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Penhora do Bem de Família do Fiador Locatício: (In)Constitucionalidade

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Agenda 31/01/2015 às 08:59

CAPÍTULO 3- A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA PENHORA DO ÚNICO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR EM CONTRATO LOCATÍCIO

3.1 A (In)Constitucionalidade do inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009/90

A Constitucionalidade Condicionada do inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009/90

O controle da constitucionalidade é uma questão de fundo relevante. De acordo com Horta (2002), o controle da constitucionalidade das leis é o corolário lógico da supremacia constitucional, o requisito para que a superioridade constitucional não se transforme em preceito moralmente platônico e a Constituição em simples programa político. Portanto, a finalidade do controle consiste, precisamente, em tornar a Constituição a medida suprema da regularidade jurídica. Nessa senda, mister a análise crítica do artigo 3º, inciso VII da Lei 8.009/90, por meio da doutrina do controle de constitucionalidade. Todavia, em virtude de que tal estudo demandaria significativo tempo, será apenas abordado incidentalmente, em considerando a delimitação contextual do trabalho em tela.

Desta feita, imprescindível narrar a lição de Luiz Roberto Barroso, citado por Carli (2009):

O ordenamento jurídico é um sistema. Um sistema pressupõem ordem e unidade, devendo suas partes conviver de maneira harmoniosa. A quebra dessa harmonia deverá deflagrar mecanismos de correção destinados a restabelecê-la. O controle de constitucionalidade é um desses mecanismos, provavelmente o mais importante, consistindo na compatibilidade entre uma lei ou qualquer outro ato normativo infraconstitucional e a Constituição (pg. 114).

Na mesma trilha do constitucionalista brasileiro, parece caminhar o italiano Riccardo Guastani, que afirma a importância do processo de constitucionalização do direito, o qual se projeta a partir de certos pressupostos, quais sejam: a) a garantia jurisdicional da Constituição, consubstanciada na ideia de controle das normas infraconstitucionais das quais se exige conformidade com as regras e os princípios constitucionais; b) a força vinculante da Constituição, no sentido de que cada norma constitucional seja uma norma jurídica genuína, vinculante e suscetível de produzir efeitos jurídicos; c) a sobreinterpretação da Constituição consistente em um movimento interpretativo que tende a desconsiderar que o direito constitucional seja lacunoso; d) a aplicação direta das normas constitucionais, as quais podem produzir efeitos imediatos e diretos, bem como ser aplicadas pelo magistrado diante do caso concreto; e) a interpretação adequada das leis que devem ser interpretadas conforme a Constituição (CARLI, 2009).

Nessa toada, observados tais pressupostos, cumpre dizer que é preciso ponderar que, em regra, as normas têm sentido multívoco – e muitas vezes alguns desses sentidos não se coadunam com a Constituição Federal – exigindo do intérprete que escolha aquele que se harmonize com o texto constitucional. Na realidade, o que se busca com a técnica de interpretação conforme a Constituição, é salvar um dos sentidos da norma, garantindo, desta forma, a sua validade e, por conseguinte, a sua aplicabilidade no mundo da vida. Nessa linha de intelecção, Luiz Roberto Barroso, citado por Carli (2009), professa que o método interpretativo clássico – calcado no ideário de que o Direito está delimitado abstratamente na norma e que ao magistrado cabe o exercício da subsunção do fato ao dispositivo legal – está ultrapassado pela concepção contemporânea do direito constitucional, o qual redesenha o papel da norma e do julgador. Nessa ordem de ideias, reconhecese a importância do estudo sobre o controle de constitucionalidade das normas de um sistema jurídico, sobretudo, em um Estado Constitucional Democrático de Direito como se afigura o nosso. Todavia, não há a pretensão de se estender para além das breves linhas aqui traçadas, considerando o objetivo central deste ponto, que se limita à análise da (in)constitucionalidade da referida exceção.

Assim, uma vez realizada superficial abordagem quanto ao controle de constitucionalidade, convém aduzir que a exceção capitulada no inciso VII apresenta um confronto entre o direito de crédito e do direito humano fundamental à moradia, constitucionalmente previsto, sendo esse um valor hierarquicamente superior àquele. Portanto, com o artigo 82 da Lei 8.245/91, acrescentando tal inciso ao artigo 3º da Lei 8.009/90, permitindo a penhora do único bem de família do fiador em decorrência de obrigação fidejussória concedida em contrato de locação, configura-se desrespeito aos princípios constitucionais. Despropositada pois é a permissão legal para a execução do bem de família para o pagamento de obrigação assumida, no mais das vezes, por amizade. A bem da verdade, procurar resolver um problema prático desconsiderando a sistemática do ordenamento e os valores existentes que estão em posição hierarquicamente superior, é atuar emergencialmente e o legislador de emergência, como se sabe, é um mau legislador, ocasionando graves embaraços em sede de interpretação e aplicação de normas jurídicas (AINA, 2002).

Nesse diapasão, relevante mencionar, a Lei do bem de família, ao estabelecer mais de um forma de proteção ao bem que serve de abrigo a família – além daquela prevista no Código Civil – trouxe em si matizes axiológicas de conteúdo constitucional, atendendo um dos princípios fundamentais da Carta Magna, ou seja, o de promover, sobretudo, a dignidade da pessoa humana. Por conseguinte, há de se considerar que a norma inserta no inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009/90, a qual afasta o véu da impenhorabilidade do bem de família do fiador, viola o Estatuto Supremo sob vários aspectos como por exemplo, no que atine ao princípio supra mencionado. Além disso, contraria o princípio da igualdade, ao dar tratamento desigual ao locatário em detrimento do despendido ao fiador, violando, por consequência, outros valores fundamentais, como a vida, o desenvolvimento humano e o mínimo existencial. Diante disto, a proteção ao bem de família ultrapassa a fronteira patrimonial, porquanto visar à tutela da família e, sobretudo, da dignidade de seus membros. Por corolário, não pode se admitir que o próprio ente público, por meio de sua função legiferante, crie óbices ao pleno desenvolvimento familiar (CARLI, 2009).

Assim, conforme dizeres de Genacéia da Silva Alberton, citada por Carli (2009), fica efetivamente difícil admitir que não se perceba, através da mera leitura do texto legal, que há uma flagrante injustiça, bem como a evidente inobservância aos princípios constitucionais. Se há desigualdade de tratamento entre o afiançado e o fiador, não aplicar o artigo 82 da Lei 8.245/91  não é negar-lhe vigência, mas afirmar sua invalidade por trazer como consequência a inobservância de um dos principais princípios constitucionais, qual seja, o princípio da isonomia.

