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A (in)constitucionalidade da extensão da imunidade recíproca às estatais

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5.  A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA EXTENSÃO DA IMUNIDADE RECÍPROCA ÀS ESTATAIS

5.1.PRINCÍPIOS APLICÁVEIS

Consoante já foi elucidado neste trabalho, a imunidade recíproca não é, em regra, extensível às empresas públicas e sociedades de economia mista. Isso se tomarmos como base o próprio texto constitucional que, expressamente, restringe a abrangência deste instituto tão somente aos entes federativos e às suas autarquias.

Primeiramente, quanto ao princípio federativo, cumpre destacar que, embora a autonomia dos entes fundamente a imunidade recíproca, ela também permite que um ente tribute a exteriorização de riqueza por parte de pessoa jurídica de direito privado. 

Desse modo, é preciso que analisemos as duas faces do princípio federativo (para os fins a que se propõe este trabalho): a) a que retira da competência dos entes a possibilidade de tributação recíproca das pessoas políticas (sujeitas ao regime jurídico de direito público), tendo em vista a interferência passível de embargar o funcionamento da máquina estatal e a violação à sua autonomia; e b) a que permite que os entes (União, Estados e Municípios) arrecadem por meio de tributos incidentes sobre a exteriorização de riqueza.

Acontece, no entanto, que muitas vezes o poder legislativo, acometido de “atecnia jurídica”, acaba criando uma estatal, e atribuindo-lhe serviço de prestação exclusiva pelo ente, o que, consoante concluímos no capítulo anterior, é incompatível com o regime jurídico dessa modalidade empresária. 

Quando, contudo, reste caracterizada a essencialidade do serviço, bem como a atividade preponderante da estatal, no entendimento doutrinário, seria possível a extensão da imunidade recíproca. Isso porque, não se pode embargar a prestação de serviço público essencial por conta, tão somente, de uma conjuntura política de pouco conhecimento jurídico. Isso se daria em dissonância com os princípios federativo, da capacidade contributiva e supremacia do interesse público, conforme já elucidado.

Em outras situações, contudo, o poder público cria uma estatal com o fim precípuo de promover uma gestão empresarial, com maior liberdade tarifária e com a possibilidade de auferir lucro (sob o fundamento de ser instrumento de realização do interesse público). 

Nesses casos, é inequívoco a incompatibilidade com o regime jurídico de direito público, a violação dos princípios regentes da ordem econômica (principalmente a livre concorrência e a iniciativa privada) e a incidência dos óbices impostos pelo art. 150, §3º e 173, §2º do Texto Magno[5], o que, deixa clara a inconstitucionalidade da extensão da imunidade reciproca às Estatais.

É evidente que, caso o poder público quisesse tão somente descentralizar o poder e promover a prestação de serviço público pela administração indireta, ele poderia fazê-lo mediante a criação de uma autarquia. A partir do momento em que é criada uma Empresa Estatal, percebe-se a real intenção do poder público (gestão empresária e lucro), que, frise-se, em nada se confunde com uma mera atecnia, havendo que se falar, portanto, em Capacidade Contributiva e respeito à Livre Concorrência. Se o poder público quer os bônus da maior flexibilidade e menor controle das Estatais, ele, por óbvio, deve suportar o ônus tributário.

Cumpre aqui destacar a lição do professor Schoueri (2011, p. 236-237) para quem:

(...) diferentemente da circunstância em que se está a atuar fora do domínio econômico, o Princípio da Capacidade Contributiva concorrerá possivelmente em sentido inverso, ainda vindo a atuar o Princípio da Livre Concorrência. Esclarece esse ponto o parágrafo 3º do artigo 150 da Constituição Federal, ao restringir o gozo da imunidade ao patrimônio, à renda e aos serviços relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário.

Por fim, e não menos importante, faz-se imperioso que se diga, com amparo em José Afonso da Silva (2011, p. 801), que a nossa Constituição adotou uma postura capitalista, utilizando como alicerces da ordem econômica os princípios da livre iniciativa, da propriedade privada e da livre concorrência. Desse modo, pode-se dizer, inclusive, que tais princípios são a base do modelo econômico adotado pelo constituinte e, portanto, devem ser tutelados, sob pena de afronta à essência do próprio Estado Democrático de Direito.

