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O princípio da busca da felicidade e o direito à saúde

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Agenda 23/06/2011 às 10:44

Qual o quadro atual de gerenciamento das políticas públicas da saúde no Brasil? Podemos ilustrar com a realidade. Dentro dessa perspectiva, iremos trabalhar o direito à saúde guiado pelo princípio constitucional da busca da felicidade.

Qual o quadro atual de gerenciamento das políticas públicas da saúde no Brasil? Podemos ilustrar com a realidade. Uma anciã pleiteou fraldas geriátricas porque não conseguia reter sua evacuação [01]. Mães pobres de crianças com síndromes graves tentam alcançar a cura para seus filhos [02]. Um idoso diabético não teve acesso a um remédio que constava expressamente na lista de medicamentos fornecidos pelo SUS no Estado do Rio Grande do Norte [03]. Em Sobral, no Ceará, mesmo após o Brasil ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em razão do caos nos manicômios do município [04], recém nascidos eram expostos a bactérias mortais [05]. No Piauí, pessoas morriam à espera de atendimento médico junto ao SUS pelo fato de não terem sido cadastradas no Sistema no Estado do Piauí, mas em outros Estados [06].

Eis o quadro. Infelicidade. Dentro dessa perspectiva, iremos trabalhar o direito à saúde guiado pelo princípio constitucional da busca da felicidade. Faremos, ao final, um estudo de caso. Tudo real. Nada de misticismos acadêmicos.


1.A Busca da Felicidade - Raízes

Em 1693, John Locke afirmou que "a mais elevada perfeição da natureza intelectual encontra-se em uma busca cuidadosa e constante da felicidade verdadeira e sólida" [07]. Stephanie Schwartz Driver entende que "em uma ordem social racional, de acordo com a teoria iluminista, o governo existe para proteger o direito do homem de ir em busca da sua mais alta aspiração, que é, essencialmente, a felicidade ou o bem-estar [08]."

O resultado foi a consolidação do seguinte registro histórico: "Consideramos as seguintes verdades como autoevidentes, a saber, que todos os homens são criaturas iguais, dotadas pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais a vida, a liberdade e a busca da felicidade".

O registro acima consta da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. Os norte-americanos poderiam afirmar que a felicidade era um direito inalienável, mas não o fizeram. A expressão retrata uma forte marca da personalidade americana. Fala da "busca" da felicidade. Não há promessa de acesso à própria felicidade, mas a garantia de que todos têm o direito de buscá-la.

Esse ideal que a Declaração de Independência fez questão de alimentar no povo norte-americano não se converteu em promessa inconsequente. Pelo contrário. Inúmeras vezes a Suprema Corte daquele país se valeu do princípio da busca da felicidade como reforço argumentativo na fundamentação de posições.

Tenta-se transformar o místico em algo concreto. A felicidade deixa de ser uma aspiração distante e passa a assumir sua posição de realidade.

Felicidade. Todos tem o direito de buscá-la e o Estado deve, além de não atrabalhar esse intento, auxiliar esta busca. Eis o anúncio do novo horizonte.


2.A Busca da Felicidade – Suprema Corte dos Estados Unidos

O Estado da Louisiana, em 08 de março de 1869, aprovou uma lei que concedia a empresa estatal o direito exclusivo, por 25 anos, de explorar matadouros, postos de desembarques de gado e estaleiros que abrigavam o gado destinado à venda ou abate, dentro das regiões de Orleans, Jefferson, e São Bernardo.

Todo o comércio de gado deveria ser exercido em sistema de monopólio pelo referido matadouro estatal, o qual poderia cobrar taxas para a utilização de cada espaço voltado ao abrigo, abate ou comercialização do gado, incluindo, até mesmo, taxas que incidiam, no abate, sobre as cabeças, patas, sangue e vísceras, com exceção dos suínos.

A questão foi levada à Suprema Corte [09].

A Corte registrou que "quando as colônias se separaram da mãe-pátria, nenhuma outra garantia foi tão reconhecida e devidamente incorporada à Lei Fundamental senão aquela que diz que ‘todos os sujeitos livres no império britânico tinham o direito de exercer a sua felicidade por seguir qualquer um dos comércios estabelecidos no país, sujeitos apenas às restrições que afetava a todos os demais’".

Fez-se menção à Declaração de Independência, segundo a qual são "verdades auto-evidentes que o Criador dotou todos os homens com certos direitos inalienáveis, e que entre estes estão a vida, liberdade e a ‘busca da felicidade’" [10].