Ademais, frise-se que a busca pela efetividade do processo não pode se sobrepor a princípios de imprescindível observância, a ponto de desvirtuar a finalidade precípua do processo e ensejar a prática de atos arbitrários, valendo lembrar neste ponto o artigo 187, do Código Civil Brasileiro: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”

E nessa esteira de pensamento, diga-se que a necessária observância ao princípio materializado no artigo 620, do Código de Processo Civil, o qual resguarda a “execução equilibrada” preceitua: “Quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor”. Assim, conforme se abstrai do citado dispositivo, o Poder Judiciário, ao proteger o interesse do credor no sentido de lhe proporcionar a satisfação de um crédito, não deve, violar direitos do devedor em ofensa a normas e princípios éticos e jurídicos de imprescindível observância na vida em sociedade.

E muito embora o argumento econômico, adotado por parte da doutrina e da jurisprudência, admitam a possibilidade da penhora do bem de família do fiador em virtude de incentivar o mercado imobiliário e, por conseguinte, o acesso à habitação, questiona-se sua superficialidade do discurso, haja vista que, a bem da verdade, está tão somente a assegurar o direito de crédito do locador, ora em detrimento da dignidade da pessoa humana (do fiador e de sua família) e do direito fundamental à moradia. Diante disto, a ideia de sobrelevar o crédito contratual à dignidade humana, corporifica gritante irrazoabilidade, digna do aforismo summum jus, summa injuria, ou em vernáculo: excesso de justiça, excesso de injustiça. A ideia de que a única solução para o problema do mercado imobiliário, seria o sacrifício da moradia do fiador importa, no mínimo, em falta de criatividade e desenvolvimento de novas soluções para velhas questões (PEREZ, 2003).

Nesse viés, embora a fiança facilite a locação e, portanto, o acesso à habitação, não pode ela, de forma alguma, prejudicar diretamente aquele que já conseguiu alcançar o sonho da casa própria e que, da noite para o dia, se vê desalojado em decorrência de que o legislador decidiu fazer política habitacional questionável, utilizando como instrumento seu ato de liberalidade (CARLI, 2009).

Ademais, no que toca ao princípio da proibição do retrocesso, também é ele violado pela norma inserta na dita exceção, haja vista que tem por escopo inibir a atuação do poder público no sentido de evitar violação aos direitos humanos fundamentais e às demais normas de cunho constitucional. Cabe ainda salientar que a referida exceção normativa a qual levanta o véu da imunidade executória do bem de família do fiador, desrespeita outros valores fundamentais por diversas vezes repisados neste trabalho. Dessa forma, inaceitável é a regra que permite a penhora do único bem do fiador em contrato de locação, haja vista que a preservação do único bem do garantidor é decorrência natural da tutela do mínimo existencial. Não pode o garante, dono de único imóvel, ser punido com a perda deste patrimônio. Que até lhe sejam excutidos seus bens, desde que o sejam também os do locatário, e com vigor, pois perder o único teto, por conta de um contrato gratuito e de favor, é arrematada perversidade jurídica. Conforme leciona Perez (2003), constristar bem único de família é retroceder todos os pensamentos modernos do Direito, tornando em vão todo o sangue derramado por nossos antepassados na luta em construir direitos e garantias fundamentais.

Em consonância com tudo que foi dito, entende-se que a regra insculpida no inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009/90, introduzido pela Lei 8.245/91, viola frontalmente o direito humano fundamental à moradia, e, reitera-se, ao princípio da dignidade da pessoa humana e da isonomia. Contudo, a referida regra inserida na mencionada exceção até seria constitucional, caso fosse interpretada da seguinte forma: a) na primeira hipótese, caso o fiador for proprietário de um único bem imóvel este não poderá ser objeto de penhora, pois assim como o bem do locatário, o seu imóvel, também estaria agasalhado com o manto da imunidade; b) entretanto, em sendo o fiador proprietário de mais de um imóvel poderia incidir sobre o imóvel excedente, a regra prevista no inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009/90, não podendo se falar em inconstitucionalidade da referida norma em relação ao bem em decorrência deste se encontrar fora da esfera da proteção da lei da Impenhorabilidade do bem de família. Em síntese, a referida exceção teria validade constitucional condicionada, caso incidisse somente sobre o bem excedente e jamais, sobre aquele que serve de abrigo para a família (CARLI, 2009).

Assim como sustentado alhures, os direitos fundamentais encontram-se em posição especialmente privilegiada no ordenamento jurídico, funcionando como valores essenciais da pessoa humana, invioláveis, e que somente devem ceder diante de outros direitos de igual categoria. Ademais, constituem-se em linhas diretivas para todos os poderes, bem como para todos os cidadãos, de maneira que qualquer ato que implique no desvio do caminho traçado pela Lei fundamental, deve ser rechaçado. Portanto, a proteção jusfundamental de determinado bem jurídico é tema de maior seriedade e a possibilidade de invadir-se a esfera desse bem jurídico somente deverá ceder em prol de um direito de igual relevância. No caso em apreço, não se vislumbra que o sacrifício do bem de família do fiador, tenha sido eleito em prol do direito de moradia dos locatários, mas sim em favor da proteção do direito de crédito do locador (AINA, 2002).

Nessa linha de raciocínio, cumpre dizer que a questão em debate, no tocante à exceção insculpida no inciso VII, do artigo 3º da Lei 8.009/90, não ficou alheia para o mundo jurídico; muito pelo contrário – provocou acirradas discussões a cerca de sua (in)constitucionalidade. Deste forma, Tribunais de instâncias inferiores e de alçada superior vieram a divergir de entendimento, confrontando posicionamentos acerca do tema. A seguir, ousa-se tentar dirimir a questão, na tentativa de trilhar uma solução efetiva e justa, através do posicionamento trazido por seus próprios fundamentos e que molda-se ser o mais correto, visto alicerçar-se à luz do direito constitucional ao prestigiar princípios constitucionais – norte de ordenamento jurídico do pais.

Entendimentos do STF e Decisões Divergentes

Sem dúvida, é a família a célula master da sociedade e a qual alicerça o Estado. Não por menos, em razão de sua importância, vários mecanismos de defesa a protegem. Um deles foi, efetivamente, aquele que diz respeito à impenhorabilidade do bem de família, resguardando a casa de morar.

