No sistema processual brasileiro, vigora o principio da tipicidade dos meios executivos, segundo o qual o magistrado somente pode admitir a execução que se fundamente em meios executivos tipicamente previstos em lei.
Referido princípio lastreia-se no disposto no art. 583. do Código de Processo Civil, o qual estabelece que toda execução basear-se-á em título executivo, judicial ou extrajudicial, sendo que a ausência de título gera nulidade, a teor do art. 618, I.
É que a doutrina e a jurisprudência se manifestam no sentido de ser taxativo o rol dos títulos executivos previstos em lei, considerando-os numerus clausus (nullun titulus sine lege). Nesse passo, a exegese do art. 585. não permite a forma extensiva, sob pena de ser atribuída força executiva a documento que, em essência, não corporifica uma dívida líquida, certa e exigível.
Com base em tal princípio, entende-se que as “modalidades executivas devem ser idôneas às necessidades de tutela das diferentes situações de direito substancial” (MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Execução. São Paulo: RT, 2007, p. 61.
Por outro lado, há os que defendem que o disposto no artigo 461 §5° do CPC, que estabelece que o juiz pode determinar as medidas que entender necessárias para a efetivação da tutela específica, independentemente de previsão legal, aplica-se igualmente à execução para pagamento de quantia certa.
Dessa forma, o chamado “poder geral de cautela”, previsto para as obrigações de fazer e não fazer, aplica-se, segundo alguns autores, igualmente à execução para pagamento de quantia certa. Porém, trata-se de entendimento minoritário, prevalecendo a vigência do mencionado princípio da tipicidade dos meios executivos.
Assim, com base no entendimento predominante, para que um documento alcance a qualidade de título executivo extrajudicial, é necessária expressa previsão legal neste sentido, que tanto pode estar contida no próprio Código de Processo Civil, como em leis esparsas.
Atualmente, vem-se deparando na rotina judiciária com processos de execução de título executivo extrajudicial tendo por objeto Portarias expedidas por Ministros de Estado, como, por exemplo, as portarias que declaram a anistia de militares, com os respectivos direitos patrimoniais, as quais, uma vez inadimplidas pelo Poder Público, são pleiteadas judicialmente por seus beneficiários, por meio de ação de execução.
Cabe destacar que não há previsão legal conferindo à Portaria o caráter de título executivo extrajudicial, qualquer que seja o objeto.
Nesse prisma, cumpre registrar que a legislação de regência do instituto da anistia (Lei n°10.559/2002) atribuiu, ao Ministro de Estado da Justiça, competência para decidir sobre os processos de anistia, porém, não conferiu a tais decisões, convertidas em portarias, o caráter de título executivo, apto a lastrear uma execução judicial.
Dessa forma, o cumprimento da portaria não pode se dar pelo rito do art. 730. do Código de Processo Civil, afinal, não se trata apenas do recebimento da prestação pecuniária, mas, sim, do integral cumprimento do ato administrativo que concede a anistia.
Ao contrário, o § 4º do art. 12. da Lei nº 10.559, assim estabelece:
Art. 12: (...)
§ 4o As requisições e decisões proferidas pelo Ministro de Estado da Justiça nos processos de anistia política serão obrigatoriamente cumpridas no prazo de sessenta dias, por todos os órgãos da Administração Pública e quaisquer outras entidades a que estejam dirigidas, ressalvada a disponibilidade orçamentária.
Como é de se ver, referido dispositivo legal deixa inconteste que as requisições e decisões referentes a processos de anistia destinam-se exclusivamente aos órgãos da Administração Pública e a outras entidades a que estejam dirigidas, ressalvada, inclusive, a disponibilidade orçamentária.
Resta claro, destarte, o caráter de ato administrativo de que se reveste a Portaria, que deve observar, inclusive, a disponibilidade financeira dos órgãos responsáveis por eventuais pagamentos.
Assim, de todo inviável o requerimento de cumprimento das obrigações constantes das mencionadas portarias, por meio de ação de execução e título extrajudicial.
Confira-se, inclusive, o recente posicionamento do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria ora em debate:
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. PORTARIA QUE RECONHECE CONDIÇÃO DE ANISTIADO POLÍTICO. ART. 585, II, DO CPC. TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. NÃO CONFIGURAÇÃO. PRECEDENTE ESPECÍFICO.
1. Cuida-se de recurso especial interposto contra acórdão da origem que consignou que a portaria concessiva de anistia política não configura título executivo extrajudicial, nos termos do art. 585, II, do CPC e, portanto, não pode ser utilizada para execução no rito fixado pelo art. 730. do CPC.
2. A Segunda Turma já acordou que as portarias de concessão de anistia política não são enquadráveis como títulos executivos extrajudiciais, nos termos do art. 585, II do CPC, pois o referido enquadramento "deve ser feita de forma restritiva, já que este autoriza uma atuação enérgica em relação ao patrimônio da entidade" (REsp 700.114/MT, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJ 14.5.2007, p. 251). Precedente específico: AgRg no REsp 1.303.419/PE, Rel. Ministro Humberto Martins, DJe 20.8.2012. Agravo regimental improvido.
(AgRg no REsp 1362644/PE, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 23/04/2013, DJe 02/05/2013) (grifo nosso).
De fato, a Portaria de concessão de anistia política é um ato administrativo, inexistindo texto legal que lhe confira caráter de executoriedade, não podendo ser equiparada a “documento público assinado pelo devedor” afinal, o Ministro de Estado da Justiça não está autorizado pela Lei de Anistia a confessar débitos em nome da União.
Outrossim, estando a Administração Pública, necessariamente, adstrita ao princípio constitucional da legalidade, inserto no art. 37, caput, da Carta Magna, e sendo a criação de título executivos extrajudiciais matéria de sede legal, carece de suporte jurídico a pretensão de caracterizar a Portaria em referência como hábil a sustentar a presente execução.
Em arremate ao exposto, resta claro que a portaria de concessão de anistia política não possui a natureza de título executivo extrajudicial, restando ao beneficiário, uma vez não cumpridas as suas especificações de forma espontânea pelo Poder Público, pleitear o seu adimplemento por meio de ação de conhecimento, para, assim, obter a execução de sua pretensão com base na sentença de mérito do pleito.