Conclusão
Com toda essa exposição, é possível observar que a criminalização do aborto vai em sentido contrário a diversos valores, como não só do funcionalismo redutor de um Direito Penal mínimo, mas também a efetiva proteção aos Direitos Fundamentais da mulher. Urge, portanto, a necessidade de ponderação dos preceitos aqui elencados para uma tutela efetiva e justa, em consonância com os ditames constitucionais.
Atribuir-se ao feto todos os direitos de um ser humano adulto é equivocado, já que ainda não é um ser real, dotado de personalidade, apenas em potencial. Sendo assim, quando há uma colisão de direitos, deve prevalecer os direitos da mulher gestante, uma vez que é certo que seus direitos já foram concretizados, ela já adquiriu o atributo de personalidade e está em plena vida; a sua dignidade, portanto, deve se sobrepor à futura dignidade do feto, caso contrário, estar-se-ia privilegiando direitos de um feto que está apenas em estado potencial e que, por isso, não foram ainda adquiridos, visto que estão em condição suspensiva, dependendo do nascimento para daí se tornarem efetivos. Não se deve privilegiar situações instáveis às situações concretas. Não se deve impor uma gravidez a uma mulher, violando os princípios de igualdade e saúde da mesma, com base em uma mera expectativa de vida que o feto poderá revelar ou numa futura dignidade. A personalidade é o ponto de apoio de todos os direitos e obrigações, logo, esse atributo concreto da gestante deve prevalecer. Não se pode permitir que o direito confira mais direitos àqueles que ainda não o possuem. Logo, a preferência deve ser para a vida já instituída.
Os valores que informam a criminalização do aborto não necessitam ser garantidos por meio do Direito Penal, sendo certo que existem meios mais eficazes e menos lesivos para a efetiva proteção da vida intra-uterina. Na hipótese em que a manutenção da vida humana dependente entrar em conflito com direitos igualmente fundamentais da gestante, tais como sua liberdade, autonomia reprodutiva, dignidade e saúde, a criminalização do aborto pode ser traduzida em uma exigência desproporcional, importando, assim, no sacrifício de valores existenciais da mulher. Ainda que o direito à vida seja o direito fundamental por excelência, a sua precedência lógica em relação aos demais direitos não lhe confere um valor axiológico superior. O legislador constituinte não realizou nenhuma hierarquização desses direitos, com base em eventual valoração axiológica, conforme mencionado anteriormente. Logo, a ponderação de direitos no caso do aborto deve sempre pender aos direitos e garantias já instituídas na personalidade da gestante, não prevalecendo potencialidades e situações instáveis em confronto à saúde, à liberdade e à autonomia de uma vida em plenitude.
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Notas
1 FRAGOSO, Heleno Claudio. Lições de direito penal. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense universitária, 1986.
2 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado – 8ª ed. rev. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
3 “O cristianismo considerou o feto criatura de deus, uma esperança de vida humana que deveria ser protegida pela religião, pela moral e pelo direito. E, assim, a punição foi introduzida nas principais legislações no últimos tempos da Idade Média [...]. (PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro V.2 – Parte especial (arts. 121 a 361). 2ª ed. São Paulo: RT, 2007. p. 62)
4 CODIGO 1830 - Art.199. Occasionar aborto por qualquer meio empregado interior ou exteriormente com consentimento da mulher pejada. Penas – de prisão com trabalho por um a cinco anos [...] Se este crime for commettido sem consentimento da mulher pejada. Penas – dobradas
5 CODIGO 1890 - Art. 301. Provocar aborto com annuencia e accordo da gestante: Pena – de prisão celular por um a cinco anos. [...] em igual pena incorrerá a gestante, que conseguir abortar voluntariamente, empregando para esse fim os meios; e com reducção da terça, se o crime fôr commettido para occultar a deshonra propria.
6 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte especial, vol.2 – 2ª ed. rev. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2002.
7 STF – ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio (j. 11 e 12.04.2012): O Tribunal declarou a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada como crime de aborto pelo Código Penal.
8 FEITOSA, Gisleno. Interrupção da gestação em caso de anencefalia. In: COSTA, Sergio; FONTES, Malu & SQUINCA, Flávia. Tópicos em bioética. Brasília: Letras Livres, 2006.
9 NOVELINO, Marcelo. Manual de direito constitucional – 8. Ed. ver. E atual. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2013.
10 Gomes, Luiz Flávio (org.). Código Penal. 13ª Edição rev., ampl. e atual. SP: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, p. 246.
11 Monte FQ. A ética na prática médica. Bioética. 2002;10(2):15.
12 ROULAND, Norbert. Nos Confins do Direito. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 343.
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14 Madeira P. Argumentos sobre o aborto: Crítica na Rede. Acessado em 7 de agosto de 2010. Disponível em: www.criticanarede.com/aborto1.html.
15 (Código Civil, arts. 2o., 1609, 1799 e parágrafo único e 1.798).
16 "infans conceptus pro nato habetur".
17 Artigo publicado na “Folha de S. Paulo” de 30/12/2001, sob o título:”Dias Melhores se Avizinham”
18 Mill JS. On Liberty. Kitchener, Ontario: Batoche Books Limited; 2001
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