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A família bigâmea

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6. Família e afeto

Ao tempo do Código Civil de 1916 a família era compreendia como unidade de produção e transmissão do patrimônio aos herdeiros, pouco importando laços afetivos. Já a família moderna está fundada “no afeto, na ética, na solidariedade recíproca entre os seus membros e na preservação da dignidade deles.”[20]

A família tem hoje uma função instrumental, com o “desiderato de colaborar para a realização das pessoas humanas que compõem um determinado núcleo.”[21] A entidade familiar não  tem finalidade própria, servindo para alcançar a felicidade de seus membros.

Em razão disso, a afetividade é essencial para a constituição de uma família, sendo seu principal requisito. A affectio “desponta como elemento nuclear e definidor da união familiar, aproximando a instituição jurídica da instituição social.  A afetividade é o triunfo da intimidade com valor, inclusive jurídico, da modernidade.”[22]

A família moderna é mutável e dissolúvel, bastante diferente daquela “instituição natural e de direito divino, portanto imutável e indissolúvel, na qual o afeto era secundário.”[23]  O afeto passou a ser “o único elo que mantém pessoas unidas nas relações familiares”,[24]embora o Código Civil de 2002 não o exija expressamente.

Somente a convivência afetiva voluntária traz felicidade aos indivíduos que compõem uma entidade familiar.  A afeição é mais importante que os laços de parentesco.  “As relações de consanguinidade, na prática social, são menos importantes que as oriundas de laços de afetividade e da convivência familiar.”[25].

Não há nenhuma padrão a ser obedecido para que uma família seja constituída, sendo necessário apenas que haja afeto e voluntariedade.  Não há um tipo ideal de família, pois cada pessoa é dotada de sentimentos e necessidades próprias, que podem ser bastante diferentes do  comum.  O Estado deve reconhecer e proteger todo e qualquer modelo de convivência afetiva estável.[26]


7. A família bigâmea

7.1. Definição e requisitos

A família bigâmea é aquela na qual um dos cônjuges ou companheiros, ou ambos, possui uma relação afetiva estável com terceira pessoa, com o consentimento expresso ou tácito do seu consorte. 

 O terceiro integrará o núcleo familiar em razão do vínculo afetivo formado com um ou ambos os cônjuges.[27]  O seu ingresso, contudo, dependerá da concordância, expressa ou tácita, do outro cônjuge, assim como ocorre na adoção, para a qual é necessária a anuência expressa do outro cônjuge ou companheiro (art. 165, I, da lei 8.069/90).

Todos farão parte de um único núcleo familiar, ao qual aderiram de modo voluntário e do qual podem sair, a qualquer tempo.  Não há dois núcleos familiares. A presença de qualquer fator que possa influenciar na livre manifestação da vontade de integrar o núcleo familiar (coação, fraude, ignorância) desqualifica-o como família.

Os requisitos necessários para sua formação são: 1) manter  relação afetiva com duas pessoas, sendo casado ou não; 2) estabilidade, que significa relacionamento cotidiano, ainda que não seja diário, por um longo período de tempo; 3) consentimento expresso ou tácito de todos os envolvidos.

Assim, aqueles que praticam sexo de forma casual, tendo vários amantes eventuais ao longo da vida, não constituirão com cada um deles uma nova entidade familiar. Será preciso haver afeto e uma relação estável, permitida pelo cônjuge ou companheiro mais antigo. 

7.2 Desnecessidade de ostensividade

Para os adeptos da teoria das famílias simultâneas, não “se configura entidade familiar se esta não se apresenta publicamente como tal.”[28]  Desse modo, “a relação, ainda que estável, mas mantida às ocultas, sem amplo conhecimento público, não pode ser caracterizada como entidade familiar”.[29]

Todavia, para a constituição da família bigâmea basta o consentimento expresso ou tácito do outro cônjuge para que o terceiro ingresse no núcleo familiar e goze da sua proteção. A publicidade pode constituir prova de consentimento tácito, mas não é um requisito para a existência de bigamia.

Se, por exemplo, o relacionamento concubinário de alguém é fato público e notório, certamente também é do conhecimento do seu cônjuge.   Porém, é possível que alguém mantenha um relacionamento não ostensivo.  Desde que haja provas de que o cônjuge consentiu com esse relacionamento (não se opôs), é desnecessário exigir sua publicidade ou ostensividade.  Como observaram Farias e Rosenvald, “a constituição da entidade familiar informal depende, muito mais, da intenção (animus) dos parceiros [...] do que da percepção do público em geral.”[30]

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Pessoas casadas podem comparecer a locais públicos, embora estejam já destituídos de qualquer afeto um pelo outro, mantendo um casamento de aparência, enquanto um cônjuge e seu amante, que se encontram às escondidas, podem amar-se profundamente.[31]

Assim, a ostensividade não é um requisito para a formação da família bigâmea. A manutenção de outra relação afetiva estável por um ou ambos os cônjuges não precisa ser  conhecida do público, mas apenas pelos membros da entidade familiar.

