4. ONEROSIDADE EXCESSIVA NO CONTRATO DE CARTÃO DE CRÉDITO
A onerosidade excessiva, decorrente da cláusula rebus sic standibus, conforme afirmado no tópico 1.2 deste texto, é proteção garantida pela legislação e princípios contratuais ao consumidor. Também, como foi retratado no tópico 2.1.1, é aplicável a legislação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de cartão de crédito. Desta forma, percebe-se que é possível utilizar-se desta modalidade de revisão ou de resolução contratual ao referido contrato, por se tratar de relação jurídica de execução continuada.
Devem ser respeitadas, no contrato de cartão de crédito, todas as regras pertinentes aos princípios contratuais de boa-fé e equivalência material entre as partes, de modo que não se pode aceitar a validade de cláusulas que tornem por demais onerosa a avença para o consumidor.
É relevante lembrar que o consumidor, apesar de não ser a única parte que possui obrigações neste tipo de contrato, é sempre considerado hipossuficiente tanto em relação à empresa emissora quanto ao estabelecimento comercial, com os quais firma relações de consumo diferentes, mas sempre como parte passiva.
Há, para o usuário do cartão, uma condição de vulnerabilidade em relação às outras partes que detêm maior poder contratual. Com relação à pura teoria da onerosidade excessiva, pode ser, ainda, que ocorra o desequilíbrio real do pactuado, em decorrência de fato superveniente e imprevisível ao tempo do pacto, que torne, para qualquer das partes, por demais desequilibrado o objeto contratual.
O procedimento de revisão contratual é o seguinte: o consumidor ingressa com ação de revisão ou resolução contratual em face do outro contratante, que geralmente é a empresa emissora do cartão, visando ou a decretação de nulidade ou a modificação das cláusulas que se tornaram por demais onerosas, consideradas abusivas pelo artigo 51. §1º, inciso III, do CDC.
O principal fundamento deste pleito deverá ser o artigo 6º, inciso V, do referido diploma, que traz como direito básico do consumidor a possibilidade de deferimento de tal ação judicial. A seguir, ocorrerá a citação da parte requerida para que conteste a ação, sob pena de revelia, nos termos do Código de Processo Civil vigente.
Caso julgue procedente o pedido, o juiz declarará a revisão ou resolução do contrato, nos termos do requerimento feito.
Frise-se que, neste caso, também valem das regras processuais baseadas no Código de Defesa do Consumidor, como a da inversão do ônus da prova, pelo que será a parte requerida responsável por demonstrar os fatos, e não o consumidor; bem como a possibilidade de condenação desta ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, por estar o requerente, conforme dito acima, em situação hipossuficiente.
Quanto à produção de provas no âmbito da ação de revisão contratual, é utilizada pela jurisprudência dominante e reconhecida pela doutrina especializada a chamada Teoria da Revisão Pura. Esta consiste no abandono da exigência de se provar em juízo a imprevisibilidade do fato que acabou tornando a avença excessivamente onerosa, mantendo necessária apenas a comprovação fática de que esta assim está. Tal teoria estaria baseada no mesmo art. 6º, V, do CDC, que não menciona a imprevisibilidade como requisito para o reconhecimento da onerosidade. Seguem julgados que adotam tal teoria:
Revisão de contrato - Arrendamento mercantil ("leasing") – Valor residual - Descaracterização. Relação de consumo. Taxa de juros - Fundamento inatacado. Indexação em moeda estrangeira (dólar norteamericano) - Crise cambial de janeiro de 1999 - Plano real. Aplicabilidade do art. 6º, inciso V, do CDC - Onerosidade excessiva caracterizada. Boa-fé objetiva do consumidor e direito de informação. Necessidade de prova da captação de recurso financeiro proveniente do exterior. [...]
- O preceito insculpido no inciso V do artigo 6º do CDC dispensa a prova do caráter imprevisível do fato superveniente, bastando a demonstração objetiva da excessiva onerosidade advinda para o consumidor.
- A equação econômico-financeira deixa de ser respeitada quando o valor da parcela mensal sofre um reajuste que não é acompanhado pela correspondente valorização do bem da vida no mercado, havendo quebra da paridade contratual, à medida que apenas a instituição financeira está assegurada quanto aos riscos da variação cambial, pela prestação do consumidor indexada em dólar norte-americano.
- É ilegal a transferência de risco da atividade financeira, no mercado de capitais, próprio das instituições de crédito, ao consumidor, ainda mais que não observado o seu direito de informação (arts. 6º, III, 31, 51, XV, 52, 54, § 3º, do CDC). (...)
(Processo: REsp 361694 RS 2001/0116072-1. Relator(a): Ministra NANCY ANDRIGHI. Julgamento: 26/02/2002. Órgão Julgador: TERCEIRA TURMA. Publicação: DJ 25/03/2002 p. 281) Grifou-se.
CIVIL E CONSUMIDOR - AÇÃO DECLARATÓRIA - PRETENSÃO REVISIONAL DE CONTRATO - CARTÃO DE CRÉDITO - SUJEIÇÃO À LEGISLAÇÃO CONSUMERISTA - INEXISTÊNCIA DE LIMITAÇÃO DE JUROS - CAPITALIZAÇÃO DE JUROS - TAXA DE JUROS ELEVADA - ENCARGOS VARIÁVEIS – ONEROSIDADE EXESSIVA (ART. 6, V, CDC)- TEORIA DA REVISÃO PURA - ILEGALIDADE DA CLÁUSULA-MANDATO. [...]