A importância social do instituto do bem de família, desde seu surgimento, na República do Texas, com a Lei do Homestead, em 1839, de fato, ganhou relevo ao proteger a família contra a isenção de penhora sobre a casa de moradia. No Brasil, foi adotado pelo Código Civil de 1916, sob a modalidade apenas voluntária, não tendo havido aceitação, contudo, pela população mormente em razão das formalidades para a sua constituição. No novo Código Civil, igualmente foi previsto sob a modalidade voluntária, vindo a sofrer apenas pequenas alterações em relação ao Código de Bevilácqua (HORA NETO, 2007).

Todavia, com a edição da Lei 8.009/90, o instituto difundiu-se largamente, uma vez que o bem de família passou a ser legal, visto dispensar a intervenção do proprietário do imóvel, posto que ditado pelo Estado. Assim, o Estado passou a excluir da penhora o imóvel residencial de qualquer brasileiro, rico ou pobre, em face de execução de qualquer espécie, salvo algumas poucas exceções. Entretanto, o mercado de locação retraiu-se com o surgimento do novel diploma, razão pela qual o artigo 82 da Lei 8.245/91, veio a alterar o artigo 3º da Lei 8.009/90, de modo a acrescentar mais uma exceção à regra geral da impenhorabilidade dentre as seis já existentes, qual seja, o inciso VII (o qual tornou penhorável o bem de família do fiador locatício, que era, até então, impenhorável). Na verdade, a inclusão de mais uma exceção à regra da impenhorabilidade, deu-se em razão de um lobby, como já referido no Capítulo I deste trabalho.

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Em suma, pode-se afirmar que até a vigência da Lei 8.009/90, o mercado de locação de imóveis fluía normalmente, seguindo seu curso normal: servia como fiador até mesmo aquele que tivesse apenas um único imóvel, ainda que residisse com sua família, haja vista que este era penhorável na hipótese de inadimplemento por parte do locatário. No entanto, com a edição da mencionada lei, que, em última análise, previa ser impenhorável, também, o bem de família do fiador locatício, o mercado imobiliário retraiu-se largamente, passando a aceitar como fiador, somente aquele que fosse proprietário de mais de um bem imóvel, uma vez que o segundo serviria, em tese, para satisfação do crédito por ocasião do inadimplemento do afiançado (HORA NETO, 2007).

Ocorre que, como notório, o mercado imobiliário incomodou-se com tal situação, na medida que o novel diploma restringia e limitava as locações em geral em decorrência da grande dificuldade em encontrar algum fiador proprietário de mais de um imóvel. Em virtude disto, relata Hora Neto (2007), o legislador foi pressionado a encontrar alguma solução que remediasse o panorama que se visualizava na época. Por conseguinte, tratou por eliminar o embaraço com o advento da Lei do Inquilinato – Lei 8.245/91 – o qual, como cediço, previu a referida exceção através de seu artigo 82, de forma a ampliar o rol de exceções à impenhorabilidade do imóvel residencial do casal ou da entidade familiar. Desta feita, o único imóvel residencial do fiador locatício passou a ser objeto de penhora.

Ora, examinando a fundo a questão, observou-se que de todas as exceções do artigo 3º da Lei 8.009/90, esta, sem dúvida, foi a redigida de forma mais inadequada, visto colocar o fiador em situação de inferioridade frente ao próprio afiançado. Tal situação permitiu, inclusive, a impenhorabilidade dos móveis que guarnecem a residência alugada do locatário e que sejam de sua propriedade . Em contrapartida, mesma sorte não teve o fiador ao ver despido do manto da impenhorabilidade o imóvel onde reside com sua família (CZAJKOWSKI, 2001).

Assim, o que se verifica, efetivamente, é que o preceito legal em exame, colide frontalmente com a garantia constitucional que eleva o asilo inviolável do teto doméstico , haja vista que a casa é bem com função suprassocial, revestindo o lar de posição totalmente humana (PEREZ, 2003).

Ademais, cumpre referir que embora este inciso represente uma segurança importante ao locador, mantendo a utilidade e a eficácia da garantia representada pela fiança, consoante magistério de Czajkowski (2001), apresenta aspecto negativo por proteger excessivamente o locatário inadimplente em detrimento do fiador, normalmente de boa-fé, o qual poderá ter grandes transtornos e prejuízos. Todavia, para contornar esta iniquidade, o Segundo Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, construiu engenhosa solução em 1996, através da sub-rogação do fiador nos direitos primitivos do credor. Por corolário, se o fiador não pode alegar a impenhorabilidade de seu bem de família para pagar o locador, ao voltar-se, ele, contra o locatárioafiançado a fim de reaver o que despendeu, da mesma forma este também não poderia alegar a impenhorabilidade de seu imóvel, ainda que consubstanciado em único bem de família. A orientação é, politicamente, a mais correta em razão de corrigir uma distorção legal e por tal motivo merece aplausos por ser evidentemente justa. Infelizmente, não é o que acontece.

O que ocorre, efetivamente, é que a partir da alteração já referida, caso o afiançado (devedor principal, inquilino, afiançado) não pagasse os aluguéis e, em caso de renúncia ao benefício de ordem, como ocorre de costume, o fiador teria seu imóvel penhorado por força da exceção capitulado no inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009/90. Todavia, uma vez satisfeito o crédito do credor-locador, o fiador poderia lançar mão de uma ação regressiva em face do afiançado para que este o ressarcisse do prejuízo causado em virtude da penhora do bem. No entanto, esta ação restaria infrutífera, uma vez que, consoante Czajkowski (2001), na hipótese de ter o afiançado um único bem, estaria este imóvel sob a proteção da impenhorabilidade, podendo, para tanto, alegar tal exceção, ainda mais em se considerando que o débito existente não se encaixaria em nenhuma das exceções previstas na referida lei. Em suma, enquanto é impenhorável o imóvel residencial do afiançado (devedor principal), haja vista que protegido pela regra da impenhorabilidade legal editada pelo artigo 3º, caput da Lei 8.009/90, o imóvel residencial do fiador é penhorável por força da exceção prevista no mesmo diploma legal (HORA NETO, 2007).

