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O casamento homoafetivo à luz da constitucionalização do Direito Civil

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Agenda 09/11/2012 às 08:25

3 DA REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA

Valendo-se do legado aqui estudado do poliformismo familiar e da afetividade como elemento propulsor da entidade familiar, posto que valor maior da mesma, passemos ao trato da repersonalização do direito de família, que, sem embargo de sua imbricação com o instituto da família discutido em linhas atrás, merece capítulo próprio face à sua magnitude e importância quanto à possibilidade do casamento homoafetivo.

Os autores familistas tradicionais adeptos da teoria da inexistência do casamento homoafetivo outorgavam especial importância aos efeitos do casamento apurados no âmbito de responsabilizações econômicas e patrimoniais, bem como na função da família diante do Estado e da moral religiosa. Não se vislumbrava o devido valor à afetividade, elemento substancial caracterizador da entidade familiar, que deve viger nas relações domésticas, e que se apresenta como ponto fundante e escopo da família.

A fim de corroborar esse entendimento, Jorge Medeiros (2008) colaciona excertos de posicionamentos de alguns daqueles autores, aos quais denomina “tradicionalistas”. Ei-los, pois, sinteticamente:

“Relações pessoais, patrimoniais e assistenciais – são os três setores em que o direito de família atua” (Caio Mário Pereira, 2004). “O direito de família tem por objeto a exposição dos princípio jurídicos que regem as relações de família, quer quanto à influência dessas relações sobre as pessoas, quer sobre os bens” (Pontes de Miranda, 2001). “A família se apresenta, portanto, como instituição que surge e se desenvolve do conúbio entre o homem e a mulher e que vai merecer a mais deliberada proteção do Estado, que nela vê a célula básica de sua organização social” (Sílvio Rodrigues, 2002). “Esse direito [direito de família], que tem por objetivo tutelar o grupo familiar no interesse do Estado, apresenta importantes características. (...) A parcela mais ponderável de sua estruturação recebe da moral e da religião as normas que lhe regulam a constituição, bem como as relações entre seus membros” (Washington de Barros Monteiro).

Ato contínuo, Jorge Medeiros sustenta que esse não é o papel do Direito de Família coevo, pois deve-se procurar “destacar o caráter eudemonista da família e da interpretação que deve guiar o Direito de Família, consubstanciada na primordialidade da realização individual de cada um dos componentes da entidade familiar”. Em idêntica senda, Luis Edson Fachin (1999) ensina que a atual concepção de família compreendida pelo novo Código Civil – “código constitucional” – apresenta o fortalecimento de “relações de afeto, de solidariedade e de cooperação. Proclama-se a concepção eudemonista da família: não é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas sim a família e o casamento é que existem para o seu desenvolvimento pessoal, em busca de sua aspiração à felicidade”. No mesmo sentido, também Paulo Lôbo disciplina:

A família atual brasileira desmente essa tradição centenária. Relativizou-se sua função procracional. Desapareceram suas funções política, econômica e religiosa, para as quais era necessária a origem biológica. Hoje, a família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas: a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida. Sendo assim, é exigente de tutela jurídica mínima, que respeite a liberdade de constituição, convivência e dissolução; a autorresponsabilidade; a igualdade irrestrita de direitos, embora com reconhecimento das diferenças naturais e culturais entre os gêneros; a igualdade entre irmãos biológicos e adotivos e o respeito a seus direitos fundamentais, como pessoas em formação; o forte sentimento de solidariedade recíproca, que não pode ser perturbada pelo prevalecimento de interesses patrimoniais. Em trabalho que dediquei ao assunto, denominei esse fenômeno de repersonalização das relações familiares. É o salto, à frente, da pessoa humana no âmbito familiar (LÔBO, 1999).

3.1 Da Constitucionalização do Direito Civil

De acordo com Jorge Medeiros, os antigos valores consagrados à família – patrimoniais, econômicos, religiosos e mesmo políticos – perderam espaço para a afetividade e a realização pessoal como cernes das entidades familiares em função da adequação das leituras de Direito de Família ao atual paradigma jurídico. Segundo ele, a repersonalização do Direito de Família dialoga com uma mudança ainda maior ocorrida no âmbito jurídico: a constitucionalização do Direito Civil. Vejamos:

O Direito Civil é fruto da adequação da interpretação jurídica ao paradigma do Estado Democrático de Direito previsto pela Constituição da República, paradigma esse que concede importante dimensão aos princípios constitucionais dentro do ordenamento e na sua relação com os diversos ramos do Direito, superando, dessa forma, leituras tradicionalistas que defendiam a ideia de desnecessidade de adequação do ramo civilista aos princípios presentes na Constituição (MEDEIROS, 2008, p. 40).

Segundo Luis Roberto Barroso, o conceito de família tem sofrido importantes mudanças. Nos dizeres do autor:

A constitucionalização do direito deslocou a ênfase do instituto para os aspectos existenciais, em substituição às questões patrimoniais. Mais importante ainda é a caracterização que tem sido feita da família como meio de promoção – ambiente privilegiado – para o desenvolvimento da personalidade de seus membros, e não mais como um fim em si mesmo ou um mero símbolo de tradição (BARROSO, 2006).

A constitucionalização do Direito Civil consiste, assim, na interpretação da lei civil conforme a Constituição Federal, e não o reverso, vale dizer, a interpretação da Constituição segundo o Código Civil, como ocorria e ainda ocorre com frequência[13]. Não é outra a razão porque os adeptos da teoria do casamento inexistente, que em breve será aqui aventada, obstinam encontrar fundamento para a putativa vedação ao casamento homoafetivo. Com efeito, aqueles autores realizam uma leitura civilista da Constituição, e não uma leitura constitucional do Código Civil, como se este, ao invés daquela, fosse a lei maior, a base sólida da estrutura do ordenamento jurídico pátrio.

A constitucionalização do Direito Civil submete o direito positivo à observância dos fundamentos de validade, dos princípios e disposições estabelecidos pela Constituição. Paulo Lôbo salienta que a constitucionalização “é o processo de elevação ao plano constitucional dos princípios fundamentais do direito civil, que passam a condicionar a observância pelos cidadãos, e a aplicação pelos tribunais, da legislação infraconstitucional”.

3.1.1 A Reconstrução da Dicotomia Público e Privado

Analisando a repersonalização do Direito de Família sob outra ótica, Jorge Medeiros explica que “a compreensão da constitucionalização do Direito Civil passa pelo entendimento da reconstrução dos significados da dicotomia público e privado dentro dos paradigmas de Estado construídos ao longo da experiência constitucionalista”.  São três os paradigmas constitucionais: Estado Liberal, Estado Social e Estado Democrático de Direito. Segundo o autor, os entendimentos desenvolvidos na seara do direito civil e do direito de família nos contextos desses três paradigmas permitem desenvolver uma “abordagem cidadã, contemporânea e constitucionalmente adequada para o tratamento jurídico dispensado a relações afetivas e projetos de compartilhamento de vida entre pessoas do mesmo sexo”.

Ainda sobre a superação da dicotomia direito público e direito privado[14], Ana Carla Harmatiuk Matos preleciona que não mais se verifica a demarcação de espaços jurídicos nem a separação de princípios e regras de forma absoluta. Segundo ela, essa mudança de cenário é decorrente dos novos valores que, aos poucos, foram sendo incorporados ao contexto sócio-jurídico e, com isso, as Constituições passaram a açambarcar os temas há muito tidos como privados, inaugurando-se, assim, a privatização do direito público e a propagação de “um direito positivo principiológico”. Nas suas palavras, “a tutela jurídica de direitos – partindo do valor da dignidade da pessoa humana e apoiada à concepção de um direito civil constitucional – relaciona-se com a percepção de que, na atual ordem do sistema jurídico, supera-se a divisão absoluta entre direito público e direito privado”.

Para além disso, a autora prevê essa perspectiva civil-constitucional do ordenamento jurídico como a construção de um outro direito privado, formado pela conexão entre o direito constitucional e o direito civil, mas com peculiaridades que o diferenciam de ambos. Nas palavras da autora:

Traduz-se, assim, necessária uma visão interdisciplinar, mormente no que tange ao direito civil constitucional. Nesse novo momento histórico-jurídico, marcado por uma diversa metodologia civilística, esse novo viés não deve significar simplesmente uma justaposição entre o direito civil clássico e o direito constitucional. Trata-se da construção de outro direito privado, formado por intermédio da comunicação entre o direito constitucional e o direito civil – no entanto deles se diferenciando. Não se trata mais de uma normativa codificada a pretender a completude e a transposição de seu tempo; contrariamente, abre-se um espaço para a construção (MATOS, 2011).

3.2 Da Releitura Constitucional do Casamento Civil

Ana Carla Harmatiuk Matos explica que, diante dessa perspectiva civil-constitucional, o papel da codificação do direito civil perde sua centralidade, a qual passa a ser ocupada pela Constituição. Não devia se diferente, vez que ela está no ápice da hierarquia das fontes normativas. Assim, os comandos civilísticos em dissonância com a Constituição Federal “estão tacitamente revogados ou, se for o caso, devem adequar-se à norma superior. Dessa maneira, toda a legislação civil em vigor reclama uma ‘releitura’, sob o prisma constitucional” (MATOS, 2011).

Por conseguinte, conforme a autora, em razão do ordenamento constitucional atender aos valores personalísticos, ele oferece aportes suficientes para os efeitos jurídicos da união homoafetiva. Em corolário, e em função da articulação axiológica dos princípios do direito civil constitucional, a Constituição Federal proporciona suporte ao próprio casamento homoafetivo.

A pluralidade de entidades familiares se impõe em função do advento do novo direito de família, voltado para a realização personalística de seus membros, e denominado de “repersonalização ou personificação do direito civil”. O referido contexto ressalta a valorização do princípio da dignidade da pessoa humana, tido como elemento propulsor e de convergência do sistema jurídico, de sorte que todas as demais normas devem observar a dignidade do ser humano. Dessa forma, “os aspectos personalísticos das pessoas devem ser o núcleo fundamental do sistema jurídico e a principal finalidade da proteção estatal” (MATOS, 2011).