Portanto, tomando como base os princípios sobre os quais se lastreia a imunidade recíproca não se pode olvidar que não guardam coerência com a possibilidade de extensão às estatais.

5.2. A INFLUÊNCIA DO REGIME JURÍDICO E DA ATIVIDADE PREPONDERANTE

Como já foi amplamente exposto, em regra, as estatais se submetem ao regime jurídico de direito privado. Insta salientar, nesse sentido, que a submissão a este regime se dá simplesmente pelo fato de exercerem atividade econômica em sentido amplo. Por isso, poder-se-ia dizer que às estatais aplicam-se os parágrafos primeiro e segundo do art. 173 da Lei Maior. Tecnicamente, independentemente de exercer atividade econômica (sentido estrito) ou prestar serviço público.

A respeito de tão controverso tema, podemos citar José dos Santos Carvalho Filho (2008, p. 452) para quem:

O quadro constitucional a respeito do regime tributário das empresas públicas e sociedades de economia mista tem previsão nos §§ 1º e 2º do art. 173. No primeiro, a norma constitucional determina que tais entidades devam sujeitar-se ao regime jurídico das empresas privadas, inclusive, quanto às obrigações tributárias. No segundo, como que repetindo esse nivelamento, reza o texto que as mesmas entidades não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.

Tem havido grande polêmica entre os autores no que se refere à aplicação dessa norma. Sustentam alguns autores que o nivelamento do regime tributário só é aplicável quando se trata de entidades que exploram atividade econômica em sentido estrito, podendo haver privilégios em favor daquelas que executam atividades econômicas sob a forma de serviços públicos.

Com a devida vênia, pensamos de forma diversa. Todas as empresas públicas e sociedades de economia mista, como entidades paraestatais que são, devem sujeitar-se ao mesmo regime tributário aplicável às empresas privadas, porque, como já visto, todas exercem, em sentido amplo, atividades econômicas. Desse modo, não importará se o objeto é a prestação do serviço público ou o desempenho de atividade econômica stricto sensu. Na medida em que o Estado as institui, cobrindo-lhe com as vestes do direito privado, deve arcar com os efeitos tributários normais incidentes sobre as demais empresas privadas. A imunidade e os privilégios fiscais só se justificam para as pessoas de direito público, estas sim representando o próprio Estado. Por outro lado, não conseguimos vislumbrar no § 2º do citado art. 173 amparo para essa distinção: as empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado. Desse modo, não podemos aceitar essa visão que privilegia tributariamente o Estado no que toca às entidades paraestatais, quando ele mesmo tem a sua disposição outros mecanismos (administração direta, autarquias, fundações públicas) suscetíveis de incidência desses privilégios, como emana do texto constitucional. (Grifo nosso)

Tal entendimento, esposado por José dos Santos Carvalho Filho, a nosso ver, é irretocável, tendo em vista os magistrais dizeres acerca da influência do regime jurídico a que se submetem as estatais para que se afira o tratamento tributário dado a elas. A aplicação dessa doutrina condiz exatamente com o ordenamento constitucional.

Em que pese a consonância com os ditames do Estado Democrático, outra parcela doutrinária, encabeçada por Celso Antonio Bandeira de Mello e Maria Sylvia Zanella Di Pietro, consoante será melhor abordado adiante, entendem de modo diverso, pois para eles a prestação de serviço público presume a submissão a regime jurídico de direito público, o que afastaria a incidência do art. 173 do Texto Magno. Nesse sentido atentemos ao magistério da referida doutrinadora Zanella Di Pietro (2010, p.445):

(...) Quando, porém, o Estado fizer a gestão privada do serviço público, ainda que de natureza comercial ou industrial, aplicam-se, no silêncio da lei, os princípios de direito público, inerentes ao regime jurídico administrativo.

Embora à luz dos princípios da “supremacia do interesse público” e da “continuidade do serviço público”, esse entendimento possa parecer revestido de razão, a nosso ver, com lastro na doutrina do já citado José dos Santos Carvalho Filho, por exercerem atividade econômica em sentido amplo, a sua submissão ao regime jurídico de direito privado condiz exatamente com a ratio essendi do art. 173 da Constituição. Aliás, data venia, parece ser contraditória a assertiva da doutrinadora no que tange a aplicação do regime jurídico de direito público quando o Estado fizer a “gestão privada do serviço público”.