Na verdade, a razão para tal alteração e acréscimo foi proteger, tão somente, a locação e, por consequência, o mercado imobiliário, o qual advogou o argumento que sem a garantia de penhorabilidade do imóvel do fiador para incentivar a locação, seria impossível trabalhar no ramo locatício, diminuindo, por corolário, o favorecimento a moradia. Em virtude deste motivo, teria ocorrido a exclusão quanto à impenhorabilidade do bem de família do fiador locatício. Todavia, essa alegação não tem respaldo e tampouco se sustenta, pois como bem define o corriqueiro adágio popular “não se despe um santo para vestir o outro”, ou, em outras palavras, facilita-se a moradia do locatário e subtrai-se à do fiador.

Não obstante, adveio a Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, que ampliou o rol de direitos sociais, vindo a incluir entre eles a moradia. Por conseguinte, a partir da sua vigência inaugurou-se uma questão vexatória sobre se o direito à moradia, introduzido pela referida emenda constitucional, teria ou não, revogado as exceções à cláusula geral da impenhorabilidade capitulados no artigo 3º, incisos I a VII da Lei 8.009/90. Em essência, a questão central dizia respeito em saber se a emenda (lex generalis superior) tinha ou não derrogado a lei ordinária (lex specialis inferior) Consoante Hora Neto (2007), à vista de tamanho impasse, duas correntes doutrinárias, bem distintas, lançaram suas teses jurídicas, valendo-se ambas da interpretação, conforme a Constituição Federal de 1988. Basicamente, o vexatio quaestio cinge-se em dirimir se o direito à moradia, introduzido pela Emenda 26/2000, é ou não, uma norma de eficácia plena ou de eficácia limitada (programática). Assim, sendo esta uma questão de fundo relevante, na hipótese de considerar-se uma norma de eficácia plena, logicamente e por imperativo hierárquico, a exceção capitulada no inciso VII, do artigo 3º da Lei 8.009/90, estaria de plano revogada, dada a sua não recepção pelo Estatuto Supremo. De outra banda, na hipótese de considerar-se norma de eficácia limitada, a referida exceção permaneceria em plena vigência e, portanto, plenamente recepcionada pela Constituição.

Nesse contexto, importa trazer à lume a classificação à cerca da eficácia das normas constitucionais de autoria do eminente constitucionalista José Afonso da Silva (2006) e já mencionadas no Capítulo I da presente monografia. De acordo com seu magistério, todas as normas têm aplicabilidade imediata, variando apenas na intensidade de sua eficácia, dividindo-se a classificação destas em três: a) normas de eficácia plena e aplicabilidade direta, imediata e integral – aquelas que têm aplicabilidade imediata e, portanto, independem de legislação posterior para a sua plena execução, visto que, desde a entrada em vigor da Constituição já produzem seus efeitos ou apresentam a possibilidade de produzi-los; b) normas de eficácia contida e aplicabilidade direta e imediata, mas possivelmente não integral – àquelas que, igualmente, têm aplicabilidade imediata, mas com alcance reduzido em razão da atividade do legislador infraconstitucional; c) normas de eficácia limitada, isto é, as declaratórias de princípios institutivos ou organizativos e declaratórias de princípios programáticos – àquelas que dependem de regulamentação futura na qual o legislador infraconstitucional vai dar eficácia à vontade do constituinte a fim de que produzam efeitos. Foi a partir desse enfoque, à luz da hermenêutica constitucional que tais correntes passaram a defender a tese a qual sustentam e que passaremos a ver a seguir.

Iniciemos pela primeira, a qual advoga a favor da penhora do bem de família do fiador com a respectiva recepção da Lei 8.009/90 pela Emenda Constitucional nº 26/2000. Entendem os partidários desta tese, que, a exceção capitulada no inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009/90, tem plena eficácia, não obstante o advento do direito à moradia, introduzido com a promulgação da referida emenda. Aduzem, inicialmente, que sendo o direito à moradia um direito social por excelência, trata-se de uma norma constitucional de eficácia limitada, de modo a estabelecer apenas um horizonte de atuação para o Estado, carecendo, para tanto, de regulamentação, sem a qual não vem a ter eficácia plena. Contudo, mister aduzir que, ainda que em seu aspecto estrutural, a norma que garante o direito à moradia fosse tida como uma norma programática,  não haveria que se falar em não vigência dessa norma, pois, ainda sim geraria os seguintes efeitos: a) revogação de todos os atos normativos anteriores a vigência da Constituição Federal, tendentes a lesionar o direito à moradia; b) vinculação do legislador no sentido de legislar de forma a concretizar o acesso à casa própria, visando, por corolário, resguardar o direito de quem já possui moradia; c) proibição ao poder legislativo de expedir normas que contrariem a determinação constitucional, de maneira que, caso houvesse, seriam materialmente inconstitucional; d) proibição ao retrocesso no sentido de proibir a revogação de normas jurídicas já existentes visando esta proteção jusfundamental (AINA, 2002).

Na sequência, defendem, ainda, que não há violação ao Princípio da Isonomia em razão do contrato de locação e de fiança serem distintos, visto que, enquanto o locatário responde pelas obrigações assumidas no contrato de locação, o fiador responderia tão somente, pelo acessório, qual seja, o contrato de fiança (HORA NETO, 2007).

Além disso, narra Hora Neto (2007), a referida exceção teria por alvo fomentar o mercado de locação, facilitando o direito à moradia, sobretudo daquelas pessoas com menor poder aquisitivo, o que não ocorreria na hipótese de impenhorabilidade do bem do fiador em decorrência de maiores dificuldades de conseguir um que apresentasse dois imóveis. Ao mais, advogam que caso fosse inconstitucional tal exceção, haveria uma redução na oferta de imóveis para locação, podendo, inclusive, fomentar a má-fé dos inquilinos, os quais, propositalmente, deixariam de pagar aluguéis com a certeza de que os bens de seus garantidores estariam a salvo de constrição judicial, posto que impenhoráveis. Outrossim, resultariam, sem dúvida, inconstitucionais às demais exceções previstas no incisos do artigo 3º.

Em contrapartida, a segunda corrente de pensamento sustenta a tese da impenhorabilidade do bem de família do fiador locatício em razão, exatamente, da não recepção pela Emenda 26/2000 da exceção prevista no inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009/90. Os defensores da tese da impenhorabilidade entendem que a exceção contida no inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009/90 não tem nenhuma eficácia, em face da inclusão do direito à moradia como um direito social, introduzido pela mencionada emenda, sendo esta, uma norma constitucional de eficácia plena e de aplicação imediata. Argumentam que a Emenda Constitucional nº 26/2000 não recepcionou a referida exceção, uma vez que o direito à moradia deriva de uma norma constitucional auto aplicável, de eficácia plena, imediata e direta, e a qual diz respeito à dignidade da pessoa humana, e que, em sendo uma norma maior, deve ser aplicada em detrimento de uma norma menor (HORA NETO, 2007).