Ultimo essa breve análise da repersonalização do direito civil com as elucidativas palavras de Marianna Chaves:

Em virtude da constitucionalização do direito civil, observar-se-á que houve superação de tentativas hermenêuticas “ao revés”, cujo intuito era o de compreender a Carta Magna e seus princípios a partir de normas existentes nos diplomas infraconstitucionais, como o Código Civil. A Lei Maior deve nortear todo o sistema jurídico, e não o contrário. Assim, em respeito, inter alia, aos princípios da dignidade humana, liberdade e igualdade, os vínculos homoafetivos merecem ser tutelados tal e qual as relações heterossexuais, em grau de paridade (...). O meio jurídico deve, além de respeitar as normas constitucionais, atender a uma visão mais abrangente da realidade, analisando e discutindo os vários aspectos que emergem dos relacionamentos afetivos, incluído-se os homoafetivos (CHAVES, 2011, p. 34).

Uma vez ventilada a repersonalização do direito de família a partir da constitucionalização do direito civil, doravante passemos a esmiuçar o baluarte constitucional que afaga o matrimônio homoafetivo.


4  DO BALUARTE CONSTITUCIONAL DO CASAMENTO HOMOAFETIVO

Como se aufere da análise da repersonalização do Direito de Família, a possibilidade do casamento homoafetivo se vislumbra. Em respeito ao arcabouço constitucional dos princípios fundamentais, notadamente a dignidade da pessoa humana; a legislação infraconstitucional se despe do seu pedantismo e se rende à imponência e magnitude da Lei Maior.

Se até então o casamento era instituto exclusivamente monopolizado pelo direito civil e fechado a qualquer tentativa de hermenêutica constitucional, agora, como quaisquer outros institutos previstos no ordenamento jurídico pátrio, ele é regulado na legislação infra, porém sob o amparo dos preceitos constitucionais e princípios fundamentais, donde entrevemos a possibilidade do casamento homoafetivo. Antes, porém, observemos tal possibilidade mediante a conversão da união homoafetiva.

4.1. Do Casamento Homoafetivo Mediante a Conversão da União Homoafetiva

Após a plausível decisão da Suprema Corte, que retirou a união homoafetiva da clandestinidade jurídica, reconhecendo-lhe existência no plano legal, mediante seu enquadramento no conceito abrangente de entidade familiar, o grande questionamento que atualmente se coloca é sobre a possibilidade de casamento entre os pares homoafetivos.

Ainda há muita polêmica e divergência entre os diversos Juízos e doutrinas, mas, se o Supremo equiparou as uniões homoafetivas às uniões estáveis, vedando qualquer discriminação entre ambas, e se a Lei Maior determina que seja facilitada a conversão da união estável em casamento, por força da parte final do art. 226, § 3º, não se pode negar a conversão da união homoafetiva em casamento, ao arrepio da recomendação constitucional e da decisão do Supremo Tribunal, que, repise-se, tem caráter vinculante e efeito erga omnes.

Paulo Roberto Lotti Vecchiatti delata que esse debate se trata de uma “falsa polêmica”, posto que:

somente o preconceito (juízo de valor arbitrário) poderia impedir a conversão da união estável em casamento civil pelo simples fato de termos um casal homoafetivo solicitando tal conversão, seja do ponto de vista material, seja do ponto de vista meramente formal, pois temos uma união estável em ambos os casos, donde a união estável deve ser passível de conversão em casamento civil em ambos os casos, seja quando formada por um casal heteroafetivo quanto quando formada por um casal homoafetivo (VECCHIATTI, 2011) (grifo do autor).

Maria Berenice Dias (2012) assegura que, em face desses fundamentos, muitos juízes vem autorizando a conversão da união em casamento, “mediante a prova da existência da união estável homoafetiva, por meio de um instrumento particular ou escritura pública. Assim, para casar, primeiro era necessária a elaboração de um documento comprobatório do relacionamento para depois ser buscada sua conversão em casamento”.

Trata-se, realmente, de discussão infundada, haja vista que a união homoafetiva, tal qual a união estável heteroafetiva, consiste em família conjugal, e esta, como se sabe, é objeto de proteção especial do Estado por força de determinação constitucional alocada no art. 226. Sabe-se, outrossim, que o casamento, em virtude dos seus amplos efeitos jurídicos, é o meio pelo qual a família é mais vastamente protegida pelo Estado. Portanto, embora seja uma faculdade do casal, o Estado tem obrigação de converter essa união em casamento quando requerida, e desde que, logicamente, presentes os requisitos caracterizadores do núcleo doméstico familiar: o vínculo afetivo, a continuidade, a ostensividade, e o intuito de constituir família. Deve agir assim por estar vinculado ao mandamento constitucional expresso no §3º do art. 226, bem como à determinação constante no art. 1.726 do Código Civil. Como conclui Paulo Vecchiatti:

Logo, devido ao reconhecimento pelo Supremo tribunal Federal da união homoafetiva como união estável constitucionalmente protegida e merecedora de “absoluta igualdade” relativamente à união estável heteroafetiva (consoante voto do Min. Ayres Britto), os cartórios de registro civil são obrigados a permitir a conversão da união estável homoafetiva em casamento civil a todos os casais homoafetivos que o desejarem (VECCHIATTI, 2011) (grifos no original).

É de extrema importância que o Estado reconheça a autoridade de tal conversão. Todavia, muito além de divisar o casamento homoafetivo pela conversão da união homoafetiva, o intuito desta pesquisa está em defender o casamento de forma primária, por meio da habilitação para o casamento de nubentes homossexuais diretamente junto ao Registro Civil, sem a necessidade de se formalizar a união estável para, só então, requerer sua conversão em casamento, o que demandaria muito tempo, bem como restaria desnecessário diante da possibilidade da contração direta do casamento mediante a habilitação junto ao Cartório de Registro Civil.

4.2. Do Casamento Homoafetivo Mediante a Habilitação Diretamente Junto ao Registro Civil

A possibilidade do casamento entre pares homossexuais requerido pela habilitação direta no registro civil também é entendimento defendido pelo Superior Tribunal de Justiça. Esta Corte, quando do julgamento do Recurso Especial nº 1.183.378-RS, proferido em 25 de outubro de 2011, pela primeira vez na história do país, acolheu o pedido de habilitação para o casamento entre duas mulheres diretamente junto ao Registro Civil, sem ser necessária prévia formalização da união para, só então, transformá-la em casamento. Embora não tenha sido a primeira decisão que permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo, é reputada a mais significativa pela doutrina, já que proferida pela Corte cuja incumbência está na interpretação das leis federais.

A brilhante decisão proveu o recurso das autoras fundamentando, conforme o voto do ministro relator Luis Felipe Salomão, que a dignidade da pessoa em nada é alterada em virtude do uso da sua sexualidade, e que a orientação sexual do indivíduo, por não corresponder à convencionada pela maioria, não pode ser causa de exclusão da família homoafetiva da proteção jurídica representada pelo casamento. Em razão da imponente decisão do STJ, e sua substancial relevância para o objeto deste estudo, peço vênia mais uma vez para colacionar o julgado ementado do recurso em questão:

DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO (HOMOAFETIVO). INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO EXPRESSA A QUE SE HABILITEM PARA O CASAMENTO PESSOAS DO MESMO SEXO. VEDAÇÃO IMPLÍCITA CONSTITUCIONALMENTE INACEITÁVEL. ORIENTAÇÃO PRINCIPIOLÓGICA CONFERIDA PELO STF NO JULGAMENTO DA ADPF N. 132/RJ E DA ADI N. 4.277/DF.

1. Embora criado pela Constituição Federal como guardião do direito infraconstitucional, no estado atual em que se encontra a evolução do direito privado, vigorante a fase histórica da constitucionalização do direito civil, não é possível ao STJ analisar as celeumas que lhe aportam "de costas" para a Constituição Federal, sob pena de ser entregue ao jurisdicionado um direito desatualizado e sem lastro na Lei Maior. Vale dizer, o Superior Tribunal de Justiça, cumprindo sua missão de uniformizar o direito infraconstitucional, não pode conferir à lei uma interpretação que não seja constitucionalmente aceita. 

2. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da ADPF n. 132/RJ e da ADI n. 4.277/DF, conferiu ao art. 1.723 do Código Civil de 2002 interpretação conforme à Constituição para dele excluir todo significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família.

3. Inaugura-se com a Constituição Federal de 1988 uma nova fase do direito de família e, consequentemente, do casamento, baseada na adoção de um explícito poliformismo familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos a constituir esse núcleo doméstico chamado "família", recebendo todos eles a "especial proteção do Estado". Assim, é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção constitucional do casamento - diferentemente do que ocorria com os diplomas superados - deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade.

4. O pluralismo familiar engendrado pela Constituição - explicitamente reconhecido em precedentes tanto desta Corte quanto do STF - impede se pretenda afirmar que as famílias formadas por pares homoafetivos sejam menos dignas de proteção do Estado, se comparadas com aquelas apoiadas na tradição e formadas por casais heteroafetivos.

5. O que importa agora, sob a égide da Carta de 1988, é que essas famílias multiformes recebam efetivamente a "especial proteção do Estado", e é tão somente em razão desse desígnio de especial proteção que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, ciente o constituinte que, pelo casamento, o Estado melhor protege esse núcleo doméstico chamado família.

6. Com efeito, se é verdade que o casamento civil é a forma pela qual o Estado melhor protege a família, e sendo múltiplos os "arranjos" familiares reconhecidos pela Carta Magna, não há de ser negada essa via a nenhuma família que por ela optar, independentemente de orientação sexual dos partícipes, uma vez que as famílias constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos núcleos axiológicos daquelas constituídas por casais heteroafetivos, quais sejam, a dignidade das pessoas de seus membros e o afeto.