Não é outro o entendimento de Luis Eduardo Schoueri (2012, p. 382):

Deste modo, quando o Estado atua no Domínio Econômico, submetese ele ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive sob os aspectos tributários. Afinal, sua remuneração (preços públicos) se deu em ambiente de mercado e, neste , não há que se permitir qualquer privilégio, sob pena de se afastar o próprio mercado. Visou o constituinte, com tal providência, assegurar a plena observância do Princípio da Livre Concorrência, que ele mesmo consagrou (art. 170,IV).

(...)

Assim, conclui-se que a imunidade recíproca encontra como limite o campo de atuação do próprio Estado (o setor público); quando a pessoa jurídica de Direito Público ingressa no Domínio Econômico, cessa a imunidade.

Cumpre destacar ainda a doutrina do professor Hely Lopes Meireles (2011, pág. 367) para quem o Estado, por intermédio de Empresa Pública, só pode prestar serviços públicos impróprios, ou seja, aqueles “que não afetam substancialmente as necessidades da comunidade, mas satisfazem interesses comuns de seus membros” sendo, por isso, que “a Administração os presta remuneradamente, por seus órgãos ou entidades descentralizadas”.

Conforme assevera Celso Antonio Bandeira de Melo (2008, p. 676-678) há outras 3 espécies de serviço público, quais sejam: a) aqueles cuja prestação cabe exclusivamente ao Estado, são os denominados serviços próprios, exclusivos ou privativos (categoria na qual se insere o serviço postal), b) serviços que devem ser prestados pelo Estado e devem ser objeto de concessão – por exemplo os de rádio e televisão, c) os serviços que, embora o Estado deva prestar obrigatoriamente, pode ser objeto de concessão e d) serviços em que o Estado, embora não tenha que prestar, deve, caso não faça, delegar a sua prestação. 

As empresas estatais podem prestar tão somente os serviços públicos delegáveis, como, por exemplo, aqueles previstos no art. 21, incisos XI e XII da Constituição[6].

Há na doutrina, entendimento segundo o qual as estatais delegatárias de serviços públicos:

foram criadas e existem para a prestação de serviços públicos, serviços qualificados, inclusive pela Constituição em vigor, como privativos de entidade estatal ou da própria União, ou para realizar obras públicas, ou ainda, para desenvolver atividades de outra tipologia, isto é, misteres eminentemente públicos.(MELO, 2008, pág. 189)

Nesses casos, todavia, entendemos que o desenvolvimento de serviços privativos da entidade estatal por uma Empresa Estatal decorre, data venia, de uma atecnia do legislador. Quando se está diante desses casos faz-se imperiosa uma interpretação sistemática do Texto Constitucional com o fito de averiguar se a atividade preponderante da Estatal a faz possuir natureza jurídica de autarquia. 

Aqui o art. 150, §2º faria com que a imunidade recaia também sobre as empresas estatais cujo fim precípuo seja a prestação tão somente de serviço público exclusivo do Estado – que, embora devesse ser prestado pela administração direta, foi atribuído a uma estatal. Lembrando-se, todavia, que se trata de método para corrigir erro técnico-jurídico cometido pelo poder legislativo.

Nesse sentido, artigo publicado na Revista Dialética de Direito Tributário n; 170, de autoria da Procuradora da Fazenda Nacional Maria Cândido Monteiro de Almeida (2009, p. 31-42), intitulado “A Imunidade Recíproca e sua extensão às Empresas Públicas: um exemplo eloquente de Mutação Constitucional”, segundo o qual:

(...) é nessa dicotomia entre o ser e o dever ser que se visualiza, com mais propriedade a premissa adotada no RE nº 407.099/RS no sentido de que empresa pública prestadora de serviço público próprio tem natureza jurídica de autarquia a justificar a incidência da imunidade tributária recíproca(...)

