2. O Ativismo Judicial
O ativismo judicial é a idéia nascida com a mudança de paradigma decorrente da passagem do Estado de Direito para o Estado Social e Democrático de Direito no final da Segunda Grande Guerra. A nosso ver, esse discurso, a despeito de ser acertado em grande parte de seus termos, mostra-se exacerbado na judicialização, por vezes, irracional, do orçamento público, atividade para a qual consideramos que o Poder Judiciário, no Brasil, ainda carece de muita legitimidade.
2.1. O Desenvolvimento do Ativismo Judicial
O ativismo judicial 28 é a idéia de que causas antes alijadas da análise por parte do Poder Judiciário como, por exemplo, o orçamento destinado à saúde pública, não podem mais ficar na exclusiva apreciação dos Poderes Executivo e Legislativo. O ativismo judicial supera o paradigma imposto pela ideologia liberal de separação de poderes e considera que há tão-somente funções que predominam em determinado poder e não em outro, de modo a permitir uma dialética relação entre eles.
Esse novo posicionamento tem levado a um protagonismo cada vez maior do Poder Judiciário, mormente quando da abordagem da judicialização das políticas públicas de saúde no Brasil, o que, por sua vez, tem levado alguns juristas a considerarem o presente século XXI como sendo o do Judiciário, assim como o XIX fora o do Executivo e o XX o do Legislativo. Como observado acima, tal novel entendimento decorre do fato da superação do dogma liberal de absoluta separação entre os Poderes, presentemente, ter-se-á, então, somente o predomínio de algumas funções.
Carlos Ari Sundfeld, em sua obra Fundamentos do Direito Público, afiança que o paradigma da separação de poderes absoluto pela doutrina do Barão de Montesquieu, em O Espírito das Leis, foi suplantado pelo arquétipo que considera o predomínio de funções. De tal azo, há funções judiciais no Executivo como o processo administrativo, funções legislativas como a Medida Provisória; no Judiciário há funções executivas como atos administrativos, e legislativas como a interpretação analógica; no Legislativo há funções judiciais como o julgamento do Presidente da República por crime de responsabilidade, e executivas como o ato administrativo 29.
Essa mudança de paradigma ocorreu no fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com a passagem do Estado Liberal ao Estado Social ou ainda do Estado de Direito para o Estado de Bem-Estar Social. Com esse câmbio, o Judiciário deixou de ser um "departamento técnico-administrativo" e passou a ser um Poder protagonista, ao superar o discurso vazio de defesa da subsunção legal na qual predominaria uma suposta literalidade da lei.
Com o Estado Social, abrolha um debate muito mais aberto e principiológico que fundamenta o exercício de atividade por parte do Poder Judiciário em mundos que antes eram reservados aos demais Poderes, tanto o é que, preconceituosamente, essa atitude tem sido denominada de ingerência ou de intervenção nos outros Poderes. Mais uma vez, o caso da judicialização das Políticas Pública de Saúde é salutar para demonstrar como uma área, o orçamento público destinado à promoção da saúde, antes alijada da apreciação judicial, passou a sê-lo, atualmente.
Assim sendo, com o estabelecimento da relação dialética entre as esferas jurídica e política, antes segregadas pela doutrina clássica liberal da auto-restrição ou da moderação judicial 30, o orçamento público – surgido com o objetivo de separar os patrimônios do Estado e do seu administrado e desenvolvido com o fito de legitimar o gasto público pela participação dos representantes do povo – passou a ser passível de controle de constitucionalidade abstrato e concentrado pelo STF, o qual, mudando sua jurisprudência anterior, analisou a constitucionalidade da LDO mesmo diante da concretude da referida lei.
O Poder Judiciário, portanto, não se encontra mais adstrito a uma função judicante classicamente entendida, haja vista que, como no caso da saúde, aquele Poder tem, por exemplo, destinado verbas a tratamentos não contemplados pelo Sistema Único de Saúde. Nesses casos, tem-se entendido que a justiça – com "j" minúsculo – está sendo feita no caso concreto do querelante (a microjustiça), mas como fica o cidadão que não promover a sua competente ação judicial para ser atendido pelo SUS (a macrojustiça)?
Sendo assim, com as políticas públicas de saúde sendo analisadas e estabelecidas pelo Poder Judiciário diante do novel quadro de apreciação do orçamento público, configurou-se o ativismo judicial em oposição à ideologia da auto-restrição ou moderação judicial que pregava a não intervenção da Justiça em áreas – pelo menos antes – eram consideradas de apreciação exclusiva do Executivo e do Legislativo. Mas como tem dado-se essa judicialização no cenário nacional?