7. A igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o direito à auto-afirmação e a um projeto de vida independente de tradições e ortodoxias. Em uma palavra: o direito à igualdade somente se realiza com plenitude se é garantido o direito à diferença. Conclusão diversa também não se mostra consentânea com um ordenamento constitucional que prevê o princípio do livre planejamento familiar (§ 7º do art. 226). E é importante ressaltar, nesse ponto, que o planejamento familiar se faz presente tão logo haja a decisão de duas pessoas em se unir, com escopo de constituir família, e desde esse momento a Constituição lhes franqueia ampla liberdade de escolha pela forma em que se dará a união.

8. Os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil de 2002, não vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar.

9. Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria, mediante seus representantes eleitos, não poderia mesmo "democraticamente" decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário - e não o Legislativo - que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias. Dessa forma, ao contrário do que pensam os críticos, a democracia se fortalece, porquanto esta se reafirma como forma de governo, não das maiorias ocasionais, mas de todos.

10. Enquanto o Congresso Nacional, no caso brasileiro, não assume, explicitamente, sua coparticipação nesse processo constitucional de defesa e proteção dos socialmente vulneráveis, não pode o Poder Judiciário demitir-se desse mister, sob pena de aceitação tácita de um Estado que somente é "democrático" formalmente, sem que tal predicativo resista a uma mínima investigação acerca da universalização dos direitos civis.

11. Recurso especial provido.

(REsp 1183378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012) (grifos meus)

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Inobstante os avanços no âmbito do Judiciário, com a equiparação pelo STF das uniões homoafetivas às entidades familiares, com eficácia vinculante e erga omnes, bem como a primeira decisão do STJ consentindo o casamento entre pessoas do mesmo sexo; a inércia do Poder Legislativo ainda enseja margem à insegurança jurídica em função de muitos julgadores ainda se aterem aos ditames da lei civil com dispositivos que fazem menção expressa a “homem e mulher”, acreditando que isso é suficiente para respaldar a impossibilidade do casamento homoafetivo no ordenamento pátrio, em evidente menoscabo aos princípios fundamentais estruturantes da Lei Maior. Além desta, outras teses são formuladas, embora incoerentes e facilmente derrubadas. Ocorramos a esta análise.

4.3 .Das Teses Contrárias ao Casamento Homoafetivo

As teses contrárias à abertura do instituto do casamento aos pares homoafetivos se fundamentam em questões inermes e facilmente rechaçadas, o que se passa de logo a ilustrar. Motivam-se, tais autores, inter alia, na ausência de lei expressa permissiva, o que pode – e deve – ser facilmente resolvido mediante a utilização de interpretação extensiva ou analogia, de acordo com o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), haja vista que o ordenamento veda o non liquet. Os referidos autores também se baseiam na ausência de capacidade procriativa do par homossexual. Este requisito, no entanto, já foi superado pela doutrina, e impugnado em linhas anteriores, por não constar no rol taxativo dos impeditivos matrimoniais do art. 1.521 do CC/2002, bem como pelo fato de não haver objeção ao casamento entre casais heterossexuais estéreis, e, ainda, em respeito à autonomia da vontade do indivíduo, que pode, por qualquer razão, optar por não ter filhos. Dentre as teses contrárias à instituição do casamento homoafetivo, a teoria da inexistência é a que apresenta maior amplitude e força quanto aos seus adeptos na doutrina e jurisprudência, razão pela qual, passo a tratá-la em minúcia.

4.3.1. A Teoria da Inexistência

Os doutrinadores e magistrados partidários da teoria da inexistência do casamento homoafetivo reputam-no inexistente, alicerçando-se, em geral, na cultura e na tradição jurídica nacionais, não sendo relevados argumentos com respaldo constitucional ou mesmo na legislação ordinária. Quando muito, sustentam tais juristas, que a interpretação dada aos artigos do Código Civil atinentes ao casamento é no sentido de se imputar tal instituto ao “homem” e à “mulher”, por tais termos, por vezes, virem expressos naqueles dispositivos. Atente-se para a observação de Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros (2008) acerca do conceito de casamento como união entre homem e mulher:

Essa definição de casamento que não possui previsão nem na Constituição da República nem no Código Civil, encontra-se enraizada na tradição jurídica nacional, sendo considerada conceito fechado, sem possibilidade de discussão. A literatura jurídica entende que o descumprimento da diversidade de sexos não estaria a acarretar “nulidade, nem anulação; foi [o casamento] pura materialidade de fato, sem nenhuma significação jurídica”, sendo, dessa forma, inexistente (MEDEIROS, 2008, p. 72).

Tal entendimento se demonstra claro no posicionamento de Pontes de Miranda (2004 apud MEDEIROS, 2008), para quem “a união, ainda quando solenemente feita, entre duas pessoas do mesmo sexo, não constitui matrimônio, porque ele é, por definição, contrato do homem e da mulher, viri et mulieris coniunctio, com o fim de satisfação sexual e procriação” (sem grifos no original). Continua o autor aduzindo que o casamento inexistente entre pessoas do mesmo sexo assim o é por violação a pressupostos – entre eles a heterogeneidade de sexos – que “são evidentes e tem valor absoluto, são consubstanciais ao valor do matrimônio, de modo que os Códigos nem sequer os mencionam” (sem grifos no original).

Ainda sobre a teoria do casamento inexistente, Maria Helena Diniz (2007) salienta: “o casamento tem como pilar o pressuposto fático da diversidade de sexo dos nubentes”. E completa: “se duas pessoas do mesmo sexo, como aconteceu com Nero e Sporus, convolarem núpcias, ter-se-á casamento inexistente, uma farsa. Absurdo seria admitir que o matrimônio de duas mulheres ou de dois homens tivesse qualquer efeito jurídico, devendo ser invalidado por sentença judicial”.

Também Washington de Barros Monteiro (2011) compactua da ideia: “em matéria de casamento, ocorrem também hipóteses em que se verifica a inexistência do ato. Assim, se porventura se unissem duas pessoas do mesmo sexo, (...) ter-se-ia ato inexistente, porque do matrimônio é condição vital a diversidade de sexo dos nubentes” (grifei). Outrossim, posiciona-se Ruggiero (1972 apud MEDEIROS, 2008): “a diversidade de sexos é um elemento exigido pela própria natureza, sobre o qual não é preciso insistir, visto que só casos teratológicos ou de hermafroditismo (aliás, bem raros) podem existir a aplicação deste requisito, casos esses que serão resolvidos pelo sexo que prevaleça” (grifei).

Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 142-143), dispondo acerca da diversidade de sexos enquanto requisito para o casamento, assevera: “esse posicionamento é tradicional e já era salientado nos textos clássicos romanos. A diversidade de sexos constitui requisito natural do casamento, a ponto de serem consideras inexistentes as uniões homossexuais”. E ainda: “é intuitivo que, em todas as civilizações e em todos os sistemas jurídicos, os legisladores, ao pensarem o negócio jurídico típico que é o casamento, idealizam-no a partir de um modelo que pressupõe a diversidade de sexos. (...) É uma condição de tal modo evidente, que dispensa regulamentação legislativa” (grifos meus).

Seguem esta mesma linha de pensamento tantos outros clássicos juristas, a exemplo de Sílvio de Salvo Venosa, Orlando Gomes, Caio Mário da Silva Pereira, Álvaro Vilaça de Azevedo[15], dentre outros.

Em que pesem aos respeitáveis posicionamentos dos eminentes doutrinadores, observa-se das asseverações apresentadas que a teoria do casamento inexistente em função da homogeneidade de sexos não apresenta respaldo legal ou constitucional, mas sustenta-se, tão só, na cultura e tradição das sociedades ocidentais e na tautologia doutrinária e jurisprudencial que se reproduz ao longo dos tempos por justamente se refletir nestes mesmos elementos sociais. Mantém-se um discurso circular acerca da vedação ao casamento homossexual, ao afirmar-se ser impossível sua aceitação pela literatura jurídica e pela jurisprudência pelo simples fato de essas mesmas fontes do direito assim o entenderem. Deste modo, adotam a diversidade de sexos como verdade absoluta, restando impossível obtemperar contra tal assertiva, bem como impermeável sua discussão. Esclarecedoras são as palavras de Medeiros (2008):

Observa-se uma explicação tautológica, na qual a suposta impossibilidade sustentada pelos autores possui como fundamento a construção de tal entendimento pela própria literatura, configurando-se, dessa forma, uma postura dogmática, que, nos dizeres de Lyra Filho, se pretende “verdade absoluta, que se pretende erguer cima de qualquer debate e, assim, captar a adesão, a pretexto de que não cabe contestá-la ou a ela propor qualquer alternativa”. A diversidade de sexos dos celebrantes do casamento se apresenta como um tabu, característica excluída das possibilidades de discussão e re-significação (sic) perante o ordenamento jurídico.

Marianna Chaves (2011) assente deste entendimento, aduzindo que tais argumentos são frágeis, e que não há como encontrar-se motivos racionais para a manutenção do monopólio do casamento heterossexual. “Tais argumentos se centram em uma determinada compreensão de como as coisas sempre foram e como são neste momento. Olvidam-se que a sociedade está em movimento constante e a lei e as normas não podem restar estáticas, enraizadas em juízos ultrapassados e em desacordo com o momento atual vivido pelos povos”. Arguciosa a observação da autora ao afirmar que o atrelamento à questão da tradição é falível[16]:

Um exame, ainda que superficial, da história da Humanidade, revela que este argumento é falacioso. A instituição do casamento civil, como a maioria das instituições humanas, sofreu enormes mudanças ao longo dos últimos dois milênios. Se casamento fosse o mesmo atualmente, como o foi nos últimos dois mil anos, seria possível casar-se aos doze anos de idade, com uma pessoa desconhecida, por via de um casamento “arranjado”; o marido ainda poderia vislumbrar a própria esposa como propriedade e dispor dela à vontade; ou uma pessoa poderia ser condenada à prisão por ter se casado com uma pessoa de raça diferente. E, obviamente, seria impossível obter um divórcio, apenas para citar alguns exemplos.