Acontece, no entanto, que não se pode generalizar tal assertiva a ponto de fazer incidir a norma imunizante para todas as empresas públicas prestadoras de quaisquer serviços públicos, até mesmo porque se essa fosse a ratio legis do constituinte, ele faria menção expressa a essa ressalva no §3º do art. 150 que, frisese, se preocupou em vedar expressamente tal extensão. 

Claro que se poderia admitir consoante já exposto, a extensão da imunidade àquelas estatais criadas exclusivamente para a prestação de serviço público próprio, obrigatório, mas jamais para outras que, embora prestem serviço público, exerçam, de modo preponderante, atividade econômica.                                                                                                                                                        

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Há que se ressaltar também, como bem preceitua Marçal Justen Filho (2008, p. 182184), que não é raro que empresas estatais prestadoras de serviço público, exerçam também atividade econômica. Ele, inclusive, ilustra sua posição com o caso da ECT, concluindo, com base em julgado do SFT (RE 229.696), que seria “inviável, sob o prisma prático, a solução da dissociação de regimes jurídicos para uma única e mesma entidade”. 

Ou seja, há estatais que cumulam a prestação de serviços públicos com o exercício de atividade econômica. Nesses casos deve-se aplicar o regime jurídico do art. 173 o do art. 175, ou ainda um regime diferenciado[7]? A resposta possivelmente só será encontrada com a adoção de um método hermenêutico tópico, com a análise casuística da atividade preponderante da respectiva estatal. 

No caso da ECT, conforme trataremos em tópico específico, o exercício de atividade econômica e sua “gestão empresarial” são tão evidentes que possivelmente ela sequer poderia fazer jus a quaisquer privilégios tributários, sob pena de clara afronta à livre concorrência.

Para corroborar o quantum exposto, é preciso que se traga ainda a obra de Washington Peluso (1999, p. 353) segundo o qual:

Uma das mais discutidas formas de “intervenção” é a realizada pelo Estado, na condição de “empresário”. Sua importância revela-se, especialmente, no caminho seguido pelo Neoliberalismo. Para que se preservassem os princípios liberais de “não intervir”, e, ao mesmo tempo, ser praticada a atividade econômica, o Estado passou a utilizar-se do expediente de criar empresas e defini-las, por lei (Decs.lei ns. 200/900), como pessoas de direito privado, ou impor-lhes, pelo texto constitucional, o regime próprio destas, inclusive, quanto às obrigações trabalhistas e tributárias (...)

Desse modo, portanto, em regra, parece clara a impossibilidade de extensão da imunidade recíproca às estatais, tendo em vista a sua submissão ao regime jurídico de direito privado e a possibilidade de concorrência com a iniciativa privada.

5.3. A RELEVÂNCIA DA REMUNERAÇÃO DO SERVIÇO POR TAXA OU PREÇO PÚBLICO

Procurou-se deixar claro neste trabalho que, quando da prestação de serviço público, a cobrança de tarifa/preço público implica na impossibilidade do alcance da imunidade recíproca e que essa só seria possível mediante a remuneração por taxa.

As Taxas são tributos que, segundo os artigos 145, II da Constituição Federal c/c 77 do CTN[8], podem ser cobradas por qualquer dos entes, em decorrência da prestação de serviço público ou exercício do poder de polícia. Este trabalho procurará, nesse tópico, dispor com maior atenção acerca das taxas decorrentes da prestação de serviço público em detrimento àquelas cobradas por conta do exercício do poder de polícia.

Após serem fincadas tais premissas, desde já, pode-se perceber que a taxa é um tributo vinculado à lei relativo a uma obrigação sinalagmática, onde nascerá para o usuário o dever de pagar uma contraprestação a um serviço prestado pela administração pública (quiçá uma entidade paraestatal). 

Essa prestação, contudo, não necessariamente tem que se dar de modo efetivo, bastando que o serviço esteja pelo menos potencialmente à disposição do contribuinte (TORRES, 2011, p. 407). Cumpre destacar ainda que o serviço público que enseja a cobrança de taxa deve ser específico e divisível. Em termos obrigacionais a prestação do Estado deve se dar de modo autônomo e personalizado (específico) e a sua utilização (ainda que potencial) deve ser imputável individualmente a cada contribuinte (divisível).