Doze anos depois a Suprema Corte continuava a discutir a questão dos monopólios de matadouros no Estado da Lousiana. Mais uma vez ela assentou que "o direito de seguir qualquer uma das ocupações comuns da vida é um direito inalienável, que foi formulada, como tal, sob a frase ‘busca da felicidade’ na declaração de independência, que teve início com a proposição fundamental de que ‘todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis; que entre estes estão a vida, à liberdade e à busca da felicidade’" [11].

Em 1886 foi a vez de analisar a constitucionalidade de um decreto municipal que autorizava o Poder Executivo a conceder a exploração de lavanderias públicas baseando-se em critérios de raça entre as pessoas, sem aferir qualquer quesito voltado à competência ou adequação do local escolhido para o exercício da atividade [12].

Segundo a Corte "direitos fundamentais à vida, liberdade e à ‘busca da felicidade’, considerados como um patrimônio individual, estão protegidos pelas máximas do direito constitucional, monumentos que mostram o progresso vitorioso da corrida para garantir aos homens as bênçãos da civilização sob o reinado justo e igual das leis, de modo que, na linguagem do famoso Bill of Rights from Massachusetts, o governo da República "deve ser um governo de leis, e não dos homens" [13].

Em 1923 a Corte se deparou com um caso inusitado. Um professor foi punido por ensinar alemão para uma criança de dez anos em uma escola paroquial. Havia, ao tempo, legislação estadual determinando o ensino exclusivo do inglês e prevendo punição para quem lecionasse outros idiomas.

Segundo a Corte, além de não se poder impor pena que recaisse sobre o corpo, dever-se-ia reafirmar "o direito do indivíduo de contrato, de participação em qualquer das ocupações comuns da vida, de adquirir conhecimentos úteis, de casar, de estabelecer uma casa, de educar os filhos, de adorar a Deus segundo os ditames de sua própria consciência e, geralmente, de gozar desses privilégios reconhecidos como essenciais para o exercício regular de ‘felicidade’ por homens livres" [14].

Em 1925 foi a vez de apreciar a constitucionalidade de uma Lei do Estado de Oregon que obrigava, salvo exceções, que os pais, tutores ou aqueles que detinham controle sobre crianças entre oito e dezesseis anos fossem obrigados a levarem-nas para a escola pública no bairro onde residiam, no ano anterior ao início do ano letivo.

Indagava-se se isso seria uma interferência excessiva na liberdade dos pais e encarregados de orientar a educação dos filhos.

A Corte, relembrando lição do Justice Brandeis, registrou que "a proteção garantida pela 4ª e 5ª emendas é muito mais ampla. Os criadores de nossa Constituição se comprometeram a garantir condições favoráveis ​​à ‘busca da felicidade’" [15].

Por fim, em 1967, foi levado a julgamento lei do Estado da Virgínia que impedia casamentos entre pessoas levando em consideração critérios raciais.

O Chief Justice, Earl Warren, argumentou que "a liberdade para se casar há muito tem sido reconhecido como um dos direitos vital e pessoal essenciais para o exercício regular de ‘felicidade’ por homens livres" [16].

Não há dúvida. Os Estados Unidos abraçam o princípio da busca da felicidade como vetor hermenêutico dotado de máxima efetividade a regular questões envolvendo direitos fundamentais. O princípio da busca da felicidade é mencionado, lá, com a expressão The Pursuit of Happyness.


3.A Busca da Felicidade – Expansão Internacional

A Constituição do Japão, no seu artigo 13, dispõe que todas as pessoas têm direito à busca pela felicidade, desde que isso não interfira no bem-estar público, devendo o Estado, por leis e atos administrativos, empenhar-se na garantia às condições por atingir a felicidade [17].

A Constituição sul coreana, no seu artigo 10, diz que todos têm direito a alcançar a felicidade, atrelando esse direito ao dever do Estado em confirmar e assegurar os direitos humanos dos indivíduos [18].

Ainda dentro dessa perspectiva internacional, o Reino do Butão estabelece, pelo artigo 9º da sua Constituição, a adoção do INFB como indicador social, o Índice Nacional de Felicidade Bruta, que considera indicadores que envolvem bem-estar, cultura, educação, ecologia, padrão de vida e qualidade de governo.

Segundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, o objetivo primordial do Estado Democrático é "a proteção dos direitos essenciais do homem e a criação de circunstâncias que lhe permitam evoluir espiritual e materialmente e atingir a felicidade [19]."