Com efeito, não se deve olvidar o dinamismo da realidade do direito, que está em constantes movimento e mutação, acompanhando as relações sociais, culturais, econômicas e políticas ao longo da história, e amoldando suas normas às novas exigências e necessidades concretas da vida dos sujeitos sociais. “A evolução social traz em si novos fatos e conflitos, de modo que os legisladores diariamente passam a elaborar novas leis; juízes e tribunais, de forma constante, estabelecem novos precedentes, e os próprios valores sofrem mutações, devido ao grande e peculiar dinamismo da vida” (DINIZ, 2007).

Convém esclarecer que o ora exposto aqui não se presta a afirmar que as atuais definições de casamento não são razoáveis ou que o respeito pela tradição é ilegítima, mas é imperioso afirmar que a definição, a tradição e a religião, por si, não constituem bases racionais para alicerçar a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo (CHAVES, 2011).

No entanto, há quem indigite na legislação ordinária fundamento à teoria da inexistência do casamento entre pessoas do mesmo sexo, em razão dos artigos 1.514, 1.517, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil[17] de 2002, vez que os mesmos trazem a menção expressa dos termos “homem” (ou marido) e “mulher”, proibindo, tais dispositivos, segundo aqueles autores, que dois homens ou duas mulheres contraiam núpcias entre si, nos termos da lei civil.

Tais dispositivos, no entanto, especialmente após a repersonalização do direito de família, não devem ser compreendidos autonomamente ou de forma independente dos demais dispositivos civis e constitucionais, como todo e qualquer dispositivo do ordenamento jurídico, entendido como sistema que é. Já dizia Drummond que “as leis não bastam. Os lírios não nascemda lei” [18].

Ao revés, deve-se haver um confronto sistemático com vários outros dispositivos, uma interpretação harmônica e dinâmica de tais normas em consonância com a CF/1988 e com a legislação infraconstitucional, para que, da análise conjunta de todos eles, possa ser extraída a norma de direito aplicável. Daí se depreende que os mencionados dispositivos não vedam expressamente o casamento homoafetivo, e não é legítimo forçar uma proibição implícita a esse casamento, sob pena de amolgar eminentes princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, a igualdade, a não discriminação, o pluralismo das entidades familiares e o livre planejamento familiar.

Tendo em vista a importância emancipatória do “texto constitucional, abertamente discutido como foi o nosso, não deve o jurista preteri-lo por estar circunscrito ao positivismo estrito” (MATOS, 2011).

De fato, a menção à expressão “homem e mulher” em referência ao casamento, trata-se de mera presunção, pois não há fundamento normativo que legitime a diversidade de sexos como requisito de existência do casamento, nem o Código Civil nem a Constituição Federal apresentam qualquer definição do instituto, nem determinam a diversidade de sexos como requisito para a existência do casamento (CHAVES, 2011). A homogeneidade de sexos não está dentre as causas de impedimento elencadas pela lei Civil (art. 1.521).

Por outro lado, não merecem guarida as alegações de que a dualidade de sexos seria pressuposto tão óbvio e manifesto para a existência do casamento, apto (o pressuposto) a ser legitimado mesmo ante a omissão legislativa, tese, esta, defendida por Ruggiero, Carlos Roberto Gonçalves, Álvaro Villaça de Azevedo, Maria Helena Diniz, Silvio de Salvo Venosa e Orlando Gomes, todos adeptos da teoria do casamento inexistente[19].

Tal entendimento fere os princípios da legalidade e da segurança jurídica, segundo os quais, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, inciso II, da Constituição Federal de 1988). Por tais princípios, somente uma lei pode restringir direitos “para que existam critérios objetivos, expressamente fixados, de maneira que o povo saiba com precisão quais são os pressupostos necessários aos atos jurídicos, o que resta afrontado pela teoria da inexistência de atos que existiram no mundo fático, uma vez que ela deixa tal fixação de pressupostos ao subjetivismo do intérprete” (VECCHIATTI, 2008 apud CHAVES, 2011, p. 216). Dessa maneira, conforme disciplina Marianna Chaves, em se desejando que determinado ato jurídico não produza efeitos, o mesmo deve ser inserido em alguma hipótese de nulidade ou anulabilidade, sob pena de não ter eficácia jurídica o afastamento dos efeitos jurídicos dele oriundos. “A proibição ou restrição são exceções e, por isso mesmo, necessitam serem provadas, ‘achar-se expressamente pronunciadas pela lei, e não por modo duvidoso, sim formal, positivo; tudo o mais é sofisma” (CHAVES, 2011, p. 218).

A autora ensina que a teoria do casamento inexistente, no Brasil, foi arquitetada em virtude da omissão legislativa e da recusa em se conceder validade ao casamento homossexual, apesar da inexistência de proibição para tal ato na lei, ou de um dispositivo legislativo que indique a inexistência do matrimônio. “Em território brasileiro, trata-se de uma construção meramente doutrinária, sem respaldo legal” (CHAVES, 2011, p. 216). Na mesma esteira, Paulo Roberto Lotti Vecchiatti (2008) brada que a teoria da inexistência “não passa de pura invenção doutrinária, sem qualquer embasamento legal que a fundamente, que se configura forma de discriminar e burlar a regra segundo a qual não há nulidade sem texto, que precisa, assim, respeitar os ditames da isonomia”.

A teoria do casamento inexistente, pretendida pacífica e de discussão impermeável, começou a ser obtemperada quando outros ordenamentos jurídicos passaram a prever o casamento entre pares homossexuais. A doutrina defensora do reconhecimento do casamento homoafetivo, no Brasil, fundamenta-se, inter alia, na lógica de que a expressão “o homem e a mulher” não possui o condão de impedir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, pois os impedimentos matrimoniais são as proibições expressamente elencadas no art. 1.521 do Código Civil, das quais não faz parte a homogeneidade de sexos. Acresça-se que a diversidade de sexos como pressuposto do casamento só teria razão de ser se, igualmente, a capacidade procriativa do casal fosse requisito para o casamento, o que não faz sentido, como já aventado. A referência a homem e mulher indica apenas a regulamentação do fato heteroafetivo, sem que isso se traduza em proibição do fato homoafetivo para a mesma finalidade, que deveria ser regulado por meio da analogia ou interpretação extensiva (CHAVES, 2011).

Em verdade, não deve haver “proibições implícitas” no ordenamento jurídico brasileiro, sob pena de se infringir os preceitos constitucionais da legalidade e da segurança jurídica, insculpidos no art. 5º, inciso II, da Carta Política de 1988. Nossa legislação civil limitou-se a regular o fato do casamento heterossexual, o que logicamente não significa que, ao mesmo tempo, vedou o casamento homossexual, apenas quedou silente, omissa, deixando este último instituto sem regulamentação. Por corolário, havendo lacuna na lei, deve-se aplicar o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

Clama-se, dessarte, pela aplicação extensiva do art. 1.514 do CC/2002 ao casamento homoafetivo ou, entendo-se não existirem situações idênticas (um par com dualidade de sexos e outro com paridade de sexos), deve ser aplicada a analogia àquele dispositivo, pois os fatos são idênticos na sua essência, vez que o elemento que permeia ambas as uniões (homo e hetero) é o mesmo: o afeto.

Paulo Vecchiatti (2008) condescende e ratifica o entendimento, ressaltando que o valor – tido como dimensão do direito da Teoria Tridimensional[20] esposada por Miguel Reale – que se pretende resguardar na norma que regulamenta o casamento heteroafetivo não é a heterossexualidade, e sim o afeto, “o amor de duas pessoas que gera uma entidade familiar por meio de uma comunhão plena de vida e interesses, contínua, duradoura e com intuito de constituir família”. Amor, este, cuja essência não difere entre pessoas hetero e homossexuais. De fato, a heterossexualidade não é a única forma de expressão do sentimento humano.

4.4. Do Casamento Homoafetivo à Luz dos Princípios Constitucionais

4.4.1. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

Conforme cediço por todos, a Constituição Federal alçou a dignidade da pessoa humana à condição de fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, inciso III, CF/1988). Depreende-se daí que este princípio constitui o núcleo fundante, estruturante e essencial de todos os direitos fundamentais previstos na ordem constitucional. Nos alumiados dizeres de Ragazzi e Garcia, “qualquer Estado, portanto, que se queira democrático e de direito deverá eleger a dignidade da pessoa humana como alicerce dos direitos fundamentais encampados em sua Constituição, atribuindo-lhe conformação e proteção jurídica”. Tal princípio, no entanto, não constitui criação constitucional ou jurídica, vez que preexiste a qualquer tentativa especulativa jurídica, tal qual a própria pessoa humana. Como preleciona o notável jurista lusitano Gomes Canotilho (2003), “a República é uma organização política que serve o homem, não é o homem que serve os aparelhos político-organizatórios”.

Como qualidade intrínseca da natureza do indivíduo, a dignidade é inalienável, irrenunciável, constitui elemento que qualifica o homem como tal, dele não podendo ser separado. “É algo que se reconhece, se respeita e protege, mas não que possa ser criado ou lhe possa ser retirado, já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente. (...) a dignidade independe das circunstâncias concretas, sendo algo inerente a toda e qualquer pessoa humana, de tal sorte que todos, mesmo o maior dos criminosos – são iguais em dignidade” (SARLET, 2002). Nesta mesma vereda, Ragazzi e Garcia disciplinam que, ainda que o homem aja de forma indigna, terá ele dignidade, vez que esta é qualidade intrínseca da natureza do homem, e, portanto, independe de merecimento:

A dignidade é, portanto, o atributo que faz com que a pessoa seja respeitada em toda sua existência e dimensão, independentemente das escolhas que, como ser racional, vier a fazer. Evidente que se essas escolhas forem ilícitas e contrárias à sociedade, a pessoa arcará com as consequências do ato, mas, ainda assim, qualquer tipo de punição ou reprimenda que vier a sofrer deverá respeitar a dignidade do ser humano. Basta lembrar, como exemplo, que a Constituição brasileira veda, em cláusula pétrea, as penas de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e as cruéis, pois todas elas, indistintamente, atentam contra a dignidade do ser humano, independentemente de este ser humano ter praticado “condutas indignas”. Ele, pelo simples fato de ser humano, ainda que, com razão, possa ser chamado de bandido e criminoso, continuará tendo dignidade (RAGAZZI e GARCIA, 2011).