7.3 Consentimento tácito

Quando o cônjuge sabe que seu consorte possui uma relação estável com outra pessoa, e não se opõe, ele concorda tacitamente.  Conforme Gonçalves,  “tácita é a declaração de vontade que se revela pelo comportamento do agente. Pode-se, com efeito, comumente, deduzir da conduta da pessoa a sua intenção.”[32] Por diversas razões uma pessoa pode concordar que seu cônjuge viva em bigamia, sem assentir com isso expressamente.

Para haver concordância tácita é preciso que haja provas de que o cônjuge sabia do relacionamento afetivo do outro com terceira pessoa e nada fez. Sabendo o cônjuge que seu consorte tem um concubino, sua inércia constitui consentimento tácito, salvo se provar que havia motivos relevantes (econômicos, preocupação com os filhos, dentre outros), que não recomendavam a separação.

Além disso, alguém que descobre que seu consorte possui uma relação afetiva estável com terceira pessoa pode não se separar de imediato, mas demonstrar claramente que não concorda,  exigindo categoricamente o término de tal relação.  Nesse caso, só haverá consentimento tácito se o concubinato continuar e o cônjuge traído nada fizer.

Outrossim, não basta que o concubinato seja tolerado. Tolerância não é consentimento.  Quem tolera suporta algo que deseja evitar.  Consentir é aceitar, concordar, porque aquilo não lhe incomoda nem lhe ofende.  Se alguém suporta outro relacionamento mantido por seu cônjuge, não há formação de um núcleo familiar, mas de dois núcleos, separados e antagônicos.[33]

7.4 O dever de fidelidade

A fidelidade conjugal deve ser uma escolha dos cônjuges e não uma imposição legal.  Fala-se muito das virtudes da monogamia, mas isso mostra apenas um ponto de vista. Toda forma de organização familiar (monogamia, bigamia, poligamia) tem aspectos positivos e negativos. O importante não é discutir se uma é melhor do que a outra, mas sim permitir que cada indivíduo escolha livremente aquela que mais se lhe adequa.

Nenhum comportamento que não seja danoso deve ser proibido. A “fidelidade não pode ser encarada como dever jurídico, mas como opção de cada pessoa que se dispõe a conviver afetivamente com outra.”[34]  O adultério, desde que consentido, diz respeito a uma escolha pessoal, à vida privada e à intimidade do indivíduo, bens invioláveis. Ademais:

Os deveres de “fidelidade recíproca”, “vida em comum, no domicílio conjugal”, e “respeito e consideração mútuos” importam profunda interferência na intimidade e na privacidade familiares, que dizem respeito exclusivamente aos cônjuges.  Esses deveres, durante a convivência conjugal, são absolutamente inócuos, pois destituídos de sanção para seus eventuais inadimplementos.[35]

O adultério foi uma realidade mesmo nas épocas de maior repressão social e religiosa. O “amor cavalheiresco da Idade Média, não foi, de modo algum, amor conjugal.  Longe disso, na sua forma clássica, entre os provençais, voga a todo pano para o adultério, que é cantado por seus poetas.”[36] Sobre o dever de fidelidade, observou Freud:

Todos sabem que ele se mostrou inexequível, mesmo por períodos muito breves. Apenas os fracos se submeteram a uma usurpação tão ampla de sua liberdade sexual, e as naturezas mais fortes só o fizeram mediante uma condição compensatória [...]. A sociedade civilizada viu-se obrigada a silenciar sobre muitas transgressões que, segundo os seus próprios princípios, deveria ter punido.[37]

O dever legal de fidelidade parece decorrer mais da intenção de preservar o patrimônio do que a moral familiar[38]. Não há dever de fidelidade entre companheiros (art. 1.724, CC), que possuem bem menos direitos que os cônjuges.


8. O direito de inclusão familiar

O estado civil constitui um dos direitos da personalidade. “Nessa categoria de direitos, que se chamam direitos da personalidade, está o que se refere ao nome de que o indivíduo é portador, ao seu estado civil, às suas condições familiais, às suas qualidades de cidadão.”[39] É o complexo de qualidades que são peculiares a uma pessoa.  No âmbito familiar, indica o estado de casado, solteiro, viúvo, separado ou divorciado, de filho (status familiae).[40]

O estado civil de alguém em relação ao seu parentesco em linha reta, ou seja, que identifica seus ascendentes, é único[41], ou seja, um indivíduo pode ser filho de apenas um pai e uma mãe, por exemplo (não poderá ter mais de um pai ainda que seja adotado, pois nesse caso ele deixa de ter vínculos jurídicos com a família natural).

Porém, o estado civil de alguém em relação aos seus descendentes não é único (um pai pode ter mais de um filho). O parentesco colateral também não (uma determinada pessoa pode ter vários irmãos, tios, primos, etc.). Pode-se até ter mais de uma nacionalidade (há muitos casos de dupla nacionalidade).

Ora, se no caso de parentesco consanguíneo é possível que não haja unicidade do estado familiar, em relacionamentos afetivos ela também não precisa ocorrer. Assim como um casal, que já possui filhos, pode adotar um outro, cessando os laços jurídicos deste com sua família anterior, é possível o ingresso, numa entidade familiar, de um segundo consorte de algum dos cônjuges, havendo consentimento do primeiro.  Contudo, ninguém pode integrar validamente dois ou mais núcleos familiares. Tentaremos explicar esse princípio analisando duas hipóteses.