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu, no § 2º do artigo 5º que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". Possibilitou-se, assim, que o nosso país adotasse o princípio da busca da felicidade (The Pursuit of Happyness).

Essa adoção fará toda a diferença para Marcos José.


4.A Busca da Felicidade - Brasil

O Supremo Tribunal Federal (STF), na voz do Ministro Celso de Mello, enxerga o princípio da busca da felicidade (The Pursuit of Happyness) como consectário "do princípio da dignidade da pessoa humana". Isso porque, a Constituição Federal não o trouxe de modo explícito, contudo, dispôs sobre sua fonte primeira, o princípio da dignidade da pessoa humana, alçado, pelo inciso III do art. 1º, como um dos fundamentos da República.

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O STF tem posições fundamentadas no princípio da busca da felicidade (The Pursuit of Happyness), mormente quando o tema cuida de direitos fundamentais.

O Ministro Carlos Velloso, em 2005, ponderou no Plenário da Corte: "convém registrar, que uma das razões mais relevantes para a existência do direito está na realização do que foi acentuado na Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, de 1776, o direito do homem de buscar a felicidade. Noutras palavras, o direito não existe como forma de tornar amarga a vida dos seus destinatários, senão de fazê-la feliz. [20]"

Esse registro feito pelo Ministro Carlos Velloso mostrar-se-ia fundamental para a vida de um jovem estudante universitário residente em Recife, no Estado de Pernambuco. Dois anos depois, em 2007, a vida colocaria o jovem diante de um desafio quase insuperável: buscar a sua felicidade ou sucumbir em face de obstáculos quase intransponíveis para os quais não concorreu de modo algum. Um inocente deveria optar entre lutar ou desistir.

Ainda em 2005, o Ministro Marco Aurélio destacou "o direito do homem à constante busca da felicidade, da realização como ser humano, passando o fenômeno pela reconstrução familiar" [21].

O Ministro Celso de Mello, construindo o alicerce constitucional que ampararia esse postulado universal, discorreu o seguinte:

"o magistério da doutrina, apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva, utilizando-se da analogia e invocando princípios fundamentais (como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não discriminação e da busca da felicidade), tem revelado admirável percepção do alto significado de que se revestem tanto o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual, de um lado, quanto a proclamação da legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva como entidade familiar, de outro, em ordem a permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes consequências no plano do Direito e na esfera das relações sociais. [22]"

Recentemente, ainda o Ministro Celso, julgando improcedente a Ação que questionava a realização de pesquisas com células-tronco embrionárias, afirmou que "o luminoso voto proferido pelo eminente Ministro Carlos Britto permitirá a esses milhões de brasileiros, que hoje sofrem e que hoje se acham postos à margem da vida, o exercício concreto de um direito básico e inalienável que é o direito à busca da felicidade e também o direito de viver com dignidade, direito de que ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado. [23]"

Esse movimento tem raízes históricas no ocidente e chegou ao Brasil pelos braços da jurisprudência garantista da Suprema Corte. Ele também envolveu positivamente o Congresso Nacional que recebeu, em 2010, duas propostas de emenda à Constituição visando alterar o seu art. 6º para incluir o direito à busca da felicidade no rol dos direitos sociais [24].

A PEC nº 19, de 2010, é de autoria do senador Cristóvan Buarque (PDT/DF). Já a PEC nº 513, de 2010, tramita na Câmara dos Deputados e é de autoria da deputada Manuela d’Ávila. Tanto o senador Cristóvan, quanto a deputada Manuela d’Ávila, registraram na justificação de suas propostas:

Na Declaração de Direitos da Virgínia (EUA, 1776), outorgava-se aos homens o direito de buscar e conquistar a felicidade; na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789) há a primeira noção coletiva de felicidade, determinando-se que as reivindicações dos indivíduos sempre se voltarão à felicidade geral. Hoje, o Preâmbulo da Carta Francesa de 1958 consagra a adesão do povo francês aos Direitos Humanos consagrados na Declaração de 1789, dentre os quais se inclui toda a evidência, à felicidade geral ali preconizada.

Esse registro mostra a trajetória histórica do princípio da busca da felicidade e demonstra como ele está presente nos mais importantes documentos libertários e garantidores de direitos fundamentais, a exemplo da própria Declaração de Direitos dos Homens e do Cidadão.