A partir do princípio da dignidade humana, o homem é concebido como um fim em si mesmo, não podendo, ao reverso, ser vislumbrado como meio para outros fins, pois ele não deve ser alvo de instrumentalização, coisificação ou rejeição em razão dos aspectos que lhe conferem sua individualidade e sua dinâmica pessoal. Marianna Chaves (2011), com precisão, disciplina:

a noção de dignidade da pessoa humana abrange o núcleo existencial que é essencialmente comum a todos os seres do gênero humano. Impõe-se, no que tange à dimensão pessoal da dignidade, um dever geral de respeito, proteção e intocabilidade, sendo inadmissível qualquer procedimento, comportamento ou atividade que ‘coisifique’ o indivíduo[21] (CHAVES, 2011, p. 68).

Ingo Sarlet (2002) classifica a dignidade da pessoa humana como uma

qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem à pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover a sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.

Segundo preceitua o autor, a dignidade continua a ocupar um lugar central no pensamento filosófico, político e jurídico, daí sua qualificação como valor fundamental da ordem jurídica. Para ele, “uma ordem constitucional que (...) consagra a ideia da dignidade da pessoa humana, parte do pressuposto de que o homem, em virtude tão somente da sua condição humana e independentemente de outra circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados pelos seus semelhantes e pelo Estado” (grifei).

Vê-se, assim, que o princípio da dignidade da pessoa humana é uma das bases de sustentação dos ordenamentos jurídicos modernos. Não há que se falar em direito e justiça sem se ater à ideia de dignidade, pois é ela pressuposto do próprio ideal de justiça, uma vez que dita a condição superior do homem como ser de razão e sentimento. Ela (a dignidade) tende a enfeixar todos os demais princípios constitucionais. Nesse sentido, Rodrigo da Cunha Pereira aduz que a dignidade é um macroprincípio “sob o qual irradiam e estão contidos outros princípios e valores essenciais como a liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade, alteridade e solidariedade. São, portanto, uma coleção de princípios éticos. (...) É a noção de dignidade e indignidade que possibilitou pensar, organizar e desenvolver os direitos humanos” (PEREIRA, 2003). Nesta mesma seara, Luiz Edson Fachin e Melina Girardi Fachin asseveram que o princípio da dignidade da pessoa humana “avulta no ordenamento jurídico constitucional a partir de sua centralidade, na qualidade de fundamento da Republica Federativa do Brasil, privilegiando a posição do sujeito concreto e de suas necessidades, passando a incidir de forma especial e diversa sobre os demais princípios constitucionais” (FACHIN E FACHIN, 2011). Ragazzi e Garcia, no mesmo atalho, classificam a dignidade como:

um macroprincípio que norteia e orienta todo o sistema jurídico brasileiro, ostenta caráter absoluto e não se submete a qualquer tipo de relativização. Destarte, nada pode haver no ordenamento jurídico pátrio que viole, negue ou restrinja a dignidade da pessoa humana, sob pena de flagrante inconstitucionalidade. Em consequência, a Constituição não abre espaço para qualquer tipo de interpretação nesse sentido (RAGAZZIO E GARCIA, 2011).

A dignidade humana entende o indivíduo como fundamento e fim do Estado e da sociedade. Ao mesmo tempo em que é tida (a dignidade) como um limite para a atuação estatal, que não pode invadi-la, é também um dever prestacional do próprio Estado, que deve agir de modo que todo cidadão tenha sua dignidade honrada por toda a sociedade. Nesta senda, Pérez Luño assegura que “a dignidade da pessoa humana constitui não apenas a garantia negativa de que a pessoa não será objeto de ofensas ou humilhações, mas implica também, num sentido positivo, o pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo” (LUÑO, 2004 apud FACHIN E FACHIN, 2011).

Segundo Marianna Chaves, à luz do que dispõe a Declaração Universal da ONU, o elemento nuclear da dignidade da pessoa humana reside na autonomia e no direito da autodeterminação da pessoa[22]. A estruturação da individualidade de cada ser apresenta a sexualidade como um dos elementos essenciais de constituição da subjetividade, que, por sua vez, é também responsável pelo desenvolvimento da personalidade do indivíduo. A orientação sexual, dessa forma, relaciona-se estreitamente com o amparo da dignidade da pessoa humana[23]. Nesse sentido, ao vislumbrarmos prejuízo, desprezo ou desacato a uma pessoa, em virtude da sua orientação sexual, está-se conferindo tratamento indigno à pessoa humana.

Assim, a dignidade, estruturada na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa, gera para o homem o direito de decidir de forma autônoma acerca dos seus projetos de vida e de existência eudemonista, sejam eles quais forem, desde que não infrinja direitos de terceiros, mas sempre sendo considerado e respeitado pela sua condição humana. “Assim, em nome do princípio da dignidade humana, entre outros, (...) direitos igualitários devem ser outorgados aos homossexuais, como o de contrair matrimônio, o direito à parentalidade, enfim, o direito de assumir sua orientação sexual sem o receio de rechaço e exclusão social” (CHAVES, 2011, p. 71). Nesse diapasão, Roger Raupp Rios (2001):

conclui-se que o respeito à orientação sexual é aspecto fundamental para a afirmação da dignidade humana, não sendo aceitável, juridicamente, que preconceitos legitimem restrições de direitos, servindo para o fortalecimento de estigmas sociais e espezinhamento dos fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito. Assentada a pertinência do respeito à orientação sexual ao objeto de proteção do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, deve-se ter sempre presente seu papel na solução das demais questões jurídicas envolvendo a homossexualidade. 

Em suma, a ideia de dignidade está vinculada à pretensão de respeito e consideração a que todo ser humano tem direito, independentemente de suas escolhas, características, atitudes, credos, cultura, pensamentos e orientações. Como sintetizam Ragazzi e Garcia, “se é humano, é racional, tem um fim em si mesmo e, por isso, tem dignidade” [24].

A autonomia da vontade, enquanto elemento fundante da dignidade, também está encampada no direito constitucional à liberdade, mas, conforme já foi repisado, a dignidade da pessoa humana é pressuposto para o exercício de qualquer direito fundamental. Ou seja, da proteção jurídica da dignidade humana decorrem necessariamente os direitos de igualdade, liberdade e fraternidade. O seu reconhecimento, enfim, é pressuposto de todas as gerações de direitos fundamentais (REGAZZI E GARCIA).

4.4.2 . Princípio da Liberdade

Luis Roberto Barroso (2006), com esteio em Marilena Chauí, explica que o conteúdo nuclear da concepção de liberdade se encontra no poder de autodeterminação, de deliberação e escolha entre várias alternativas possíveis, condicionado (tal poder) ao contexto externo, como as circunstâncias naturais, históricas, psíquicas, culturais e econômicas.

Segundo Regazzi e Garcia, o princípio da liberdade se reflete em todos os direitos fundamentais de primeira geração, “pois constitui o primeiro patamar de alforria do ser humano reconhecido por uma Constituição. Sob seu manto erguem-se os direitos civis, individuais e políticos, que representam uma ideologia de afastamento do Estado das relações individuais e sociais, para permitir que os cidadãos sejam de fato livres, competindo-lhe apenas a tarefa de ser o guardião do exercício dessas liberdades”. Os autores demonstram que não há como dissociar o direito de liberdade da dignidade da pessoa humana, vez que – como visto no pensamento kantiano – a racionalidade do homem lhe atribui a autonomia da vontade, que, por sua vez, é a sua própria liberdade. Dessa maneira, a autodeterminação da conduta do indivíduo só é possível na medida em que se assegure ao homem, como aspecto da sua dignidade, o exercício pleno da liberdade.

Atente-se para a importância da sexualidade como direito de primeira geração, como promulgam vários autores, a exemplo de Maria Berenice Dias, Roger Raupp Rios e Marianna Chaves. Considerado como tal, é um direito natural, imprescritível e inalienável, como apregoa Marianna Chaves:

Ao se desdobrar os direitos em gerações, é de se afirmar que a sexualidade é um direito de primeira geração, da mesma forma que a igualdade e a liberdade, pois engloba o direito à liberdade sexual, aliado ao tratamento isonômico, independentemente da orientação sexual, é, destarte, uma liberdade individual, um direito da pessoa humana, sendo, como todos os direitos de primeira geração, imprescritível e inalienável. Trata-se de um direito natural, que acompanha o indivíduo desde o seu nascimento (CHAVES, 2011, p. 73).

Roger Raupp Rios, por sua vez, aduz:

Os direitos humanos de primeira geração reconhecidos desde os primórdios do constitucionalismo liberal (identificados como direitos negativos, de defesa contra intromissões abusivas), registram liberdades individuais cuja dimensão contemporânea alcança diversas esferas constitutivas da sexualidade. (...) Toda compreensão jurídica sedimentada na doutrina e na jurisprudência constitucional pertinente às dimensões formal e material do princípio da igualdade, por sua vez, fornece diretrizes jurídicas sólidas em face da discriminação fundada no sexo ou na orientação sexual (RIOS, 2007, p. 25).

Deveras, as bases principiológicas dos Direitos Humanos pressupõem-se como sustentáculo da liberdade do sujeito. Mas não é possível pensar em liberdade se o indivíduo não puder ser sujeito da própria vida, destino e desejo. A verdadeira liberdade é aquela em que “os sujeitos de direito não estejam submetidos aos ordenamentos jurídicos excludentes das diferentes e diversas formas de constituição de famílias, ou nos ordenamentos jurídicos que sobrepõem a forma à essência e ainda não consideram o afeto como norteador e condutor da organização jurídica sobre a família” (PEREIRA, 2003, p. 155).