3 – A doutrina mais especializada consagrou o entendimento segundo o qual a regra do art. 6º, V, do CDC estabelece como requisito da revisão do contrato simplesmente a onerosidade excessiva superveniente e, assim, consagrou a “Teoria da Revisão Pura”, de mandeira a dispensar a prova da imprevisibilidade ou da ocorrência de fatos extraordinários, inerentes à “Teoria da Imprevisão”, comtemplada nos arts. 317. e 478 do Código Civil; [...]
(TJ/DF - APC 20070110153666. Relator(a): J.J. COSTA CARVALHO. Julgamento: 12/11/2008. Órgão Julgador: 2ª Turma Cível. Publicação: DJU 26/01/2009. Pág. : 102) Grifou-se.
Em casos práticos também se vê tentativas judiciais de revisão de cláusulas de contratos de cartão de crédito com base na onerosidade excessiva, nas quais o consumidor visa afastar a caracterização de sua mora do pagamento.
Porém, assevere-se que nesses casos a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça relativiza a Teoria da Revisão Pura, entendendo que a simples alegação do instituto ora em estudo é insuficiente para a sua constatação, fazendo-se mister a demonstração:
a) da existência de ação proposta pelo devedor contestando a existência parcial ou integral do débito;
b) de que a contestação da cobrança indevida se funda na aparência do bom direito e em jurisprudência consolidada do STJ ou do STF;
c) de que, sendo a contestação de apenas parte do débito, deposite o valor referente à parte tida por incontroversa. Nesse sentido: AgRg no REsp nº 735.844-RS, DJ 08.05.2006, REsp nº 246106-SP e REsp 607961-RJ.
Portanto, nesses casos, o fato do contrato ser firmado por adesão não implica a presunção de que seja abusivo, havendo necessidade de demonstração da onerosidade excessiva e desproporcional pela parte autora da ação judicial.
Outra ressalva se faz pertinente é quanto ao fato que de o Código Civil, ao tratar da onerosidade excessiva, em seu art. 478, menciona a prestação de uma das partes que por ventura torna-se uma extrema vantagem para a outra como requisito para a sua configuração. Tal texto não foi repetido no Código de Defesa do Consumidor, o que poderia gerar dúvidas a respeito de sua exigência nos casos de contratos de cartão de crédito. A doutrina majoritária, por sua vez, entende que a ausência de vantagem para a outra parte não resulta no desequilibro da avença, este que é o fundamento da proteção gerada pela teoria da onerosidade excessiva. Destarte, não haveria causa que motivasse o reconhecimento de imperfeição das condições normais da avença.
Ainda acerca da ação de revisão/resolução do contrato de cartão de crédito, segue importante observação:
Como a norma do art. 6º, inciso I, do CDC não é autoaplicável, sua incidência está ancorada à decretação judicial. Por conseguinte, o titular do cartão prejudicado pela onerosidade excessiva não pode suspender o cumprimento da prestação que lhe incumbe sem ao aforamento da ação revisional, sob pena de aflorar sua inadimplência. (FÁZZIO JÚNIOR, 2010b, p. 107).
Portanto, não poderá o usuário do cartão simplesmente deixar de pagar suas prestações devidas por constatação própria da ocorrência da cláusula rebus sic standibus, já que esta só terá validade jurídica depois de reconhecida pelo juízo competente, através de ação judicial própria.
5. CONCLUSÃO
O instituto da onerosidade excessiva decorre do princípio contratual da equivalência material, que visa ao tratamento justo e igualitário entre as partes em todas as fases do contrato. Através do mesmo, busca-se proteger a parte que, imprevisivelmente, passa a ter que arcar com prestação excessivamente desvantajosa para si, o que tornaria a avença uma forma de obter lucros também não previstos inicialmente para a parte oposta.
De todo o exposto, vê-se que em contrato de cartão de crédito é reconhecida a possibilidade de revisão ou resolução que tenha como fundamento a onerosidade excessiva. Tal se dá pelo fato de que lhe são aplicadas tanto as regras dos contratos previstas pelo Código Civil de 2002 (pelo simples fato de serem gerais, ou seja, aplicáveis, em regra, a todos os tipos de contratos), quanto as regras contidas no Código de Defesa do Consumidor, por se tratar de um contrato bancário, regido por este diploma no que for pertinente.
No entanto, necessário se faz notar diferenciações trazidas em ambas as leis, já que, em alguns momentos, a legislação consumerista é mais abrangente ao reconhecer as hipóteses de configuração da cláusula rebus sic standibus, como quando não exige, para tanto, a prova de que era o fato motivador do desequilíbrio imprevisível ao tempo da formação do pacto. Tal exigência, por sua vez é feita pelo legislador no Código Civil, em seu art. 478.
Observou-se também que o simples fato de que o contrato de cartão de crédito habitualmente é firmado na modalidade de adesão não implica a presunção de que seja abusivo, havendo necessidade de demonstração da onerosidade excessiva e desproporcional pela parte autora em ação judicial. Viu-se, também, que a doutrina majoritária entende que a ausência de vantagem para a outra parte não resulta no desequilibro da avença.
Por fim, concluiu-se ainda como certo que o Código de Defesa do Consumidor, como legislação específica, tem um âmbito de proteção maior ao pactuante hipossuficiente que o Código Civil com relação à onerosidade excessiva nos contratos.
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