No Brasil, o Ministro Celso de Mello, do STF, ao proferir seu voto na questão do reconhecimento jurídico das relações homoafetivas, registrou que "o direito à busca da felicidade representa derivação do princípio da dignidade da pessoa humana, qualificando-se como um dos mais significativos postulados constitucionais implícitos cujas raízes mergulham, historicamente, na própria Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 04 de julho de 1776".

Para o Ministro Celso de Mello, "o postulado constitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o princípio da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais".

No Superior Tribunal de Justiça (STJ), o princípio da busca da felicidade tem sido utilizado como vetor hermenêutico capaz de fornecer um ideal de justiça a inspirar o julgador quando deparado com delicadas questões voltadas para o direito de família.

Um casamento válido foi dissolvido culminando, posteriormente, com ações de reconhecimento de uniões estáveis concomitantes. Na hipótese, o cidadão direcionou "seu afeto para um, dois, ou mais outros sujeitos, formando núcleos distintos e concomitantes, muitas vezes colidentes em seus interesses".

Segundo a Ministra Nancy Andrighi, "ao analisar as lides que apresentam paralelismo afetivo, deve o juiz, atento às peculiaridades multifacetadas apresentadas em cada caso, decidir com base na dignidade da pessoa humana, na solidariedade, na afetividade, na busca da felicidade, na liberdade, na igualdade, bem assim, com redobrada atenção ao primado da monogamia, com os pés fincados no princípio da eticidade" [25].

O princípio da busca da felicidade foi utilizado como reforço argumentativo para decidir ação de reconhecimento de união estável post mortem e sua consequente dissolução, tendo ocorrido, no caso, concomitância de casamento válido [26].

Pedido de guarda provisória em favor de menor no seu interesse também ganhou o reforço do princípio da busca da felicidade [27].

O princípio teria encontra marcado com um jovem garoto brasileiro.


5.A Busca da Felicidade – O Jovem Marcos José

Segunda-feira, dia 14 de abril de 2008, 14h. Uma sessão extraordinária tinha sido marcada pela Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministra Ellen Gracie. O quórum estava desfalcado. Estavam ausentes os ministros Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Menezes Direito e Cármen Lúcia. A Corte funcionaria com somente seis dos seus onze componentes.

A pauta de processos naquele dia trazia um caso peculiar. Havia algo a mais dentro do processo que seria apreciado e cuja relatoria cabia à Ministra Ellen. Esse caso não definiria simplesmente uma resposta correta racionalmente fundada em argumentos jurídicos. Dentro do processo havia, na verdade, uma vida [28].

A capa dos autos indicava o nome: Marcos José Silva de Oliveira.

Marcos era um estudante universitário na cidade do Recife, Estado de Pernambuco. Certa noite, ao ir para sua faculdade, foi vítima de um assalto. Tomaram-lhe muito mais do que bens materiais. Levaram todos os movimentos do pescoço para baixo. Após levar um tiro, Marcos José ficou tetraplégico.

Por meio de uma ação de indenização, a família do garoto pleiteava o direito de ele ser submetido a uma cirurgia de implante de um Marcapasso Diafragmático Muscular (MDM), a fim de que pudesse respirar sem depender de aparelho mecânico. Tudo custeado pelo Estado de Pernambuco. [29]

O respirador conseguiria devolver ao garoto "a condição de respirar sem a dependência do respirador mecânico".

O Tribunal de Justiça de Pernambuco havia determinado a transferência de recursos do Estado de uma conta judicial para uma conta bancária no exterior, pertencente ao médico norte-americano indicado pela família para vir ao Brasil operar o paciente. Segundo familiares, o Brasil não possuía profissional capacitado para realizar tal procedimento, que, caso não ocorresse até dia 30 de abril (o julgamento ocorreu dia 14 de abril) resultaria num alto risco de morte à vítima [30].

A responsabilização do Estado de Pernambuco pelo custo da cirurgia equivalia a U$ 150.000 (cento e cinquenta mil dólares americanos). O filósofo norte-americano Ronald Dworkin diz serem difíceis essas decisões, "quando as técnicas muito caras de diagnóstico ou os transplantes experimentais com pouca probabilidade de êxito são apropriados" [31].

O Estado conseguiu levar a disputa até o STF e tentava suspender a execução da decisão do TJ/PE.

Pernambuco sustentou ocorrência de grave lesão à ordem pública, em razão da iminência de transferência de recursos públicos ao exterior para pessoa não domiciliada no país, sem prévia autorização do Banco Central.

