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Direitos fundamentais sociais: o papel do Judiciário

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Agenda 27/04/2016 às 08:38

4.  OS INSTRUMENTOS JURÍDICOS ADEQUADOS:

4.1     A Universalização e o Princípio da Igualdade:

A cláusula da reserva do possível poderia ser interpretada de três formas, segundo os ensinamentos de Daniel Sarmento[51].

Uma interpretação radical seria admitir a efetivação de direitos sociais em quase todas as situações, salvo quando restasse comprovada a ausência total de recursos públicos.

Outra possibilidade seria “conceber a reserva do possível como uma avaliação focada na tolerabilidade do impacto econômico da pretensão individual do titular do direito fundamental sobre o universo de recursos públicos.[52]”

Destarte, a efetivação do direito social poderia ser afastada apenas quando verificado impacto elevado sobre as contas públicas, admitindo-se a concessão individual de determinado benefício, ainda que o Estado não tenha recursos suficientes para estender o direito a outras pessoas, consoante o princípio da igualdade.

Todavia, o supracitado autor argumenta que a melhor interpretação é aquela, segundo a qual, “a reserva do possível fática deve ser concebida como a razoabilidade da universalização da prestação exigida, considerando os recursos efetivamente existentes.”

Dessa forma, com fulcro no princípio da igualdade, o Estado não deveria conceder a efetivação de determinado direito a um indivíduo se não tiver condições de estender o mesmo benefício a todos que se encontrarem nas mesmas condições fáticas.[53]

Além disso, considerados o princípio da igualdade e a desejável possibilidade de universalização de um benefício para a concessão judicial de um direito social, argumenta Daniel Sarmento[54]:

“Por isso, não concordo com a argumentação aduzida em algumas decisões judiciais em matéria de saúde, no sentido de que, tendo em vista a universalidade deste direito, seria irrelevante analisar se o autor da ação possui ou não os recursos necessários à aquisição da prestação demandada do Estado. Este dado me parece fundamental, pois, num caso, o sacrifício eventualmente imposto pela denegação da pretensão repercute tão-somente sobre o patrimônio do paciente, enquanto no outro pode estar em jogo a sua própria vida. Temo que este tipo de raciocínio, num contexto de acesso não igualitário à Justiça, possa legitimar um uso enviesado dos direitos sociais que, de instrumentos de emancipação em favor dos mais fracos, acabem se transformando em artifícios retóricos manejados pelas classes favorecidas.”(grifos nossos)

Face à escassez de recursos públicos, impõe-se a observância de tratamento igualitário, admitindo-se a concessão de certo direito social somente quando possível sua universalização, consoante Paulo Gilberto Cogo Leivas[55] “o mandado de igualdade material exige um tratamento desigual quando há razão suficiente para tanto”.

Em processos judiciais, em regra, trata-se de questões bilaterais e, no caso em testilha, observa-se o pedido de um indivíduo de efetivação de um direito social face ao Estado.

Sendo assim, considerada a escassez de recursos públicos, deve ser levada em conta a possibilidade de universalização do benefício, bem como a razoabilidade e essencialidade da concessão do direito social.

O Ministro Luís Roberto Barroso[56] preleciona que “o benefício auferido pela população com a distribuição de medicamentos é significativamente menor que aquele que seria obtido caso os mesmos recursos fossem investidos em outras políticas de saúde pública.”

Impõe-se, portanto, a reflexão sobre casos em que o Judiciário concede, por exemplo, um tratamento de saúde extremamente caro e sem qualquer comprovação de sua eficácia, enquanto aqueles recursos públicos deixam de ser utilizados para políticas de prevenção da mesma doença relativamente a milhares de pessoas ou em saneamento básico e higiene, que, da mesma maneira, poderiam evitar diversas moléstias de inúmeras pessoas.

