê-la:

 A vida humana em comum se torna possível apenas quando há uma maioria que é mais forte que qualquer indivíduo e se conserva diante de qualquer indivíduo. Então o poder dessa comunidade se estabelece como Direito, em oposição ao poder do indivíduo, condenado como força bruta. Tal substituição do poder do indivíduo pelo da comunidade é o passo cultural decisivo. Sua essência está em que os membros da comunidade se limitam quanto às possibilidades de gratificação, ao passo que o indivíduo não conhecia tal limite. Portanto, a exigência cultural seguinte é a da justiça, isto é, a garantia de que a ordem legal que uma vez se colocou não será violada em prol de um indivíduo. (...) O resultado final deve ser um direito para o qual todos ao menos todos os capazes de viver em comunidade contribuem com sacrifício de seus instintos, e que não permite de novo com a mesma exceção que ninguém se torne vítima da força bruta. (FREUD, 2010, p. 37-38).

 Acrescenta Freud (2010, p. 39) que a tarefa mais complexa é achar um equilíbrio entre a vontade de um indivíduo (liberdade individual), e a necessidade de respeito às regras de condutas sociais enquanto grupo-comunidade, uma vez que o homem possui a tendência de impor sua vontade individual sobre a vontade geral, apontando a necessidade de restrição das liberdades individuais na tentativa de buscar a felicidade do indivíduo, bem como do grupo social onde está inserido. Muitas vezes isso fomenta uma hostilidade à civilização, pois é a vida em sociedade que limita as liberdades individuais. Se não vivêssemos de forma civilizada, poderíamos ceder a todo e qualquer pulso de vontade.

Sobre a felicidade citada por Fred, oportuno nos remontarmos à corrente do utilitarismo, que serviu como um dos lastros para o Direito Penal moderno. Conforme observação de Ricardo Sontag (2008), apesar da identificação do bom com o útil remontar a Epicuro, o utilitarismo é corrente de origem inglesa dos séculos XVII e XIX, tendo Jeremy Bentham como consolidador, o qual definiu o utilitarismo como "a maior felicidade possível, compartilhada pelo maior número de pessoas.

O Direito Penal representa um papel central na sociedade, servindo como freio para abusos nas liberdades individuais, com o intuito de proporcionar aos indivíduos a maior felicidade possível. O Direito Penal também pode ser considerado como um instrumento civilizatório (SBRICCOLI, 2021). A Lei, por mais que imperfeita, se constitui (ao menos na teoria) em uma representação da vontade da sociedade. E como tal, deverá ser respeitada.

A liberdade tão ferrenhamente defendida deve ser compatibilizada com outros direitos fundamentais existentes em nosso sistema constitucional (FREITAS; CASTRO, 2013). Não deve se sobrepor a outros princípios e direitos, e nem considerada absoluta, mas sim, encarada com a devida proporcionalidade.

O professor Sbriccoli (2011) nos conduz a uma conclusão: uma vez ameaçado, o Estado sempre irá optar por fazer prevalecer a ordem sobre a liberdade. E foi o que observamos, com as centenas de prisões ocorridas no dia 08.02.2023, e a busca pela responsabilização dos autores de eventuais delitos praticados na ocasião[1].

Obviamente, esta não é uma discussão simples. O problema penal é mais amplo. Garantismo, punitivismo, crimes políticos, devido processo legal, contraditório, ampla defesa, direitos humanos, e inúmeros outros aspectos devem ser observados a partir de tal evento.

O objeto deste breve artigo é observar a necessidade de restrição de algumas liberdades (individuais ou mesmo de alguns grupos) justamente para que se permita a manutenção da ordem como sustentáculo da própria civilização. Se o Estado for permissivo com o exercício pleno e incontrolável de quaisquer liberdades, estará fadado à ruína. 


REFERÊNCIAS

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas; tradução de Neury Carvalho Lima. São Paulo: Hunter Books, 2012.

DAL RI JR., Arno; CASTRO, Alexander Rodrigues de; PAULO, Alexandre Ribas de; SONTAG, Ricardo. Iluminismo e Direito Penal. Florianópolis: Boiteux, 2008.

FREITAS, Riva Sobrado de; CASTRO, Matheus Felipe de. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio: um exame sobre as possíveis limitações à liberdade de expressão. Seqüência (Florianópolis), n. 66, p. 327-355, jul. 2013. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/2177-7055.2013v34n66p327.

FREUD, Sigmund. Obras completas volume 18: O mal-estar na civilização e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. São Paulo. Martins Fontes, 1999.

SBRICCOLI, Mario. Justiça criminal. In: Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro, n. 17/18, 2011.

SBRICCOLI, Mario. A Penalística Civil: teorias e ideologias do direito penal na Itália unificada. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2021.


Notas

[1] Sobre os crimes praticados, recomendo as análises do Prof. Diego Nunes: https://eurolatinstudies.com/laces/announcement/view/194 e https://www.juscatarina.com.br/2023/01/11/podemos-falar-em-crime-contra-o-estado-democratico-de-direito-em-brasilia-uma-resposta-por-diego-nunes/.  

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Sobre o autor
Pablo Buogo

Mestrando em Teoria e História do Direito, na Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Graduado em Direito pela Universidade do Planalto Catarinense - UNIPLAC. Especialista em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Catarinense – ESMESC. Especialista em Investigação Forense e Perícia Criminal pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci. Especialista em Direito Penal pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci. Especialista em Direito Civil pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci. Professor de Direito Penal e Direito Processual em cursos preparatórios para concursos públicos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BUOGO, Pablo. O paradoxo da liberdade: garantia de liberdade ou manutenção da ordem pública?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7133, 11 jan. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101948. Acesso em: 22 dez. 2024.

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