Nas palavras de Marianna Chaves, hodiernamente, o princípio da liberdade individual se consubstancia “em uma perspectiva de privacidade, de intimidade, de livre exercício da vida privada. Liberdade se traduz, cada vez mais, na ideia de poder realizar, sem intervenção de qualquer natureza, as próprias escolhas individuais, o próprio projeto de vida, exercendo-o como melhor convier”. Assim, quanto à liberdade no âmbito da vida sexual, a autora afirma que o indivíduo pode dispor de si, pois cada um pode conduzir a sua vida como melhor entender, vez que o paternalismo que vigia nos ordenamentos de outrora, não possui mais espaço no sistema jurídico atual. Então, não é possível impor o que cada pessoa deve fazer com sua vida mediante lei coercitiva, pois, segundo a autora, “os deveres para consigo não devem ser impostos, apenas os deveres para com os outros se impõem”. Dito isto, sobrevém que o Estado não tem legitimidade para impor aos indivíduos determinado tipo de escolha, nem para denegar reconhecimento de direitos àqueles que exercem plenamente suas liberdades.

Assim, a liberdade consiste na possibilidade objetiva de decidir, donde se vislumbra sua grandiosa extensão, haja vista que são inúmeras as situações em que o sujeito exerce sua autonomia pessoal, decidindo e escolhendo o caminho que melhor lhe aprouver. Daí, entrevemos as liberdades de expressão, de credo, de associação, de desenvolvimento da própria personalidade, bem como a liberdade sexual, aqui entendida em sentido lato, incluindo, portanto, inter alia, a liberdade de se relacionar sexualmente com quem assim o deseje, e a liberdade à livre orientação sexual. Portanto, a liberdade sexual deriva da autonomia privada de cada um e não pode ser tolhida ou ignorada pelo Estado, cuja incumbência é exatamente garantir que os cidadãos gozem plenamente das suas liberdades. Por outro lado, sendo a liberdade de orientação sexual amplamente protegida pela Constituição Federal, não é legítimo ao Estado, nem a ninguém, estabelecer qual tipo de inclinação sexual é válida ou reconhecida, condenando ou ignorando as demais. Nesta esteira, o Estado age ao arrepio da Carta Magna quando determina a orientação heterossexual como a única digna de direitos que possam advir de relacionamentos com essa orientação, excluindo ou, simplesmente, não reconhecendo a orientação homossexual. De sorte que, reputando-se esta orientação inválida, tolhe-se a liberdade sexual dos homossexuais, e viola-se, por tabela, a dignidade dos mesmos, relegando tal categoria ao banimento excludente dos guetos clandestinos.

Adotando uma concepção eudemonista de liberdade, José Sebastião de Oliveira (2002) discursa: “a liberdade é a palavra central que permeia todas as novas espécies de constituição familiar. Liberdade para escolher o parceiro; liberdade para expandir suas aptidões pessoais; liberdade de diálogo; liberdade contra o falso moralismo que ainda está impregnado nos discursos de alguns grupos sociais; liberdade de ser feliz!”. Na mesma direção, Marianna Chaves (2011): “a liberdade consiste, afinal, na possibilidade de uma coordenação consciente dos meios necessários ao desenvolvimento da personalidade e à realização da felicidade pessoal”.

Vê-se, pois, que a liberdade, no que tange à sexualidade do indivíduo, está em escolher livremente o parceiro que lhe satisfaça os desejos e sentimentos perseguidores de uma realização pessoal eudemonista de vida, bem como no alvedrio da sua própria autonomia de agir naturalmente e independentemente de coerção de familiares, sociedade ou do próprio legislador, sem receio de não ser aceito ou ofendido ou ignorado. Está ainda (a liberdade) na autonomia de constituição da própria família, e na autonomia de escolha do modelo de união com a outra pessoa amada da forma que melhor lhe suscite paz e felicidade, ainda que a outra seja do seu gênero idêntico, e mesmo que as outras pessoas repudiem essa ideia ou união.

A genuína forma de liberdade, enquanto princípio, no tocante ao sentimento entre pessoas do mesmo sexo, traduz-se em amar puramente, sem reservas, temores ou inseguranças que advenham em função do comportamento e não aceitação sociais. Traduz-se, ainda, na possibilidade de decidir livremente a forma como pretende unir-se à pessoa amada, vale dizer, o instituto jurídico-social que melhor se adéque à realização eudemonista do casal (ou do par): se pela união estável, sem formalidades, ou pelo casamento, com toda a formalidade que apresenta a solenidade.

Promulga Maria Berenice Dias quanto a esse entendimento: “em face do primado da liberdade, é assegurado o direito de constituir uma relação conjugal, uma união estável hetero ou homossexual. Há a liberdade de extinguir ou dissolver o casamento ou a união estável, bem como o direito de recompor novas estruturas de convívio”. E ainda: “a orientação sexual do indivíduo, conquanto adotada na esfera de sua privacidade, não admite restrições. Qualquer restrição estaria indo contra a máxima da liberdade, a que faz jus todo ser humano, pois está conectada com sua condição de vida”.

Ante todo o exposto, conclui-se que, em pleno século XXI, numa República que se quer Estado Democrático de Direito, onde as liberdades devem prevalecer, notadamente a liberdade de escolha, pelo respeito à autonomia privada de cada indivíduo, é contrária à praxe constitucional a imposição de determinadas escolhas ou comportamentos, bem como a negativa de direitos àqueles cidadãos que fizeram sua escolha diferente da adotada pela maioria. Logo, “restringir a liberdade de escolha ou negar direitos aos que, por qualquer modo, se afastam do padrão dito ‘convencional’, em qualquer seara, é subtrair do ser humano sua própria dignidade, liberdade e direito à autodeterminação. É dizer a ele que sua conduta deve ser pautada pela racionalidade da maioria e não pela sua própria vontade” (RAGAZZI E GARCIA, 2011). Neste liame:

A homossexualidade é um fato da vida. Sempre existiu e sempre vai existir. Não há, portanto, nem nuca haverá, qualquer legislação que seja capaz de impor a um ser humano a observância obrigatória de uma determinada orientação sexual. A manifestação de desejo e amor por pessoas do mesmo sexo passa ao largo da legislação dos homens (RAGAZZI e GARCIA, 2011).

Rematando a análise do respaldo do princípio da igualdade ao casamento homoafetivo, conclui-se que, por ser objetivo fundamental da República Federativa do Brasil “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, inciso I), os indivíduos devem ter, dentre outras liberdades, a de escolher livremente – com o perdão do pleonasmo – seus parceiros sexuais, sem qualquer ingerência do Estado e sem que tal escolha implique em injustas restrições de tratamento por parte do ordenamento jurídico. Uma sociedade solidária, por sua vez, deve acolher e apoiar as escolhas dos indivíduos, oportunizando-lhes sua formação pessoal e realização eudemonista de vida, vale dizer, o direito vital e constitucional de ser feliz, ainda mais quando tais escolhas em nada afetem os direitos dos demais indivíduos, como o é no caso do casamento homoafetivo. O casamento civil deve ser disponível a todos, independentemente de orientação sexual, posto que entendido como um direito do homem, e não um privilégio heterossexual.

4.4.3 Princípio da Igualdade e do Respeito à Diferença:

O princípio da liberdade está intrinsecamente ligado ao da igualdade, vez que só existe liberdade se existir igualdade concomitante e proporcionalmente. Nesse diapasão, Maria Berenice Dias (2007): “inexistindo o pressuposto da igualdade, haverá dominação e sujeição, não liberdade”; e Jorge de Medeiros (2008): “o exercício da liberdade é dependente do exercício da igualdade em um grau abstrato, uma igualdade que reconhece todos os sujeitos sociais como merecedores de igual consideração (...). A liberdade depende da igual consideração como cidadão”.

A igualdade é um dos princípios basilares da estrutura jurídica constitucional, a qual é citada, inicialmente, no texto preambular[25] da Constituição Federal de 1988, em que é alçada a valor supremo de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, no Estado Democrático de Direito. Ademais, a Carta Magna resguardou o respeito à diferença, que resulta do princípio da igualdade, ao elencar em seu art. 3º, IV, como objetivo fundamental da República a promoção do “bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Ainda, insculpiu a igualdade em seu art. 5º, sob o escudo da dignidade da pessoa humana: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

Porque a Constituição veda qualquer tipo de discriminação, não é admissível que aos homossexuais não sejam estendidos os mesmos direitos que aos heterossexuais, sobretudo nos cenários jurídico e legislativo. Se todos são iguais perante a lei, insubsiste qualquer argumento jurídico apto a afastar os homoafetivos dos direitos civis conferidos aos casais heteroafetivos, inclusive o casamento, notadamente após superada a problemática do reconhecimento das uniões homoafetivas como entidade familiar, com o julgamento da ADI 4.227 e da APDF 132. Isso porque, uma vez igualada à união estável e, portanto, sujeita de todos os direitos civis dela decorrentes, a união homoafetiva – como união estável que é, repise-se –, pode e deve ser convertida em casamento por força do preceituado no art. 226, § 3º, da Constituição Federal.  Sob pena de se instituir o absurdo de que todos são iguais, mas os homoafetivos são menos iguais que todos.

A própria ideia de justiça se fundamenta no princípio da igualdade. “A ideia de justiça sugere inevitavelmente a todos a noção de igualdade certa” (PERELMAN, 2005). Diante disso, igualdade não se traduz tão somente na aplicação igual da lei, mas, outrossim, na criação de lei uníssona para todos. Assim, a consideração igualitária que se deve dispensar a todos os indivíduos não se trata de ignorar as diferenças fáticas existentes entre eles, mas de tratá-los por igual exatamente em virtude de suas diferenças. Daí sobrevém que tentar criar um instituto novel, sui generis, para regulamentar o mesmo instituto – vale dizer, o casamento –, é tratar com desigualdade os iguais, ou considerar desiguais – ou menos iguais – os homossexuais em relação aos heterossexuais.