Primeira hipótese: A, casado com B, mantém um relacionamento estável com C, com o consentimento de B. Se C é uma pessoa solteira, poderá fazer parte do núcleo familiar formado inicialmente por A e B com o status de companheiro (união estável) de A.  Porém, se C  for uma pessoa casada, já fará parte de um núcleo familiar (formado por C e D, por exemplo), não podendo também fazer parte do núcleo formado por A e B. Nesse último caso, ainda que C mantenha um relacionamento estável com A, com consentimento de B, não constituirá um novo núcleo familiar, vez que C já faz parte de um.

Segunda hipótese. A é casado com B e mantém relacionamento afetivo estável com C, pessoa solteira. Porém, C passa a se relacionar de maneira estável também com D, indivíduo solteiro. Nesse caso, deve prevalecer e receber proteção jurídica apenas o núcleo familiar formado por C e D.  Mas se D for uma pessoa casada, C poderá fazer parte tanto do núcleo familiar de A como de D, conforme as circunstâncias, mas nunca dos dois.

Ou seja, uma pessoa só tem direito de integrar um único núcleo familiar, de modo que um indivíduo solteiro pode ingressar no núcleo familiar de alguém já casado e formar um novo núcleo, mas alguém já casado não pode constituir um novo núcleo familiar com alguém também casado ou que viva em união estável.

Qualquer pessoa tem o direito de constituir um núcleo familiar ou integrar algum já constituído. O direito de fazer parte de uma família constitui um direito fundamental de todo ser humano, bastando que não faça de nenhum. 

Em resumo: uma pessoa solteira pode fazer parte do núcleo familiar de um indivíduo casado, ao manter com ele um longo relacionamento afetivo, com status semelhante ao de cônjuge; todavia, uma pessoa casada, mesmo que mantenha um relacionamento afetivo estável com alguém, não integrará o núcleo familiar deste na condição de cônjuge, porque já é cônjuge de outra pessoa (não há necessidade dessa inclusão).


9. A discriminação do concubinato

No sistema do Código Civil de 2002, o relacionamento afetivo estável com pessoa casada, chamado de concubinato[42], não constitui união estável, em razão da impossibilidade de sua conversão em casamento.

O tratamento dado ao concubino atualmente é semelhante ao do filho adulterino antes da Constituição de 1988. O concubino constitui uma pessoa “desprivilegiada”, com quase nenhum direito, tal como acontecia em relação aos filhos adulterinos, sendo vítima de grande preconceito social:

Diferentemente de muitas situações em que a população, a mídia, a igreja, entre outros, reclamam à ordem constitucional proteção efetiva, a ideia de se conceber qualquer tipo de chancela jurídica a determinada relação concomitante a um casamento formal ainda não recebe nenhuma aprovação do senso comum.[43]

O desejo da Constituição de 1988 é promover o bem de todos, proibindo-se qualquer forma de discriminação (art. 3º, IV, e art. XLI, da Constituição).  Mas a monogamia imposta por lei impede a concretização desse objetivo, penalizando a parte mais fraca. O Código Civil protege as mulheres de maior status social, formalmente casadas, ainda que não possuam nenhum afeto por seus maridos.  Viola a dignidade humana das concubinas, que não possuem direito algum, considerando-as verdadeiros seres inferiores.  Se ao mesmo fato deve-se aplicar o mesmo direito (ubi eadem ratio, idem jus):

não cabe aos operadores do Direito rotular determinada situação ou atitude como certa ou errada, moral ou imoral, mas buscar a melhor solução para o caso concreto, até porque, sabidamente, os casos existem, geram efeitos sociais e, por isso, não podem ser ignorados pela ordem jurídica.[44]

Se alguém consegue, durante longos anos, manter dois relacionamentos afetivos estáveis, mostra com isso que são compatíveis.  O concubino é considerado o principal responsável pelo término de casamentos, quando, na verdade, os culpados  são os próprios cônjuges, que perderam o afeto um pelo outro.

Devem ser declaradas inconstitucionais, por ferirem o principio da isonomia e da dignidade da pessoa humana, as normas que excluem o concubino de pessoa casada de qualquer proteção estatal no âmbito do direito de família, com base numa visão da família como uma entidade invariável, abstrata e perfeita.[45]

A lei civil, ao negar direitos ao concubino de alguém casado, não está resguardando a família deste, pois aquele também faz parte dessa família (obedecidos os requisitos mencionados alhures).  Está apenas discriminando um dos membros da entidade familiar e privilegiando outros.

Sobre os autores
Alexandre Assunção e Silva

Procurador da República. Mestre em Políticas Públicas.

Magaly de Castro Macedo Assunção

Advogada especialista em Ciências Criminais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Alexandre Assunção; ASSUNÇÃO, Magaly Castro Macedo. A família bigâmea. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3210, 15 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21517. Acesso em: 18 nov. 2024.

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