Nessa linha, ensina Daniel Sarmento[57]:

“O processo judicial foi pensado com foco nas questões bilaterais da justiça comutativa, em que os interesses em disputa são apenas aqueles das partes devidamente representadas. Contudo, a problemática subjacente aos direitos sociais envolve sobretudo questões de justiça distributiva, de natureza multilateral, já que, diante da escassez, garantir prestações a alguns significa retirar recursos do bolo que serve aos demais. Boas decisões nesta área pressupõem a capacidade de formar uma adequada visão de conjunto, o que é muito difícil de se obter no âmbito de um processo judicial. (...) Na verdade, o processo judicial tende a gerar uma “visão de túnel”, em que muitos elementos importantes para uma decisão bem informada são eliminados do cenário”.(grifos nossos)

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Os obstáculos, acima descritos, quanto ao controle judicial das políticas públicas, podem ser reduzidos com a adoção, pelos juízes, de peritos especializados, inclusive no que diz respeito aos efeitos econômicos da decisão, bem assim com a maior participação de terceiros nas demandas judiciais (amici curiae) e realização de audiências públicas.

4.2     As Demandas Coletivas e Individuais:

Os problemas apontados no item 4.1 têm melhores chances de serem resolvidos ou, ao menos, atenuados, com escolha preferencial de ações coletivas em detrimento de individuais para efetivação dos diretos fundamentais sociais.

Nas demandas coletivas, o juiz pode perceber, com maior clareza, o impacto financeiro de sua decisão nas finanças públicas e promover a macrojustiça.

Ademais, seria facilitada a reflexão quanto à possibilidade de universalização do benefício requerido.

Além disso, as ações coletivas abrangem toda uma categoria de pessoas, inclusive os mais pobres e miseráveis, diversamente do que sói ocorrer nas demandas individuais. Isso porque, as ações individuais ficam restritas, em regra, à classe média, que possui maior conhecimento sobre seus próprios direitos e, portanto, maior acessibilidade efetiva à justiça.[58]

As lições do Ministro Luís Roberto Barroso[59] esclarecem quanto à escolha entre as demandas individuais e as ações coletivas:

“As políticas públicas de saúde devem seguir a diretriz de reduzir as desigualdades econômicas e sociais. Contudo, quando o Judiciário assume o papel de protagonista na implementação dessas políticas, privilegia aqueles que possuem acesso qualificado à Justiça, seja por conhecerem seus direitos, seja por poderem arcar com os custos do processo judicial. Por isso, a possibilidade de o Judiciário determinar a entrega gratuita de medicamentos mais serviria à classe média que aos pobres. (...)

Por fim, há ainda a crítica técnica, a qual se apoia na percepção de que o Judiciário não domina o conhecimento específico necessário para instituir políticas de saúde. O Poder Judiciário não tem como avaliar se determinado medicamento é efetivamente necessário para se promover a saúde e a vida. Mesmo que instruído por laudos técnicos, seu ponto de vista nunca seria capaz de rivalizar com o da Administração Pública. O juiz é um ator social que observa apenas os casos concretos, a microjustiça, ao invés da macrojustiça, cujo gerenciamento é mais afeto à Administração Pública.” (grifos nossos)

No mesmo sentido, defende Ingo Wolfgang Sarlet[60] que estaria, por meio da ação coletiva, “assegurado, por esta via um tratamento mais isonômico e racional, além de evitar ao máximo o casuísmo”.

O Ministro Luís Roberto Barroso[61] sustenta que a discussão abstrata, em ação coletiva, permite uma análise do contexto geral, diversamente do que ocorre nas ações individuais, na medida em que os legitimados ativos terão maior possibilidade de trazer, aos autos, elementos necessários para análise do caso, como “as dimensões da necessidade” e a “quantidade de recursos disponível como um todo[62].”

Ademais, o precitado autor defende que, nas demandas coletivas, será possível a realização da macrojustiça, com prévia análise de “alocação de recursos ou a definição de prioridades em caráter geral”[63]. Pode ser examinado, pelo Judiciário, “o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis”[64] de uma decisão, o que não se alcançaria em uma ação individual.