Não se trata aqui, portanto, de aplicar a máxima aristotélica de “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida da sua desigualdade”, vez que, conforme explica Marianna Chaves (2011), “tal tratamento diferenciado só poderá existir na ocorrência de uma fundamentação racional que o justifique. Na falta de fundamentação válida ou no caso de esta ser insuficiente, é de se entender que, em virtude da igualdade, deve se aplicar o mesmo regime jurídico a todas as situações”. Tal discussão, entretanto, enseja o debate sobre a necessidade ou não de normatização do casamento homoafetivo – e do direito homoafetivo em geral –, razão pela qual, abstenho-me de explanar agora, posto que o farei em momento oportuno.

É por todos cediço que a isonomia está consagrada na Carta Cidadã de 1988 como valor supremo do Estado Democrático e princípio basilar de toda a estrutura constitucional. Qualquer pretensão de trato diferenciado entre os indivíduos deve ser muito bem fundamentada, racional, lógica e compatível com os preceitos constitucionais. Se a diferenciação não observa esses pressupostos, ela estará infringindo o seio constitucional. Partindo-se de tal silogismo, Marianna Chaves indaga: “o óbice ao acesso dos homossexuais ao instituto do casamento é uma diferenciação que possui fundamento lógico-racional?” Entendo, por óbvio, e por tudo até aqui exposto, bem como tudo o quanto será explanado, que não. Não fosse assim, qual seria tal fundamento lógico-racional? O sexo dos nubentes? Sua orientação sexual? Então podemos tolher direitos e dispensar trato desigual destrinçando os indivíduos em razão do seu sexo ou da sua orientação sexual?

Consentindo quanto à inexistência de argumento jurídico válido e apto a sustentar qualquer fator de discriminação em relação aos casais homossexuais, José Luiz Ragazzi e Thiago Munaro Garcia bradam que “não é legitimo a ninguém, quem quer que seja, e por qual motivo seja, supor que homens e homens e mulheres e mulheres não sejam capazes de constituir verdadeira família que, independentemente da orientação sexual de seus membros, continuará sendo a célula da sociedade”. E complementam: “o que levaria um ser humano a acreditar, e por vezes defender, que outro ser humano não possa ser sujeito de direitos apenas e tão somente porque ostenta orientação sexual diversa da sua? Parece-nos que não existe qualquer justificativa plausível ou minimamente aceitável a amparar tão desarrazoada pretensão” [26] (RAGAZZI e GARCIA, 2011).

Para rematar o debate acerca do princípio da igualdade e respeito à diferença, trago à lume as palavras do ministro relator Felipe Salomão, quando do julgamento do Recurso Especial nº 1183378, pelo STJ, que admitiu o pedido de habilitação para casamento entre duas mulheres: “De fato, a igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o direito a auto afirmação e a um projeto de vida independente de tradições e ortodoxias. Em uma palavra: o direito à igualdade somente se realiza com plenitude se é garantido o direito à diferença” (com grifos no original).

4.4.4. Princípio da Razoabilidade

Na defesa dos direitos dos homossexuais, alguns autores, a exemplo de Jorge de Medeiros, José Ragazzi e Thiago Garcia, apresentam ainda como baluarte constitucional o direito da razoabilidade, que, inobstante não expressamente previsto no texto constitucional[27], goza de grande autoridade nos cenários da doutrina e da jurisprudência.

O princípio da razoabilidade representa um critério de aferição da constitucionalidade das leis e atos normativos, bem como um critério de orientação dos julgadores. Assim, a razoabilidade orienta e põe limites às condutas do legislador na criação das leis, do administrador na gestão da coisa pública, e do julgador na solução dos conflitos de interesses; condenando qualquer arbitrariedade, e determinando-lhes que ajam em nome do Estado de forma moderada, racional, justa e impessoal. Por outro lado, se qualquer ato se apresentar irracional, arbitrário, ou maculado de sentimento pessoal em dissonância com a ordem constitucional, o princípio da razoabilidade se impõe contra os mesmos em prol de se resguardar os mandamentos da Lei Maior.  

Diante disso, Ragazzi e Garcia concluem que, ao considerarmos que a Constituição Federal “ergueu a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental da ordem jurídica e realçou os direitos de liberdade, igualdade e respeito à diversidade, não se afigura razoável qualquer tentativa de restrição ou negativa de direito às pessoas em função de sua orientação sexual” (RAGAZZI e GARCIA, 2011).

Destarte, quaisquer leis, atos administrativos ou decisões judiciais que neguem ou deixem de reconhecer direitos às pessoas em virtude de sua orientação sexual, estão em flagrante afronta à Constituição Federal, por violarem o princípio da razoabilidade.

4.4.5 Princípio da Proporcionalidade

O princípio da proporcionalidade, nas elucidativas palavras de Paulo Vecchiatti,

Visa, precipuamente, a servir como método de controle dos atos estatais no sentido de averiguar a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito das medidas estatais em debate para, neste terceiro momento (que supõe necessariamente o reconhecimento da adequação e da necessidade citadas), solucionar o conflito entre dois ou mais direitos fundamentais em choque por parte dessas medidas, através de um juízo de ponderação entre eles para, identificado aquele que seria mais relevante no caso concreto, sacrificar (o menos possível) o outro (VECCHIATTI, 2011).

Dessa forma, quando, da criação da lei, da adoção de medidas administrativas ou da decisão de conflitos de interesses, houver colisão de direitos fundamentais, o princípio da proporcionalidade deverá ser acionado como critério de ponderação, pesando cada qual dos direitos confrontantes, de modo que o mais importante que se afigure ao caso concreto se sobreponha aos demais, bem como que nenhum deles seja completamente desprezado, haja vista se tratarem de direitos fundamentais.

Assim como o princípio da razoabilidade, a proporcionalidade não se apresenta de forma expressa no texto constitucional, e, inobstante sejam muitas vezes confundidos ou tratados como sinônimos, ambos exercem funções diversas na estrutura constitucional. Enquanto aquele se apresenta como critério de aferição de constitucionalidade de leis e atos normativos, o princípio da proporcionalidade[28], como esclarecem Ragazzi e Garcia, se presta à “manutenção e conformação da coexistência pacífica e harmoniosa do amplo rol de direitos fundamentais consagrados à pessoa humana”.

Ainda no tocante à diferença entre este e aquele princípio anteriormente analisado, Ragazzi e Garcia observam que, diferentemente do princípio da razoabilidade, que é fundamental no reconhecimento de direitos às uniões homoafetivas, o princípio da proporcionalidade não vislumbra tal importância, porque o reconhecimento desses direitos não importa em qualquer colisão com outro direito fundamental. “Na luta pelo reconhecimento de direitos homoafetivos, portanto, haverá sempre que se falar em razoabilidade, mas não em proporcionalidade, pois não se concebe, com isto colisão de direitos” (RAGAZZI e GARCIA, 2011). Em outras palavras, ao se atribuir direitos às pessoas do mesmo sexo, inclusive o casamento, não há exclusão ou mitigação de outros direitos fundamentais dos pretendentes à constituição de família, nem de outras pessoas quaisquer. Diante disto, Marianna Chaves impõe o seguinte questionamento: que prejuízo teria a sociedade em se conceder o matrimônio aos pares homoafetivos? Que bem jurídico tutelado justifica a negativa estatal a este tipo de casamento, que em absolutamente nada afronta a Constituição ou a legislação infra?

Tal indagação é de todo rechaçada pelo ilustre posicionamento do ministro relator Ayres Britto, quando do julgamento da ADI nº 4.227 e da APDF nº 132, que alçou a união homoafetiva à entidade familiar mediante sua equiparação à união estável. Convém trazer à baila as nobres palavras do mestre:

Mas tanto numa quanto noutra modalidade de legítima constituição da família, nenhuma referência é feita à interdição, ou à possibilidade, de protagonização por pessoas do mesmo sexo. (...) Inteligência que se robustece com a proposição de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um interesse de outrem. E já vimos que a contraparte específica ou o focado contraponto jurídico dos sujeitos homoafetivos só podem ser os indivíduos heteroafetivos, e o fato é que a tais indivíduos não assiste o direito à não-equiparação jurídica com os primeiros. Visto que sua heteroafetividade em si não os torna superiores em nada. Não os beneficia com a titularidade exclusiva do direito à constituição de uma família. Aqui, o reino é da igualdade pura e simples, pois não se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham. E quanto à sociedade como um todo, sua estruturação é de se dar, já o dissemos, com fincas na fraternidade, no pluralismo e na proibição do preconceito, conforme os expressos dizeres do preâmbulo da nossa Constituição.

Como se nota, a abertura do casamento aos casais homoafetivos em nada prejudica, obsta ou minimiza quaisquer outros direitos dos heteroafetivos. Ao contrário, os primeiros ganham por verem efetivados e consolidados seus direitos fundamentais, sobretudo sua dignidade – antes tratada como uma “subdignidade” –, igualdade e liberdade. Por outro lado, ao se denegar tal direito aos mesmos, nem perdem nem ganham os heterossexuais, mas perdem em muito os homossexuais. Nas palavras de Ragazzi e Garcia: “qualquer que seja o direito reconhecido às uniões homoafetivas ele não colidirá com outros direitos fundamentais, de modo que não há que se falar, nessas situações, em proporcionalidade” (RAGAZZI e GARCIA, 2011).