Consoante Hora Neto (2007), sustentam que há grave violação ao princípio da isonomia  na medida em que a exceção prevista, introduzida pela Lei 8.245/91, feriu de morte o princípio isonômico, tratando desigualmente situações iguais, e, por conseguinte, olvidando o brocado “ubi aedem ratio, ibi aedem legis dispositio”, ou em vernáculo: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de direito. Nesse sentido, defende-se que em sendo o direito à moradia um direito humano fundamental de segunda dimensão, portanto, um direito social, deve ser amparado e protegido pela regra geral da impenhorabilidade, visto que diz respeito à moradia do homem e da sua família. Assim, em sendo um direito fundamental de todos, seja locatário ou fiador, deve a garantia da impenhorabilidade ser estendida a ambos e não apenas sobre o bem de família do locatário, ficando ao desamparo o do fiador que torna-se passível de penhora.

Além disso, a violação ao princípio isonômico não se resume somente a esta questão, mas, igualmente, no que diz respeito ao contrato de fiança. Ora, sendo este um contrato acessório e subsidiário – por depender da existência de um contrato principal, (neste caso, o de locação) e ter sua exceção subordinada ao não cumprimento deste, pelo devedor principal – não é justo e lícito que o fiador assuma obrigações mais onerosas do que o afiançado (o devedor principal), pois ainda que este renuncie ao benefício de ordem, estará pagando uma dívida que não lhe pertence e que de fato interessa exclusivamente ao devedor-principal, isto é, ao locatário (HORA NETO, 2007).

Sustentam ainda os defensores desta corrente que a exceção ora capitulada, destoa das demais exceções ali previstas, haja vista que estas tutelam valores a serem preservados que estariam em um patamar superior ou igual à proteção do bem de família, como ocorre com a proteção ao crédito de natureza alimentar, por exemplo. Diante disto, resta mais do que patente que a inserção da obrigação decorrente de fiança, deu-se em razão aos reclamos do mercado de locação (HORA NETO, 2007).

Ao mais, tal exceção fere também o Princípio da Boa-fé objetiva , haja vista que os contratos de locação, no mundo hodierno, são constituídos não sob a forma paritária, mas majoritariamente sob a forma adesiva, isto é, efetivados sob a forma de contrato de adesão, o que importa dizer, como sabido, que as cláusulas já se acham impressas, ditadas, certamente, pelo contratante economicamente mais forte (no caso, o locador), mediante instrumentos inscritos que já se acham previamente redigidos e que são colocados à disposição do locatário e do fiador apenas para um único gesto: aceitar ou recusar em bloco. Por conseguinte, em tais contratos já há cláusulas impressas, segundo as quais o fiador renuncia ao benefício de ordem, tornando-se assim, devedor solidário sem que sequer venha a ser advertido sobre as consequências da contratação, ou, mais precisamente, sobre a possibilidade de ver ser executado seu único bem de família para pagar uma dívida que não é sua. Neste contexto, imprescindível referir que o contrato de locação, onde naturalmente habita a fiança locatícia, além de adesivo é, também, um contrato de consumo  e, como tal, deve ser regido pelo Código de Defesa do Consumidor em consonância com o Código Civil, haja vista serem ambas as leis corpos normativos em que vulta o interesse social, coletivo, em detrimento do meramente individual (HORA NETO, 2007).

Nessa linha, ainda que minoritária, essa posição dá a entender, em suma, ser tal previsão inconstitucional por violar o princípio da isonomia e a proteção à dignidade da pessoa humana. Segundo Tartuce (2005), a lesão à isonomia reside no fato de que em sendo a fiança um contrato acessório, como mencionado noutra parte, não pode trazer mais obrigações que o contrato principal, qual seja, o de locação. Em reforço, haveria desrespeito à proteção constitucional da moradia que seria, a bem da verdade, a exteriorização do princípio da dignidade da pessoa humana. Nessa senda, à luz do Direito Civil Constitucional, nada forçoso concluir que este dispositivo de lei viola o princípio da isonomia ao tratar de forma desigual locatário e fiador, razão pela qual não há como aceitar tal previsão.

Nesse contexto, refere Hora Neto (2007), evidentemente, a questão resultou deveras polêmica, quando, então, o Supremo Tribunal Federal, em sede de Recurso Extraordinário nº 407.688, de relatoria do Ministro Cezar Peluso, julgado em de 08 de fevereiro de 2006, conheceu e negou provimento ao recurso, nos termos do voto do relator, mantendo a decisão do extinto Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, o qual determinou a penhora do bem de família do fiador, vencidos os Senhores Ministros Eros Grau, Ayres Brito e Celso de Mello, que lhe davam provimento. Entendeu por maioria, não haver incompatibilidade entre a Lei a referida Emenda, concluindo pela recepção da Lei infraconstitucional e pela penhorabilidade do bem de família do fiador de locação.

Em síntese, o Supremo decidiu que o único imóvel, este consubstanciado em bem de família, de uma pessoa que assume a condição de fiadora em contrato de locação, pode ser penhorado em caso de inadimplência do inquilino. No caso, a tese do recorrente (o fiador) era de que à exceção do inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009/90 ofendia o artigo 6º da Constituição Federal, alterado pela Emenda 26/2000, a qual incluía a moradia no rol dos direitos sociais constitucionalmente amparados. Durante o julgamento pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, os ministros debateram duas questões: se devia prevalecer a liberdade individual e constitucional de alguém ser ou não fiador e arcar com essa respectiva responsabilidade, ou, se o direito social à moradia, previsto na Carta Magna deveria ter prevalência. Em outras palavras, isto implicaria dizer se a referida exceção estaria, ou não, em confronto com o texto constitucional ao permitir a penhora do bem de família do fiador para o pagamento de dívidas decorrentes de inadimplemento contratual.

Assim, o relator da matéria, Ministro Cezar Peluso, entendeu que a Lei 8.009/90 é clara ao tratar como exceção a impenhorabilidade do bem de família do fiador. A seu juízo, o cidadão tem a liberdade de escolher, se deve ou não, avalizar um contrato de aluguel e, nessa situação, o de arcar com os riscos que a condição de fiador implica. Por conseguinte, o Ministro não viu incompatibilidade entre o dispositivo da Lei de Impenhorabilidade do bem de família e a Emenda Constitucional nº 26/2000, a qual trata do direito social à moradia, ao alterar o artigo 6º da Constituição. O entendimento foi acompanhado por outros seis ministros. Contrariamente, o Ministro Eros Grau divergiu do Relator no sentido de afastar a possibilidade de penhora do bem de família de fiador, citando, para tanto, como precedentes, dois recursos extraordinários, quais sejam, RE 352.940 e RE 449.657, relatados pelo então Ministro Carlos Velloso em decisão monocrática e decididos a fim de impedir a penhora do único imóvel do fiador.