Alegava também a ocorrência de grave lesão à economia pública, com base na determinação do pagamento sem o trânsito em julgado da sentença condenatória e sem a obrigatória expedição de precatório, em afronta ao artigo 100 da Constituição Federal.

5.1 O Voto da Relatoria

A Ministra Ellen Gracie, presidindo a sessão plenária, iniciou a leitura do seu voto. Ela afirmou: "Não desconheço o sofrimento e a dura realidade vivida pelo agravante com especial deferência por seus familiares que zelosamente empreendem esforços para assegurar e prover o mais rápido possível uma melhor condição ao seu ente querido."

Segundo a Ministra, a Secretaria de Saúde de Pernambuco, o mesmo Estado que se negou a oferecer o tratamento, havia feito auditoria e concluíu que o caso de Marquinhos padecia de um risco maior quanto à instalação do mencionado marcapasso.

No entanto, ela considerou que a determinação para que o Estado pagasse todas as despesas necessárias à realização da cirurgia, com base na forma e com profissional requerido, "defronta-se especialmente com o conceito de ordem pública administrativa, a qual exige verificação ao menos da aparente legalidade da postura da administração que a decisão a suspender põe em risco".

A Ministra entendeu configurada grave lesão à ordem pública "na sua acepção jurídico-administrativa", tendo em vista imposição, ao poder público, do pagamento de cirurgia de alto custo sem qualquer registro de prévio procedimento administrativo.

"Não consta dos autos qualquer avaliação clínica prévia capaz de aferir de maneira segura e adequada a viabilidade técnica ou mesmo a prescrição clínica para que o paciente, ora agravante, se submeta ao procedimento cirúrgico pleiteado", verificou a Ministra.

Para Sua Excelência, "por se tratar de procedimento incipiente, de custo elevado, não oferecendo garantias de sucesso e ainda em fase experimental, o procedimento ainda não consta do rol de procedimentos da ANS, tendo sido inclusive negado pela operadora de saúde da qual o paciente é usuário". Segundo a Ministra "persistem dúvidas severas quanto à viabilidade técnica do procedimento bem como a sua prescrição clínica".

O voto foi proferido.

1 X 0 contra Marcos José.

O Plenário silenciou.

Nas cadeiras, poucas pessoas. Era uma sessão extraordinária. Até então, nada levava a crer que, além da sessão, a decisão também seria extraordinária.

Marcos José respirava com auxílio mecânico e o tempo era o seu maior algoz. A data limite era 30 de abril. Estávamos no dia 14.

5.2 O Voto da Divergência

O Ministro Celso de Mello pediu a palavra. Sua voz, sempre serena, embargou.

Para o Ministro, teria havido, no caso, "grave omissão, permanente e reiterada, por parte do Estado, por intermédio de suas corporações militares, notadamente por parte da polícia militar, em prestar o adequado serviço de policiamento ostensivo, nos locais notoriamente passíveis de práticas criminosas violentas".

Não custa lembrar que, em 2007, um estudo da Organização dos Estados Ibero-americanos para Educação, a Ciência e a Cultura (OEI) com apoio do Ministério da Saúde, mostrou que Recife era a capital mais violenta do Brasil, com 91,2 pessoas mortas a cada 100.000 habitantes [32]. O Estado de Pernambuco, portanto, tinha plena consciência dos males que sua política de segurança estava causando à população.

Em 2007, ano no qual Marcos José foi vítima do assalto que lhe arrancou os movimentos do pescoço para baixo, só o Governo Federal repassou ao Estado de Pernambuco a quantia de R$ 15.428.137,38 (quinze milhões, quatrocentos e vinte e oito mil, cento e trinta e sete reais e trinta e oito centavos) como repasse à segurança pública. Desse montante, R$ R$ 1.228.204,62 (um milhão, duzentos e vinte e oito mil, duzentos e quatro reais e sessenta e dois centavos) foram relativos ao Programa de Apoio à Implantação de Projetos de Prevenção da Violência [33].

Olhando firmemente para todos os seus colegas de Plenário e colocado sobre a cadeira em posição curvada levemente para frente, em direção ao microfone, o Ministro Celso frisou que Marcos, a vítima, tinha o direito de viver de maneira autônoma, uma vez que necessitava de aparelho mecânico para respirar.