Outrossim, o referido autor preleciona que, nas ações coletivas, com efeitos erga omnes, poderão ser garantidas “a igualdade e universalidade no atendimento da população”. Dessa maneira, “a atuação do Judiciário não tende a provocar o desperdício de recursos públicos, nem a desorganizar a atuação administrativa, mas a permitir o planejamento da atuação estatal[65]”.


CONCLUSÕES:

Os direitos sociais são direitos fundamentais, com fulcro no art. 6º da Constituição da República, impondo-se a incidência do art. 5º, parágrafo 1º da CRFB, que dispõe sobre a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais.

Ademais, considera-se que os direitos sociais são direitos subjetivos prima facie, abarcados por princípios jurídicos. Nesse sentido, faz-se necessária uma ponderação de interesses, no caso concreto, com base no princípio da razoabilidade-proporcionalidade, para seu reconhecimento definitivo.

Em regra, defende-se que os direitos sociais seriam direitos prestacionais, exigindo uma prestação material do Estado.

Contudo, tanto os direitos prestacionais ou positivos como os direitos defensivos ou negativos acarretam custos, havendo a necessidade de previsão orçamentária para as receitas e despesas correspondentes.

Os principais personagens na implementação das políticas públicas são os Poderes Legislativo e Executivo, legitimados pelo voto popular. Ademais, deve ser incentivada, no Estado Democrático de Direito, a saudável participação da sociedade civil na esfera pública.

Todavia, admite-se o controle judicial da efetivação dos direitos sociais nas hipóteses de omissão, ação insuficiente ou inadequada do Executivo e Legislativo, de acordo com a teoria dos freios e contrapesos.

Tratando-se os direitos sociais como direitos subjetivos prima facie, faz-se mister a aplicação da técnica de ponderação no caso concreto, considerando-se, de um lado, os princípios constitucionais formais restritivos, quais sejam, os princípios democrático e da separação de poderes, e de outro, os princípios materiais correspondentes aos direitos fundamentais sociais.

A legitimação do Judiciário se fundamenta na tutela das normas constitucionais relativas aos direitos fundamentais, na motivação das decisões judiciais, bem assim na existência de uma crise de credibilidade, junto ao povo, das instituições de representação popular.

Outrossim, a liberdade e a cidadania, num contexto democrático, somente podem ser efetivamente exercidas se garantidos os direitos sociais, em especial, as condições mínimas para vida com dignidade.

No entanto, reconhece-se que os juízes não possuem, em regra, conhecimento específico necessário para tomar decisões complexas, em especial, de alocação de recursos públicos.

Isso porque os Poderes Executivo e Legislativo estão, em tese, mais bem amparados e aparelhados, possuindo servidores técnicos, especializados, para consultoria e assessoria para formalização de determinadas escolhas, que podem abarcar aspectos políticos e econômicos.

Sendo assim, defende-se a autocontenção judicial na proteção dos direitos sociais, com limitação do ativismo judicial exagerado.

Importante questão a ser analisada no âmbito da efetivação dos direitos sociais é a escassez de recursos públicos.

A cláusula da reserva do possível apresenta um aspecto fático, correspondente à limitação quanto à efetiva existência de recursos públicos para custeio dos direitos, e um aspecto jurídico, quanto à necessidade de previsão orçamentária para o Estado efetuar despesas.

O princípio da legalidade da despesa impõe a previsão orçamentária para a realização de despesas, cabendo ao Legislativo, prioritariamente, dispor quanto à existência de receitas correspondentes. Entretanto, a liberdade e discricionariedade do legislador são limitadas pelas normas constitucionais.

Destaca-se, ainda, que, na hipótese de utilização da reserva do possível, pela Fazenda Pública, como matéria de defesa, em processo judicial, o ônus probatório quanto à inexistência de recursos públicos deve recair sobre o ente público, porquanto somente este tem a possibilidade fática de provar o alegado.