Nesses dois recursos entendeu-se que o dispositivo da lei ao excluir o fiador da proteção contra a penhora do imóvel, ofendeu o princípio constitucional da isonomia. Nessa esteira, mister transcrever parte da decisão do Recurso Extraordinário 352.940, in verbis:

(…) Em trabalho doutrinário que escrevi “Dos Direitos Sociais na Constituição do Brasil”, texto básico de palestra que proferi na Universidade de Carlos III, em Madri, Espanha, no Congresso Internacional de Direito do Trabalho, sob o patrocínio da Universidade Carlos III e da ANAMATRA, em 10.3.2003 – registrei que o direito à moradia, estabelecido no art. 6º, C.F., é um direito fundamental de 2ª geração – direito social – que veio a ser reconhecido pela EC 26, de 2000. O bem de família – a moradia do homem e sua família – justifica a existência de sua impenhorabilidade: Lei 8.009/90, art. 1º. Essa impenhorabilidade decorre de constituir a moradia um direito fundamental. Posto isso, vejase a contradição: a Lei 8.245, de 1991, excepcionando o bem de família do fiador, sujeitou o seu imóvel residencial, imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, à penhora. Não há dúvida que ressalva trazida pela Lei 8.245, de 1991, inciso VII do art. 3º feriu de morte o princípio isonômico, tratando desigualmente situações iguais, esquecendose do velho brocardo latino: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio, ou em vernáculo: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito. Isto quer dizer que, tendo em vista o princípio isonômico, o citado dispositivo inciso VII do art. 3º, acrescentado pela Lei 8.245/91, não foi recebido pela EC 26, de 2000. Essa não recepção mais se acentua diante do fato de a EC 26, de 2000, ter estampado, expressamente, no art. 6º, C.F., o direito à moradia como direito fundamental de 2ª geração, direito social. Ora, o bem de família – Lei 8.009/90, art. 1º – encontra justificativa, foi dito linha atrás, no constituir o direito à moradia um direito fundamental que deve ser protegido e por isso mesmo encontra garantia na Constituição. Em síntese, o inciso VII do art. 3º da Lei 8.009, de 1990, introduzido pela Lei 8.245, de 1991, não foi recebido pela CF, art. 6º, redação da EC 26/2000. Do exposto, conheço do recurso e dou-lhe provimento, invertidos os ônus da sucumbência.

O voto divergente do Ministro Eros Grau foi acompanhado pelos Ministros Ayres Britto e Celso de Mello, sob o argumento de que a Constituição ampara a família e a sua moradia, nos termos do artigo 6º da Carta Magna, de maneira que o direto à moradia seria um direito humano fundamental de segunda geração, tornando, por corolário, impenhorável o bem de família. No entanto, ao fim, prevaleceu o entendimento do Relator, por 7 votos a 3, que negou provimento ao Recurso Extraordinário, mantendo a decisão do Tribunal de Alçada de São Paulo, o qual determinou a penhora do bem de família do fiador.

Diante da posição do Supremo, ficam evidentes os votos minoritários e a corrente que defende a não recepção e incompatibilidade entre a Lei 8.009/90 e a Emenda Constitucional 26/2000. Fica a interrogação, isto é, se a decisão da Corte Constitucional não emprestou ênfase exagerada ao princípio da irretratabilidade das convenções, bem como ao princípio romano do pacta sunt servanda – segundo o qual o contrato deve ser fielmente cumprido por fazer lei entre as partes – em detrimento de outros princípios contratais de maior valoração axiológica ou de conteúdo social mais acentuado, como por exemplo, os princípios que informam o Código de Defesa do Consumidor e os modernos princípios contratuais do Código Civil de 2002, além, sobretudo, dos princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade.

Poderia argumentar-se que há um equívoco na decisão do Supremo Tribunal Federal em virtude de fazer prevalecer a tese do positivismo extremado. Ora, incontestavelmente, como bem argumenta Hora Neto (2007), a decisão majoritária não enfrentou outros quadrantes do tema, todos eles iluminados pelo direito civil constitucional, o qual, acha-se amparado em três princípios fundamentais, todos eles de matriz constitucional: o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da solidariedade social e, por fim, o princípio da igualdade – os quais irradiam todo o sistema jurídico, vindo a dar concretude à normatividade constitucional. Nessa linha de intelecção, importa referir que o contrato não pode fugir dessa concepção, pois certo que a interpretação da capitulada exceção mantém relação direta com o princípio da função social dos contratos, o qual preconiza que os contratos devem ser interpretados de acordo com contexto da sociedade e com a fundamentação constitucional através da tríade dignidade-igualdade-solidariedade. Assim, vale dizer que o princípio da função social dos contratos não elimina o princípio da autonomia contratual, mas apenas reduz seu alcance quando presentes interesses individuais relativos à dignidade da pessoa humana. O direito constitucional à moradia acabaria limitando, portanto, a autonomia privada.

Consoante Sampietro (2005), a dignidade da pessoa humana alterou a sistemática da teoria contratual, sendo que esta representa nova roupagem a fim de se adaptar à novel realidade contratual. Portanto, possuindo todo e qualquer contrato cunho social, ao se admitir constitucional a penhora do imóvel do fiador, estaria se privilegiando o individualismo do século XVIII em desfavor do trinômio dignidade-igualdade-solidariedade, vértices do moderno direito civil.

Ao mais, importa referir que o princípio da dignidade da pessoa humana é fonte simultânea de direitos humanos e de direitos de personalidade, de maneira a concluir que o ser humano e a dignidade antecedem o ordenamento jurídico. Nessa linha de pensamento, transcreve-se fragmentos da decisão de acórdão proferido pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, o qual assim considera:

(…) para começar a respeitar a dignidade da pessoa humana tem-se de assegurar concretamente os direitos sociais previstos no art. 6º. da Carta Magna (…).