4.4.6 Princípio da Não Discriminação em Razão do Sexo

A Constituição Federal de 1988 não veda expressamente a discriminação por orientação sexual, embora o entendimento que se sobrepõe na doutrina e jurisprudência é o de que a vedação à discriminação por orientação sexual é açambarcada pela vedação à discriminação em razão do sexo[29], vez que ambas conotam a sexualidade[30]. Além disso, a autodeterminação da escolha sexual do indivíduo está resguardada em diversos dispositivos e princípios constitucionais, podendo ser vislumbrada mediante uma simples interpretação teleológica e sistemática do texto da Lei Maior. Defendendo tal assertiva, Luiz Edson Fachin e Melina Girardi Fachin argumentam: “capacidade de autodeterminação da escolha sexual individual, conferida pelo constituinte, deriva da interpretação sistemática e evolutiva do texto constitucional, em especial no que tange à proteção da dignidade humana, art. 1º, III, e do princípio da igualdade, art. 5º, caput” (FACHIN E FACHIN, 2011).

Percebe-se a visceral imbricação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e o livre desenvolvimento da personalidade do indivíduo, no que tange ao direito à autodeterminação sexual – notadamente a inclinação homossexual – e seu consequente respeito. A imperatividade constitucional de ambos, vale dizer, a dignidade da pessoa e a liberdade de desenvolvimento da sua personalidade, equacionam a vedação à discriminação em razão do sexo, sobretudo em razão da orientação sexual. Acerca disso, afiança Mota Pinto: “a afirmação da liberdade de desenvolvimento da personalidade humana e o imperativo de promoção das condições possibilitadoras desse livre desenvolvimento constituem já corolários do reconhecimento da dignidade da pessoa humana como valor no qual se baseia o Estado” (PINTO, 1999 apud FACHIN E FACHIN, 2011). Complementam, em consequência, Ragazzi e Garcia: “qualquer tentativa de restringir direitos a um grupo de pessoas, única e exclusivamente por conta de sua orientação sexual, é negar-lhes a própria dignidade, o que é inadmissível” (op. cit.).

Ainda que não se concordasse com a inclusão da vedação à discriminação por orientação sexual na vedação à discriminação em razão do sexo, estaria regulamentada pelo mesmo inciso IV, do art. 3º da CF, quando preconiza constituir objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (grifei).

Demais disso, Marianna Chaves aponta que “a discriminação por orientação sexual configura uma hipótese de diferenciação baseada no sexo do indivíduo para quem alguém endereça seu afeto, uma vez que a caracterização de uma ou outra orientação sexual é resultado da combinação dos sexos daqueles envolvidos no relacionamento” [31]. (CHAVES, 2011, p. 77).

Ainda segundo a autora, as vedações de diferenciação estão esteadas no enunciado geral do princípio da isonomia, por isso não se sustenta a tese da obrigatoriedade da vedação expressa à discriminação. Assim, resta equivocado o juízo que sustenta a taxatividade dos critérios proibitivos de diferenciação.

Fachin e Fachin (2011) ainda vislumbram a proteção constitucional à vedação à discriminação por orientação sexual do indivíduo, por outro ângulo: “a fonte constante de oxigenação do sistema constitucional das garantias fundamentais, estampada no § 2º do art. 5º, permite a necessária maleabilidade e pluralidade do direito perante os fatos sociais, apenas encontradas em Estados de Direito verdadeiramente democráticos”. E complementam citando a reflexão de Ingo Sarlet (1998): “esta abertura permite a possibilidade de identificação e construção jurisprudencial de direitos materialmente fundamentais não escritos (no sentido de não expressamente positivados), bem como de direitos fundamentais constantes em outras partes do texto constitucional e nos tratados internacionais” (FACHIN E FACHIN, 2011).

Como concluiu a Quarta Turma do STJ no julgamento do RE 1183378, a dignidade da pessoa humana, consagrada pela Constituição, não é aumentada nem diminuída em razão do uso da sexualidade, e a orientação sexual não pode servir de pretexto para excluir famílias da proteção jurídica representada pelo casamento.

Concluindo com o respaldo do princípio ora em tela na possibilidade de casamento homoafetivo, a doutrina preconizada nesta monografia protesta também pelo direito dos homossexuais de receberem do Estado brasileiro o estado jurídico de pessoa casada, pois é esta uma materialização dos direitos da personalidade. Os homossexuais, ao contrário dos hetero, não podem fazer jus a esse direito de cidadania, e a explicação disso não é outra senão em razão da sua orientação sexual. E aqui reside patente afronta ao princípio da igualdade, pois diferencia-se dois grupos de pessoas (hetero e homossexuais) em função de sua preferência sexual por pessoas do mesmo sexo, e essa diferenciação culmina no privilégio de um grupo e prejuízo de outro, sem que haja qualquer razão lógica relevante. É gritante o insulto a um dos objetivos fundamentais da República, que veda qualquer forma de discriminação, inclusive a discriminação por orientação sexual, como visto no art. 3º, inciso IV, da Carta Política de 1988.

4.4.7 Princípio da Solidariedade

De acordo com Ragazzi e Garcia, o princípio da solidariedade pode ser extraído do art. 3º, inciso IV da Constituição Federal, ao determinar que é objetivo da República promover o bem de todos e se despir de quaisquer preconceitos inundados. Os autores ensinam que a fraternidade e a solidariedade são inerentes à própria concepção de dignidade da pessoa humana, “consubstanciadas no dever de respeito no âmbito da comunidade dos seres humanos. É exatamente nesse sentido, de respeito ao ser humano e às suas escolhas, que o princípio da solidariedade se insere no reconhecimento de direitos às uniões homoafetivas”.

Assim, a solidariedade trata-se do amor ao próximo, da harmonia e união dos seres que convivem entre si, se ajudando, respeitando, amando, e contribuindo para uma existência digna de todos os seres humanos, pois ninguém é autossuficiente, e todos dependem de todos (RAGASSI E GARCIA, 2011).

Nesse contexto, bem observa Maria Berenice Dias:

A realização integral da humanidade abrange todos os aspectos necessários à preservação da dignidade humana e inclui o direito do ser humano de exigir respeito ao livre exercício da sexualidade. É um direito de todos e de cada um, a ser garantido a cada indivíduo por todos os indivíduos. É um direito de solidariedade, sem o qual a condição humana não se realiza, não se integraliza.

Assim, em razão da solidariedade que une os seres humanos enquanto raça humana, é dever de todos os indivíduos e do Estado respeitar o próximo e as diferenças que se apresentem. Por conseguinte, “cai por terra qualquer entendimento no sentido de que os homossexuais, apenas por valerem-se de orientação sexual diversa daquela exercida pela maioria, não possam gozar de todos os direitos e garantias previstos na Constituição e em todo o ordenamento jurídico” (RAGAZZI e GARCIA, 2011).

4.4.8 Princípio do Livre Planejamento Familiar

O princípio do livre planejamento familiar está previsto no texto constitucional no art. 226, § 7º, que assim dispõe: “Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”.

Daí decorre que nem o Estado nem a sociedade podem estabelecer limites ou condições para o exercício pleno do planejamento familiar assegurado a todo cidadão, e não só ao casal, dentro do âmbito da autonomia privada do indivíduo. Acerca deste princípio, Arnaldo Rizzardo assevera que:

Desde que não afetados princípios de direito ou o ordenamento legal, à família reconhece-se a autonomia ou liberdade na sua organização e opções de modo de vida, de trabalho, de subsistência, de formação moral, de credor religioso, de educação dos filhos, de escolha de domicílio, de decisões quanto à conduta e costumes internos. Não se tolera a ingerência de estranhos – quer de pessoas privadas ou do Estado -, para decidir ou impor no modo de vida, nas atividades, no tipo de trabalho e de cultura que decidiu adotar a família. Repugna admitir interferências externas nas posturas, nos hábitos, no trabalho, no modo de ser ou de se portar, desde que não atingidos interesses e direitos de terceiros (RIZZARDO, 2006) (sem grifos no original).

Em verdade, o casamento entre pares homossexuais, como elemento constituidor – porém não o único – da família tem o amparo do princípio do livre planejamento familiar, vez que não afeta direito de terceiros nem viola outros princípios de direito. Ademais, a satisfação e o exercício do direito ao planejamento familiar estão inseridos na seara da autonomia e da autodeterminação da pessoa, aparelhos nucleares da dignidade da pessoa humana. Assim, aos indivíduos devem ser asseguradas a autonomia e a liberdade de formação e organização da entidade familiar, sem ingerência externa de quem quer que seja.

Dessa forma, o planejamento familiar reveste-se tanto de um cunho negativo – o não fazer do Estado –, quanto de uma visão positiva, haja vista que o indivíduo tem autonomia e liberdade de escolha em quaisquer requisitos da constituição da sua família – desde que não viole direitos alheios –, especialmente na escolha do parceiro, a pessoa amada, aquela que se repute merecedora do seu amor e da sua companhia na comunhão plena de vida. A escolha do parceiro, como se disse, é livre, autônoma, seja ele ou não do mesmo gênero que o seu, pois o uso da sexualidade, inclusive a orientação sexual, é fruto da autodeterminação do indivíduo, que faz o que bem entender dela, desde que não viole direitos alheios, podendo até mesmo dispor da própria sexualidade.

Sobre o princípio em foco, vale repisar as alumiadas palavras de Luis Felipe Salomão:

A igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o direito à autoafirmação e a um projeto de vida independente de tradições e ortodoxias. Em uma palavra: o direito à igualdade somente se realiza com plenitude se é garantido o direito à diferença. Conclusão diversa também não se mostra consentânea com um ordenamento constitucional que prevê o princípio do livre planejamento familiar (§ 7º do art. 226). E é importante ressaltar, nesse ponto, que o planejamento familiar se faz presente tão logo haja a decisão de duas pessoas em se unir, com escopo de constituir família, e desde esse momento a Constituição lhes franqueia ampla liberdade de escolha pela forma em que se dará a união. (...) não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar. (REsp 1183378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012) (grifos meus).

A doutrina perseguida nesta pesquisa também indigita outros princípios constitucionais orientadores do casamento homoafetivo, a exemplo dos princípios da afetividade e da pluralidade familiar, ambos já ventilados no capítulo referente à família[32].

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Evellin Costa. O casamento homoafetivo à luz da constitucionalização do Direito Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3418, 9 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22964. Acesso em: 30 abr. 2024.

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