Para o Ministro, situações configuradoras de falta de serviço podem acarretar a responsabilidade civil objetiva do Poder Público, considerado o dever de prestação pelo Estado, a necessária existência de causa e efeito, ou seja, a omissão administrativa e o dano sofrido pela vítima, e que, no caso, estariam presentes.

"A mim me parece que todos os elementos que compõem a estrutura da responsabilidade civil objetiva do poder público estariam presentes nesse caso. A situação de dano gravíssimo, risco inaceitável à vida, ocorre em relação a esse paciente e muito menos em relação ao poder público", afirmou.

Sua Excelência entendeu que dever-se-ia manter o tratamento. Pernambuco, assim como outras localidades brasileiras, possuía pontos conhecidos pela prática criminosa.

O Ministro registrou ter havido omissão por parte dos agentes públicos na adoção de medidas efetivas, "que o bom senso impõe". "Medidas que muitas vezes os responsáveis pela segurança pública nos estados desconhecem ou fazem de conta que não sabem", disse.

O Ministro Celso afirmou que "não tem sentido o estado permanecer simplesmente se omitindo no dever constitucional de prover segurança pública ao cidadão, demitindo-se das conseqüências que resultam do cumprimento desse mesmo dever".

O Ministro afirmou que o cidadão tem direito à segurança pública, à vida "e à obtenção por parte do poder público de meios e recursos necessários que tornem efetivo o acesso dessa prerrogativa delicadíssima e essencial, que é o direito à vida" [34].

Acompanhando o Ministro Celso, o Ministro Gilmar Mendes trouxe à tona a maneira toda peculiar da qual se valeu o Estado de Pernambuco para impedir que o garoto tivesse acesso ao tratamento de saúde.

Segundo o Ministro, o Estado de Pernambuco, "em atitude procrastinatória contínua, reteve os autos, gerando medida cautelar de busca e apreensão, além de fazer o depósito dando a impressão que cumpriria a decisão e, depois, buscou o bloqueio da quantia". Para o Ministro "essas não são atitudes de lealdade por parte do ente estadual".

Para o Ministro Celso de Mello, ao se reconhecer o interesse secundário do Estado, em matéria de finanças públicas, e o direito fundamental da pessoa, que é o direito à vida, não haveria opção possível para o Judiciário senão fazer prevalecer o direito à vida. Suas palavras foram: "Tenho a impressão que a realidade da vida tão pulsante nesse caso impõe que se dê provimento a este recurso e que se reconheça a essa pessoa o direito de buscar autonomia existencial desvinculando-se de um respirador artificial que a mantém ligada a um leito hospitalar depois de meses de estado comatoso."

O raciocínio desenvolvido pelo Ministro consagra o direito à vida.

Para o Ministro Celso de Mello, tal medida garantiria o direito à busca da felicidade, consectário do princípio da dignidade da pessoa humana.

"Quem salva uma vida, salva toda a humanidade", finalizou o Ministro.

5.3 O Direito à Saúde como Direito à Vida Digna

O voto do Ministro Celso de Mello faz lembrar a decisão da Corte Constitucional colombiana na qual se sustentou que não somente quando a pessoa está à beira da morte ameaça-se seu direito à vida, pois este direito vê-se igualmente ameaçado quando seu titular é submetido a uma existência indigna, indesejável ou dolorosa [35].

Na doutrina brasileira, contudo, há voz divergente. É o caso da Professora Ana Paula de Barcellos, para quem "se o critério para definir o que é exigível do Estado em matéria de prestações de saúde for a necessidade de evitar a morte, a dor ou o sofrimento físico, simplesmente não será possível definir coisa alguma" [36].

A Corte Constitucional italiana, por sua vez, garante o respeito à integridade psicofísica do cidadão, ao reconhecer esse direito como sendo um "direito subjetivo protegido contra qualquer agressão por obra de terceiros [37] e suscetível de uma tutela ressacitória imediata como ‘dano biológico’, independentemente de qualquer outra consequência danosa juridicamente determinável.

Esse dano biológico, para a Corte, "se refere à integridade dos seus reflexos prejudiciais no que concerne a todas as atividades, situações e relações nas quais a pessoa atribui a si própria na sua vida: não somente, portanto, no que concerne à esfera produtiva, mas também no que concerne à esfera espiritual, cultural, afetiva, social, esportiva e a todos outros âmbitos e modos nos quais o sujeito desenvolve sua personalidade, isto é, a todas ‘as atividades realizadoras da pessoa humana’" [38].