2.2. O Ativismo Judicial e as Políticas Públicas de Saúde
O ativismo judicial com gênese na mudança de paradigma do Estado Liberal ao Social empreendeu um câmbio no orçamento público que antes era de apreciação exclusiva dos Poderes Executivo e Legislativo, sendo o Judiciário mero controlador e fiscalizador. Com efeito, com a judicialização do orçamento público resultou na das políticas públicas de saúde, mote de tão grande importância que já foi, inclusive, tema de uma Audiência Pública, a Audiência Pública da Saúde, que discutiu o problema do SUS, a qual fora convocada pelo então presidente do STF, Ministro Gilmar Ferreira Mendes, com o objetivo de ouvir as parte envoltas com o problema.
A nosso ver, essa judicialização das políticas públicas de saúde tem sido exacerbada e, por conseguinte, irracional e desregrada, como demonstrará a análise da jurisprudência nacional. Assim como ocorre na maioria das mudanças de paradigma, num primeiro momento do câmbio a mutação mostra-se com força total, o que produz certos atropelos pelo caminho, mas que é necessário para que a mutação produzida não seja solapada pela volta do regime anterior com todos os prejuízos que isso representaria.
Na Revolução Francesa que se enceta em 1789 e vai até 1799 ou 1815, para outros, os primeiros tempos foram de grande radicalismo com a fase do Grande Terror, na qual o Comitê de Salvação Pública, a mando de Robespierre, faz muitas cabeças rolarem; posteriormente, houve uma moderação para França intentar conciliar liberdade, igualdade e fraternidade 31. O mesmo precisaria acontecer com a judicialização do SUS 32; já se vão quase 23 (vinte e três) anos da promulgação da Carta de 1988 imbuída pelos ideais propugnadas pela mudança de paradigma que representou a passagem do Estado Liberal ao Social e o Poder Judiciário brasileiro ainda está a cortar cabeças.
Por um lado, não há que predominar a chamada insinceridade normativa presente em Constituições anteriores e que havia dispositivos constitucionais que não ultrapassavam a folha de papel, porquanto sua efetividade era solapada por uma hermenêutica clássica e liberal que, por vezes, impedia a efetividade de direitos subjetivos. De tal azo, tais Leis Maiores – para evitar prestigiar-lhes com o título de Constituição – eram constituições meramente semânticas na classificação criada por LOEWENSTEIN 33.
Isso, haja vista que, quanto à correspondência da Constituição com a realidade fática, um critério ontológico, Karl Loewenstein propõe a classificação das Magnas Cartas em normativas, nominalistas (nominativas ou nominais) e semântica. Para FERREIRA, as constituições semânticas "são simples reflexos da realidade política, servindo como mero instrumento dos donos do poder e das elites políticas, sem limitação do seu conteúdo" 34. Como advogado por Ingo Wolfgang Sarlet 35, não podemos nos permitir tal Lei Maior.
Por outro lado, como criticado – sem o uso do termo em seu habitual tom pejorativo – pela Escola dos Direitos Fundamentais do Rio de Janeiro, a qual assegura que, no Brasil, para não haver o perigo de, no discurso tópico, principiológico e aberto, do ativismo judicial, na judicialização do SUS, transformar-se em mero subjetivismo jurídico, a interpretação judicial deve ser rigorosa, o que muitas vezes é difícil numa nação de tradição autoritária que passa a empregar argumentos tópicos em campos com o do direito à saúde. Nesse ponto, em conformidade com MOREIRA, o Brasil seria um país onde as pessoas costumariam "achar" sem jamais terem "procurado" 36.
A hermenêutica "engajada" do Poder Judiciário possui limites que não podem ser desconhecidos tanto pelo teórico do direito como também, outrossim, pelo aplicador dele, tendo em vista que, "se o Direito é a ciência do dever-ser, parece intuitivo que o domínio de suas regras seja o poder-ser. Todavia, "o papel aceita tudo" e a Constituição de 1988 mais que compromissória, analítica e dirigente, é casuística e prolixa" 37. De tal sorte, haveria limites na interpretação do direito.
Nesse ponto, em conformidade com Luís Roberto Barroso, quanto aos limites hermenêuticos, "o Direito tem limites que lhes são próprios e que por isso não pode, ou melhor, não deve normatizar o inalcançável" 38, pois essas normas já nasceriam condenadas à ineficácia diante da ausência de recursos materiais suficientes para produzir sua concretização. Exemplo paradigmático, mais uma vez, é o da judicialização das políticas públicas de saúde, na qual o juiz não poderia ou pelo menos não deveria, pelos vocábulos acertados de BARROSO, dar vazão a interpretações infactíveis.