Não se pode olvidar que, ao declarar a impenhorabilidade do único bem de família o legislador procurou amparar os menos assistidos economicamente, impedindo a extensão da miséria, dando-se proteção à família, considerada a célula-mãe de toda uma sociedade. Portanto, se considerarmos que o fiador não anuiu expressamente com a possibilidade de que seu único bem imóvel, utilizado como residência, pudesse vir a garantir dívida não paga de locação, o inciso VII, em questão, encontra-se em vias de colisão com o fim social da Lei 8.009/90, por afrontar o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. (Apelação Cível Nº. 2007.016730-1/0000-00, Quinta Turma Cível, Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, Relator: Sideni Soncini Pimentel, Julgado em 05/02/2009).

O mesmo é o entendimento do Tribunal de Minas Gerais:

Com efeito, o direito à moradia, base da IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA, é direito social assegurado pela Constituição de 1988. Nem permite a regra da igualdade tratar desigualmente locatário e fiador. Sem contar que o fiador perderia seu imóvel residencial por uma dívida que nem sequer se beneficiou. E o legislador, ao criar o instituto da IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA, quis proteger a dignidade da pessoa humana, incompatível com a situação de penúria e de desabrigo. Nesse sentido, a lição de Humberto Theodoro Júnior: É aceito pela melhor doutrina e prevalece na jurisprudência o entendimento de que 'a execução não deve levar o executado a uma situação incompatível com a dignidade da pessoa humana'. Não pode a execução ser utilizada como instrumento para causar a ruína, a fome e o desabrigo do devedor e sua FAMÍLIA, gerando situações incompatíveis com a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, institui o código a IMPENHORABILIDADE de certos bens como alimentos, salários, instrumentos de trabalho, pensões, seguro de vida (art. 649)" (Curso de Direito Processual Civil - Processo de Execução e Processo Cautelar. Rio de Janeiro: 28ª Edição. Forense, 2000, p.12). Logo, o inciso VII do art. 3.º da Lei 8.009/90 não apenas viola o art. 6.º da Carta Magna, como também afronta o princípio da dignidade da pessoa humana (art.1.º, inciso III, da CF) e da igualdade (art. 5.º, caput, da CF). (Embargos Infringentes Nº. 1.0480.05.076516-7/004 em Apelação Cível Nº. 1.0480.05.076516-7/003, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Relator: Fábio Maia Viani, Julgado em 09/09/2008).

Vislumbra-se que a tese de inconstitucionalidade da previsão do inciso VII, do artigo 3º da Lei 8.009/90 prospera, haja vista que muito recentemente, tribunais de instância inferior, vêm reconhecendo a impenhorabilidade do imóvel do fiador em contrariedade ao entendimento até então pacificado do Supremo. Nesse sentido, impende transcrever a ementa dos referidos acórdãos:

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS A EXECUÇÃO. LOCAÇÃO. FIADOR MORADIA. BEM DA FAMILIA. IMPENHORABILIDADE. I - A MORADIA, RECONHECIDA COMO DIREITO SOCIAL, VISA GARANTIR AO CIDADÃO UMA VIDA COM MAIS DIGNIDADE E SEGURANCA, DE TAL FORMA QUE A FAMÍLIA RESTE PROTEGIDA EM ALGUMAS SITUAÇÕES. A IMPENHORABILIDADE DA MORADIA DECORRE DE UM DIREITO FUNDAMENTAL, PARA TODOS. II - A LEI N. 8.009/90, EM SEU ARTIGO 3, INCISO VII, FERIU O PRINCÍPIO DA ISONOMIA, DA IGUALDADE E DA PROTEÇÃO À DIGNIDADE HUMANA, UMA VEZ QUE DAR AO CONTRATO ACESSÓRIO DE FIANÇA MAIS OBRIGAÇÕES DO QUE AS CONFERIDAS A QUEM CONTRATA A LOCAÇÃO, O CONTRATO PRINCIPAL, É ATRIBUIR MAIOR ÔNUS A QUEM POSSIBILITA O EXERCÍCIO DO DIREITO DE MORADIA A ALGUÉM, EM DETRIMENTO DE SUA PRÓPRIA PESSOA E DE SUA FAMILIA. III - O ART. 3, INC. VII DA LEI N. 8.009/90, NAO FOI RECEPCIONADO PELO ART. 6 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, COM REDAÇÃOO DADA PELA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 26/2000. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.

(Apelação Cível Nº. 126346-3/188, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça de Goiás, Relator: Felipe Batista Cordeiro, Julgado em 02/09/2008).

EMENTA: EMBARGOS À EXECUÇÃO - FIANÇA - IMPOSSIBILIDADE DE SE DISCUTIR SOBRE A VALIDADE DA FIANÇA - BEM DE FAMÍLIA - IMPENHORABILIDADE - EXCEÇÃO PREVISTA NO ART. 3º, VII, DA LEI 8.009/90 - CONFLITO COM O DIREITO À MORADIA - ÚNICO IMÓVEL RESIDENCIAL - NULIDADE DA PENHORA - RENOVAÇÃO DOS EMBARGOS - ART. 268 DO CPC - POSSIBILIDADE - PREQUESTIONAMENTO - INOCORRÊNCIA. - Em se tratando de execução fundada em título judicial, no qual se condenou o fiador, solidariamente com o devedor principal, ao pagamento da dívida oriunda de CONTRATO de LOCAÇÃO, entende-se que não cabe discutir, nos embargos à execução, a respeito da validade ou não da fiança concedida em referido CONTRATO, porquanto essa questão, em virtude do trânsito em julgado da sentença proferida no processo de conhecimento, restou preclusa (art. 474 do CPC). - A Lei 8.009/90, ao dispor sobre BEM de FAMÍLIA, vedou a PENHORA do imóvel residencial do casal ou da entidade familiar e dos móveis que guarneçam a residência e não constituam adornos suntuosos, estabelecendo, todavia, algumas exceções em seu art. 3º. - No que se refere à exceção prevista no inciso VII do art. 3º da Lei 8.009/90 - penhorabilidade do BEM de FAMÍLIA do fiador em CONTRATO de LOCAÇÃO -, o que se observa é que tal disposição, além de afrontar o direito à moradia, garantido no art. 6º, caput, da CF/88, fere os princípios constitucionais da isonomia e da razoabilidade, uma vez que não há razão para estabelecer tratamento desigual entre o locatário e o seu fiador. - Tendo em vista que o legislador não estabeleceu um momento preclusivo para a oposição de embargos de terceiro - uma vez que podem ser apresentados a qualquer tempo enquanto persistir a constrição sobre o BEM -, não há que se falar em comportamento temerário por parte do apelado ao renovar os embargos de terceiro. - Demonstrado que todas as questões suscitadas pelas partes foram decididas, não há que se falar em prequestionamento para o órgão julgador manifestar-se expressamente a respeito de dispositivos legais. NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO, VENCIDO O DES. VOGAL. (Apelação Cível Nº. 1.0024.06.204395-5/001, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Relator: Elpídio Donizetti, Julgado em 25/11/2008).