Após recordar a decisão da Corte da Colômbia, a jurisprudência italiana e apontar voz divergente na doutrina brasileira, retomo, agora, o julgamento do caso de Marcos José, no STF.

A decisão liderada pelo Ministro Celso de Mello talvez seja criticada. Mas ela tem por fundamento o Princípio do Resgate, mencionado por Ronald Dworkin que, contudo, rejeita sua aplicação.

Para Dworkin, o Princípio do Resgate afirma que "a vida e a saúde são, como definiu René Descartes, os bens mais importantes: todo o resto tem menor importância e deve ser sacrificado em favor desses dois bens" [39]. De acordo com o Princípio, "a sociedade deve oferecer tal tratamento sempre que houver possibilidade, por mais remota, de salvar uma vida" [40].

O filósofo norte-americano lembra ainda de um caso de todo peculiar que fora conduzido com base no Princípio do Resgate. Ronald Dworkin nos diz que

Há alguns anos, certos médicos da Filadélfia separaram gêmeos siameses que compartilhavam um coração, embora a operação viesse a manter uma das crianças e desse à outra uma possibilidade em cem de sobreviver muito tempo, e as despesas estivessem calculadas em um milhão de dólares (Os pais dos gêmeos não tinham seguro-saúde, mas Indiana, o Estado no qual viviam, pagou US$ 1.000 por dia e o hospital da Filadélfia absorveu o resto das despesas). O chefe da equipe de cirurgiões justificou o tratamento por intermédio do princípio do resgate: ‘O consenso geral é de que, se for possível salvar uma vida, vale a pena fazê-lo’, disse ele [41].

Note-se que o Ministro Celso, além de se fiar no Princípio do Resgate, tratou da questão como sendo relativa ao direito à vida e não direito à saúde. Esse ponto também gera discussão, pois pode-se dizer que, em tese, a vida do garoto não estava em risco.

A Corte Constitucional colombiana transitou bem nesta discussão. Ela construiu o conceito de direito à saúde como direito fundamental por similaridade, quando atrelado ao direito à vida. Isso quando "a prestação do serviço de saúde é condição sine qua non para a proteção adequada deste direito".

A Corte estabeleceu uma linha bem definida acerca do que seria direito à saúde. Ela forneceu três critérios: a similaridade, o subjetivo e o material.

Pela similaridade, deve haver uma ligação entre o direito à saúde e outros direitos fundamentais como à vida, ou o direito fundamental ao mínimo vital.

Na Sentença T-571 de 1992, a Corte afirmou que "os direitos fundamentais por similaridade são aqueles que, não sendo denominado como tais nos textos constitucional, todavia, lhes é comunicada esta qualificação em virtude da íntima e inseparável relação com outros direitos fundamentais, de forma que se não foram protegidos de forma imediata os primeiros ocasionar-se-ia vulnerabilização ou ameaça dos segundos". A decisão cita o caso do direito à saúde, "que não sendo em princípio direito fundamental, adquire esta categoria quando a desatenção do enfermo ameaça por em perigo seus direitos à vida" [42].

O critério subjetivo juspositivista explícito ampara menores de idade protegidos pela própria Constituição. Já o de ordem interpretativa se dá quando a Corte reconhece o direito fundamental autônomo a grupos amparados por proteção especial, como as pessoas com incapacidades ou da terceira idade [43].

Com relação ao critério material, a Corte sustentou que a prestação da saúde, já reconhecida pela lei ou Plano Obrigatório de Saúde, adquire o caráter de direito fundamental autônomo, de forma que o descumprimento da mesma constituiria uma possível vulnerabilidade do direito fundamental à saúde [44].

Ainda dentro da realidade colombiana, temos a Sentença T-533, de 1992.

No caso, um indigente requereu uma cirurgia que evitaria a cegueira. Segundo a Corte, seria hipótese de o direito à saúde adquirir o caráter de fundamental, posto que "as conseqüências, de maneira imediata, se revelam como contrárias à ordem constitucional, a qual protege a vida e a integridade física das pessoas" [45].

A Corte entendeu que "acreditado o caráter de indigente absoluto – (i) incapacidade absoluta de pessoa de valer-se por seus próprios meios; (ii) existência de uma necessidade vital cuja não satisfação lesiona a dignidade humana em máximo grau; (iii) ausência material de apoio familiar – cabe reconhecer à frente do sujeito e a cargo da entidade pública respectiva, o direito a receber a prestação correspondente, estabelecendo – à luz das circunstâncias – as cargas retributivas a seu cargo (...)" [46].