Assim sendo, o Poder Judiciário teria de atuar de maneira conciliatória: promovendo a efetividade das normas constitucionais sejam elas programáticas ou não, evitando que a Constituição de 1988 seja qualificada com a pecha de semântica na classificação de LOEWENSTEIN, mas não teria de apelar para uma interpretação engajada que esvaziaria a eficácia das normas ao promover decisões de "tudo ou nada". A análise do caso concreto, então, dependeria do argumento tópico contido no princípio da razoabilidade para os europeus e proporcionalidade para os estadunidenses, de forma a intentar compatibilizar os misteres sem a exclusão de um deles por completo.
A nosso ver, não é isso que tem realizado o Poder Judiciário nacional no exercício de sua jurisdição, porquanto, pela análise de jurisprudência coletada nos mais diferentes graus da Justiça – conquanto sejam os Tribunais dos Estados que concentrem a grande judicialização –, os magistrados nacionais tem voltado às costas para qualquer argumento que ultrapasse a apreciação concreta do caso. Com efeito, conforme Gustavo Amaral, os TJ´s estariam realizando a microjustiça cabal e em detrimento da macrojustiça 39.
Por exemplo, pela análise da jurisprudência dominante dos Tribunais Superiores de nosso país, no caso STF e STJ, podemos afirmar que o Poder Judiciário do Brasil tem seguido o caminho da judicialização das políticas públicas de saúde pela perspectiva do "tudo ou nada", na qual o direito à saúde seria um absoluto passível de ser aplicado a todo e qualquer caso concreto. A nosso ver, essa judicialização mostra-se excessiva, irracional e desproporcional, ao proferir decisões que desequilibram o SUS. Provando nossas assertivas, apresentamos os seguintes casos comprobatórios:
O STF, por exemplo, tem sido pródigo em decisões que redefinem a lista do SUS tanto de medicamentos quanto de tratamentos que são fornecidos por aquele sistema. No caso do AI 616.551 AgRg/GO, de relatoria do Ministro Eros Grau, no qual restou consignado, quanto ao fornecimento de medicamentos pelo SUS: no caso do "paciente carente de recursos indispensáveis à aquisição dos medicamentos de que necessita é obrigação do Estado de fornecê-los" 40. Nos termos da seguinte ementa:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS A PACIENTE HIPOSSUFICIENTE. OBRIGAÇÃO DO ESTADO. SÚMULA N. 636. DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 1. Paciente carente de recursos indispensáveis à aquisição dos medicamentos de que necessita. Obrigação do Estado de fornecê-los. Precedentes. 2. Incidência da Súmula n. 636. do STF: "não cabe recurso extraordinário por contrariedade ao princípio constitucional da legalidade, quando a sua verificação pressuponha rever a interpretação dada a normas infraconstitucionais pela decisão recorrida". 3. Agravo regimental a que se nega provimento. 41
Por sua vez, o STJ já chegou a possuir jurisprudência, quando da judicialização das políticas públicas da saúde pela via indireta do orçamento, no caminho de defender que SUS deveria arcar com os gastos de medicamento e tratamento realizado no exterior, ainda que tal fosse experimental e não registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), o que, a nosso ver, desnuda um pouco dos desproposito que havia tornado-se a judicialização de questões trágicas, na linguagem de ATIENZA, como a presente no problema do SUS. Comprovando o exposto acima:
ADMINISTRATIVO E CIVIL - RECURSO ESPECIAL - AÇÃO ORDINÁRIA - COBRANÇA DE VALORES PÚBLICOS - LIMINAR QUE AUTORIZOU PAGAMENTO DE TRATAMENTO DE SAÚDE NO EXTERIOR - REVOGAÇÃO SUPERVENIENTE – EFEITOS SOBRE SITUAÇÕES CONSOLIDADAS - SÚMULA 405/STF - PRESTÍGIO ÀS EXPECTATIVAS LEGÍTIMAS - BOA-FÉ OBJETIVA. 1. O CASO DA RETINOSE PIGMENTAR. A determinação judicial de custeio pelo SUS dos tratamentos de retinose pigmentar no exterior, especialmente na República de Cuba, gozou de franco prestígio no STJ até o julgamento, em 7.6.2004, do MS 8.895/DF, Rel. Min. Eliana Calmon, Primeira Seção. No período anterior, houve diversas liminares em favor de pacientes portadores dessa patologia oftálmica, algumas das quais confirmadas por sentenças; outras, porém, como é o caso dos autos, revogadas. 