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – EMBARGOS DE TERCEIROS – FIADOR – BEM DE FAMÍLIA – IMPENHORABILIDADE. É impenhorável bem de família pertencente a fiador em contrato de locação, porquanto o art. 3º, VII, da Lei n 8.009/90 não foi recepcionado pelo art. 6º da Constituição Federal (redação dada pela Emenda Constitucional n. 26/2000). (Apelação Cível Nº. 2007.026612-8/0000-00, Terceira Turma Cível, Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, Relator: Oswaldo Rodrigues de Melo, Julgado em 18/08/2008).

Além disso, em razão de tal questão ter sido por diversas vezes debatida no Egrégio Tribunal de Justiça de Goiás, tornou-se ela alvo de incidente de uniformização de jurisprudência:

INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA – DIVERGÊNCIA CONFIGURADA – INPENHORABILIDADE DO ÚNICO IMÓVEL DO FIADOR EM CONTRATO DE LOCAÇÃO. I – Dissídio configurado entre diferentes órgãos julgadores da corte justifica uniformização de jurisprudência. II – Incidência de penhora sobre único imóvel do fiador em contrato de locação, face a exceção prevista no artigo 3º, VII, da Lei 8.009/90, após edição da emenda constitucional nº 26/2000, que modificou o artigo 6º, da Constituição Federal, incluindo a moradia entre os direitos sociais do cidadão. III – Uniformizada a jurisprudência no sentido de afastar a possibilidade de penhora sobre único imóvel do fiador em contrato de locação. IV – Procedência da arguição.” (Órgão Especial, Uniformização da Jurisprudência nº 42-0/233, Tribunal de Justiça de Goiás, Relatora:

Beatriz Figueiredo Franco, in DJ nº. 14822, de 18/08/2006).

Dessarte, em termos de proposta para acalmar a voracidade do mercado imobiliário e, assim, afastar a penhora do bem de família do fiador locatício, faz-se necessário que o governo, mediante o dirigismo estatal, reestruture o seguro de fiança locatícia, que praticamente não funciona em razão da usura do sistema bancário que impõe condições abusivas, mas que afigura-se como um microssistema jurídico valiosíssimo, mormente em uma sociedade como a nossa, que apresenta um imenso déficit habitacional. Nesse contexto, imprescindível reiterar o já aduzido no Capítulo II:

Outra figura de garantia colocada à disposição do locador é o seguro de fiança locatícia (…) representa um significativo avanço no direito que rege as locações prediais urbanas, visto que tal modalidade tem inegável alcance social, já que vem amparar as classes menos favorecidas, que encontram grandes dificuldades para conseguir fiadores, proprietários de imóveis, normalmente exigidos pelas empresas imobiliárias. (…) Nesse contexto, é, de fato, a modalidade de garantia que vem tendo grande aceitação, notadamente, para atender às circunstâncias de pessoas que vão morar em outra cidade e não têm conhecidos, amigos ou parentes no local que possam lhe servir de fiadores. Além disso, evita, igualmente, o constrangimento de solicitar fiança a terceiros, que, se aceita, normalmente, é dada com certa relutância.

Diante deste cenário, a revitalização do seguro de fiança locatícia, fomentaria o mercado imobiliário, atendendo os anseios de todos, locadores e locatários, tornando-se, doravante, uma garantia eficiente, prática, justa e fundamentalmente impessoal, na medida que diminuiria em muito à procura pela fiança locatícia pessoal. Assim, a fiança somente seria usada para fiadores com mais de um imóvel, que uma eventual constrição judicial fosse penhorado aquele bem que não caracterizasse bem de família. Todavia, ao persistir o quadro atual, sufragado pela posição do Supremo, apenas o inquilino estará se beneficiando da locação, uma vez que irá morar em um imóvel e, ao não pagar os aluguéis, quem fará suas vezes será, justamente, aquele que nada tem a ver com o seu débito, isto é, o fiador (AINA, 2002).

Assim, de acordo com Aina (2002), a solução para o caso, reitera-se, seria a maior amplitude do seguro de fiança locatícia, visto que, com sua efetiva disseminação, poderiam ser feitos os ajustes necessários para que funcionasse a contento de todos os envolvidos. Seguramente, é a modalidade mais democrática de garantia, porquanto depender tão somente da capacidade do pretendente à locação, em contrapartida à fiança, a qual depende de um terceiro e que, na grande maioria das vezes, ocasiona prejuízos para o garante. Não por menos, a Câmara de Deputados, aprovou recentemente mudanças na relação dos fiadores de imóveis com locatários e proprietários, vindo a atualizar a Lei do Inquilinato através do Projeto de Lei nº. 71/07[7] de autoria do deputado baiano José Carlos Araújo, o qual ainda será objeto de votação no Senado .

Por derradeiro, cabe referir, diante de todo o exposto, que a matéria suscitada da questão, ora em debate, está muito longe de ter entendimento pacificado como tentou o Egrégio Supremo Tribunal Federal. O que se verifica, na prática jurídica, ainda que de forma minoritária, é que julgados dos tribunais estaduais evidenciam, sobremaneira, que não há entendimento definitivo que sinalize a plena constitucionalidade da exceção prevista no inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009/90. Resta, por consequência, o aguardo do transcurso do tempo[8] a fim de que aponte qual caminho, dentre os posicionamentos dos Tribunais, doravante, a ser trilhado no tocante à possibilidade ou impossibilidade da penhora do único bem do fiador, isto é, consolidando ou não a inconstitucionalidade do dispositivo e, finalmente, clarificando entendimento quanto ao verdadeiro sentido da inserção do direito à moradia como direito social constitucionalizado.

Sobre a autora
Rosilene A. D. Weissheimer

Advogada Pós-Graduada em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp / Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes. Graduada em Direito pelo Centro Universitário Univates.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WEISSHEIMER, Rosilene A. D.. Penhora do Bem de Família do Fiador Locatício: (In)Constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4231, 31 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35831. Acesso em: 19 nov. 2024.

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