Na sentença T-484, de 1992, a Corte Constitucional colombiana definiu que o direito à saúde, em sua natureza jurídica, contempla um conjunto de elementos que podem agrupar-se em dois grandes blocos.

O primeiro bloco seria aquele que "identifica como um predicado imediato do direito à vida, de maneira a atentar contra a saúde das pessoas equivale a atentar contra sua própria vida. Por estes aspectos, o direito à saúde resulta um direito fundamental".

O segundo bloco coloca o "direito à saúde com um caráter assistencial, estabelecido nas referências funcionais do denominado estado Social de Direito, em razão de que seu reconhecimento impõe ações concretas" [47].

Mas é interessante notar a relevância que a Corte Constitucional colombiana confere para a dor, para o sofrimento e para a iminência da morte.

Uma senhora sofria de uma lesão na coluna vertebral e necessitava de cirurgia. Com a demora na prestação do serviço e com a dor que a impedia, inclusive de subir e descer escadas, ela ajuizou ação pleiteando a realização da cirurgia. Segundo a Corte Constitucional, quando uma entidade se nega a prestar um serviço requerido por uma pessoa para eliminar, ou ao menos mitigar, as dores e sofrimentos que são produzidas por uma enfermidade, ela submete a pessoa a tratamentos cruéis e desumanos [48].

A partir do precedente acima, a Corte Constitucional iniciou a proteção ao direito à saúde, reputando-o como fundamental por sua similaridade com a vida digna e a integridade pessoal. Segundo a Corte:

Uma lesão que gera dor à pessoa e que pode ser evitada mediante uma intervenção cirúrgica, constitui-se de uma forma de tratamento cruel (CP, art. 12) quando, verificada sua existência, omite-se o tratamento para sua cura. A dor intensa reduz a capacidade da pessoa, impede seu livre desenvolvimento e afeta sua integridade física e psíquica. A autoridade competente que se nega, sem justificação suficiente, a tomar as medidas necessárias para evitá-lo, omite seus deveres, desconhece o princípio da dignidade humana e torna vulneráveis os direitos à saúde e à integridade física, psíquica e moral da pessoa. (...) A dor envilece à pessoa que sofre na vulnerabilização do direito à integridade pessoa do afetado, possibilitando a este último a possibilidade de executar as ações judiciais para a proteção imediata de seus direitos fundamentais [49].

Após percorrer o legado da jurisprudência da Corte Constitucional colombiana, percebe-se que o que o Ministro Celso fez foi conceber o direito à saúde de Marcos José como similar ao direito à vida, de caráter fundamental, em razão das limitações insuperáveis que aquele tipo de vida – decorrente da omissão estatal – lhe causava.

5.4 A Busca da Felicidade – Marcos José e o encontro com o Pai

O jovem Marcos José buscou a felicidade. Mesmo desamparado pelo Poder Executivo, ele lutou e o fez buscando o Poder Judiciário.

A implantação do marcapasso foi feita com sucesso.

Dia 21.12.2009, faltando três dias para a noite de Natal, Marcos teve uma parada cardíaca decorrente de um pneumotórax, a formação de uma bolha de ar que passa a comprimir o coração e o pulmão.

Certamente ouviremos aqueles que dirão: "Para que tanto dinheiro se no final de tudo o garoto morreu?". A indagação é odiosa e provoca náuseas. Mas existe.

Não custa recordar o que ficou registrado em parecer do Procurador de Justiça do Rio Grande do Sul, numa ação judicial na qual um soropositivo reivindicava medicamentos: "o autor foi contaminado por um vírus letal; poderá morrer mais rapidamente sem o medicamento – mas, certamente, vai morrer de qualquer forma (...) a sobrevida do autor nada contribuirá para a sociedade à qual representa um risco de disseminação da doença" [50].

Esqueçam aqueles que pensam assim.

Marquinhos não resistiu, mas sua história, convertida num precedente do STF, servirá de inspiração para muitos.

A felicidade talvez não seja um fim em si mesmo. É possível que o seu gozo esteja, exatamente, na sua busca.

Sobre o autor
Saul Tourinho Leal

Professor de Direito Constitucional do Intituto de Ensino Superior de Brasília (IESB). Mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEAL, Saul Tourinho. O princípio da busca da felicidade e o direito à saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2913, 23 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19389. Acesso em: 22 dez. 2024.

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