2. A SITUAÇÃO DOS AUTOS. A agravada se viu envolvida nas ondas jurisprudenciais, que modificaram o entendimento da Corte sobre o problema. Na situação, porém, havia uma particularidade. A liminar de 27.4.2001 havia-lhe deferido o pedido de custeio do tratamento pelo SUS, pelo que ela viajou e gastou R$ 25.443,43. A sentença, quando ainda vigorava a posição do STJ em favor do recurso à terapia no estrangeiro, revogou a liminar e denegou a segurança. Em 2004, quando da mudança de orientação no STJ, a União promoveu ação de cobrança contra a agravada, a qual foi repudiada nas instâncias ordinárias sob o color do respeito ao fato consumado e à irreversibilidade do provimento. 3. A SÚMULA 405/STF. É certo que existe o enunciado do Pretório Excelso que dá eficácia retroativa à revogação superveniente de liminar em mandado de segurança. A despeito da Súmula 405/STF, é de se admitir excepcionalmente o emprego dos conceitos jurídicos indeterminados do fato consumado ou da boa-fé objetiva no recebimento de valores pagos em caráter alimentar. Essa postura tem prosperado no próprio STF, quando analisa a devolução de vantagens remuneratórias recebidas de boa-fé por servidores públicos e, posteriormente, declaradas inconstitucionais. 4. PRIMAZIA DO PLANO DOS FATOS. É evidente que a nulidade póstera, seguindo-se os esquemas tradicionais do Direito Civil, implica a ineficácia dos atos erigidos sob o império da invalidez. Os romanos referiam-se a essa tensão entre o nulo e a eficácia sob a velha parêmia quod nullum est, nullum effectum producit (o que é nulo, efeito algum produz). Todavia, esse conceito há sido mitigado, quando a situação de fato sobrepõe-se à realidade jurídica. Desconsidera-se o primado de que se deve fazer Justiça ainda que pereça o mundo (fiat iustitia pereat mundi). É uma conseqüência da tragédia humana, que se mostra pela falibilidade de seus atos e suas instituições. Diz-se, na doutrina moderna, que há efeitos residuais no nulo. 5. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA E CARÁTER PARTICULAR DESTA DECISÃO. O Direito contemporâneo leva em conta as expectativas legítimas das partes e da boa-fé objetiva. É óbvio que a solução aqui exposta não pode ser aplicada a todos os casos. Há de ser vista modus in rebus, com ponderação e prudência, sem qualquer vocação a se projetar como um precedente aspirante à universalidade. Veda-se a cobrança dos valores recebidos de boa-fé pela recorrida neste caso e presentes as circunstâncias dos autos. O sacrifício ora realizado em detrimento da segurança jurídica, mas em favor da Justiça, é tópico e excepcional. 6. PRINCÍPIO DA CONFIANÇA, PRETENSÃO À PROTEÇÃO E MORALIDADE ADMINISTRATIVA. Prestigia-se o primado da confiança, assente no § 242, Código Civil alemão, e constante do ordenamento jurídico brasileiro como cláusula geral que ultrapassa os limites do Código Civil (arts.113, 187 c/c art.422) e que influencia na interpretação do Direito Público, a ele chegando como subprincípio derivado da moralidade administrativa. Ao caso aplica-se o que a doutrina alemã consagrou como "pretensão à proteção" (Schutzanspruch) que serve de fundamento à mantença do acórdão recorrido. Recurso especial improvido, prejudicado o agravo regimental. 42
No entanto, não obstante não seja mais dominante no âmbito do egrégio STJ, a jurisprudência que advogava pelo pagamento pelo SUS de tratamentos e medicamentos realizados no exterior ainda grassa nos Tribunais de Justiça, haja vista que não há, em nosso ordenamento jurídico, nenhum meio de impor que a mutação ocorrida no entendimento do STJ seja levando aos diversos Colegiados estaduais 43, os quais são os que mais lidam com a judicialização da gestão do SUS.
Sendo assim, a jurisprudência nacional ainda conta com diversos casos em que, quando da judicialização do orçamento público destinado à implementação de políticas públicas de saúde, a decisão fora no sentido de impor ao SUS o pagamento de tratamento e medicamento realizados no exterior, o qual muitas vezes ainda era experimental e, por conseguinte não era registrado na ANVISA. Nesse sentido, foi a decisão proferida no Processo 351/99, no qual um menor impúbere obteve liminar para que o Estado de São Paulo arcasse com seu tratamento para distrofia muscular no valor de R$ 174.500,00.