O mínimo existencial, conceituado como as condições elementares de existência humana digna, reforça a necessidade da efetivação dos direitos sociais, na medida em que consiste em um fim em si mesmo (argumento não-instrumental), bem como apresenta um fundamento instrumental, equivalente ao acesso aos valores civilizatórios, proteção da liberdade material e da democracia, com participação efetiva dos cidadãos no processo e debate políticos.

O princípio da vedação do retrocesso envolve considerações a respeito dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança. Dessa forma, os atos do Poder Público deveriam se sujeitar a patamares mínimos de continuidade da ordem jurídica, bem como deveriam preencher requisitos de confiabilidade, clareza, racionalidade e transparência para garantir a segurança jurídica do cidadão, com manutenção de suas próprias posições jurídicas.

A cláusula da reserva do possível fática deve ser interpretada como a possibilidade razoável de universalização de determinado direito social, verificados os recursos efetivamente existentes.

Face à escassez de recursos públicos e considerado o princípio da igualdade, defende-se que o Estado não deveria conceder determinada prestação material a um indivíduo se não tiver condições de estender o mesmo benefício a todos em situações fáticas idênticas.

Impõe-se a observância da possibilidade de universalização de um direito social, bem como a razoabilidade e essencialidade da concessão do benefício.

Sem embargo, diversos problemas podem surgir, em uma demanda individual, dirigida a uma questão bilateral, no controle judicial das políticas públicas.

Isso porque, sob o exame econômico do direito, o juiz pode ficar restrito ao caso concreto apresentado e não ter acesso à visão do conjunto. Desse modo, o Judiciário pode conceder um tratamento extremamente custoso a um indivíduo, retirando a disponibilidade daqueles recursos públicos para saneamento básico, por exemplo, ou políticas de prevenção de doenças relativamente a milhares de pessoas.

Os problemas descritos acima podem ser reduzidos com a adoção, pelos juízes, de peritos especializados, inclusive no que diz respeito aos efeitos econômicos da decisão, bem assim com a maior participação de terceiros nas demandas judiciais (amici curiae) e realização de audiências públicas.

Contudo, as questões referidas poderiam ser solucionadas com a escolha preferencial de ações coletivas em detrimento de ações individuais para efetivação dos direitos fundamentais sociais.

As demandas coletivas permitem ao julgador uma análise do contexto geral, na medida em que os legitimados ativos têm melhores condições de apresentar, nos autos, os benefícios necessários e requeridos pela população, bem como a totalidade dos recursos públicos disponíveis.

Desse modo, o juiz pode examinar, com maior precisão, a possibilidade de universalização do direito social pretendido, o impacto de sua decisão nas finanças públicas, evitando-se o risco de efeitos sistêmicos e indesejáveis. Nessa linha, promove-se a macrojustiça em lugar da microjustiça.

Outrossim, as ações coletivas admitem um tratamento mais igualitário da população, haja vista que são incluídos os mais pobres e miseráveis, diversamente do que sói ocorrer nas demandas individuais, restritas, em regra, à classe média, que tem maior conhecimento de seus direitos e, portanto, acessibilidade efetiva à justiça.

As demandas coletivas, notáveis por seus efeitos erga omnes, tendem, pois, a garantir, de forma mais abrangente, a observância do princípio isonômico e universalização da efetivação dos direitos sociais, porquanto se permite ao juiz um exame, mais próximo da realidade, no que concerne à disponibilidade e alocação dos recursos públicos.

Sobre a autora
Maria Laura Timponi Nahid

Procuradora Federal do Núcleo de Ações Prioritárias – NAP da Procuradoria Regional Federal da 2ª Região; Especialista em Direito Constitucional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NAHID, Maria Laura Timponi. Direitos fundamentais sociais: o papel do Judiciário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4683, 27 abr. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34653. Acesso em: 22 nov. 2024.

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