É possível também firmar o entendimento acerca da retributividade de tal tributo.

Aqui, em razão da prestação de serviço público, o quantum devido a titulo de taxa tem caráter retributivo, não havendo que se falar em lucro, mas em remuneração/contraprestação decorrente única e exclusivamente da realização do interesse público.

Não é outro o entendimento de Ricardo Lobo Torres (2011, p. 406) para quem a taxa tem natureza contraprestacional, e serve ao fim precípuo de remunerar serviços essenciais. Estes, inclusive, só podem ser remunerados por meio de taxa, já que, diferentemente dos preços públicos – dotados de natureza contratual -, as taxas são tributos, submetidos, assim como os serviços públicos, ao regime jurídico de direito público.

Desse modo, portanto, cumpre elucidar que além do serviço postal não possuir natureza de essencial (TORRES, 2007, p. 392), ele sequer é remunerado por taxa, o que, mais uma vez, deixa clara a adoção de modalidade contratual e, portanto (assim como a empresa pública), submetida a regime jurídico de direito privado, o que afastaria a possibilidade de considerar a ECT como sendo a própria União, encerrando, desse modo, a possibilidade de extensão da imunidade recíproca.

Cumpre agora diferenciarmos a taxa do preço público. Para tanto, há que se recorrer à magistral obra do professor Sacha Calmon (2005, p. 491-496) para quem a diferença reside na opção do legislador num regime contratual (preço) ou de direito público (taxa). 

Segundo o autor, a cobrança da taxa impõe o enquadramento de um regime de direito público, vinculado, portanto, à lei. Com a adoção do preço, tem-se uma maior flexibilização e imediatez, sendo, desse modo, o regime próprio do Estado ao adentrar na atividade econômica, pois esta exige manobras rápidas, o que não se teria com o regime das taxas submetidas, por sua vez, ao “controle congressual” e à incidência de regras de contenção ao poder de tributar. 

Indo mais além, Sacha Calmon sugere a adoção de preços para remunerar atividades estatais delegáveis, enquanto que as taxas devem remunerar atividades próprias do Estado. Neste caso, plenamente justificável a adoção do tributo (ex lege), dotado de maior rigidez e do controle do legislativo, uma vez que haveria em jogo o interesse público envolvido. 

Já com a cobrança de preço, resta clara a submissão ao regime jurídico de direito privado, uma vez que aqui não há compulsoriedade, nem reserva legal, mas mero instrumento contratual de direito privado.

Para Ricardo Lobo Torres (2011, p. 190-191) a taxa é a contraprestação ao serviço público prestado em tutela aos direitos fundamentais, enquanto o preço está relacionado aos direitos sociais e econômicos.

Desse modo, portanto, tem-se que o fato do serviço postal ser remunerado por meio da cobrança de preço e não de taxa afastaria de uma vez por todas sua suposta natureza essencial, o que, possivelmente, inviabilizaria a extensão da norma imunizante recíproca à ECT.

5.4.     O ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O caso emblemático julgado pela Suprema Corte Brasileira residiu no julgamento do RE 407.099 RS[9], no qual, data maxima venia, o Supremo Tribunal Federal se utilizando de entendimento razoável, o aplicou de modo genérico e, portanto, errôneo, no qual restou consignada a extensão da imunidade recíproca à ECT, estatal praticante de atividade econômica, cuja metade da receita advém do serviço postal e outra metade de atividade de particular prestada em concorrência com a iniciativa privada.

5.4.1. O caso da ECT

O emblemático julgado, responsável por firmar o entendimento do STF se deu em relação ao litígio firmado entre a ECT e o Município de São Borba. Na ocasião, o TRF da 4ª Região julgando recurso em sede de Embargos à Execução Fiscal entendeu por não estender às empresas públicas a imunidade recíproca, sob o fundamento de que o art. 12 do Decreto-lei 509/69 não havia sido recepcionado pela atual Constituição. Veja-se:

TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS. DECRETO-LEI 509/69.

A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT não mais goza de imunidade recíproca na vigência da atual Constituição Federal, uma vez que a Carta Política não assegura tal privilégio tributário às empresas públicas, abarcando somente autarquias e fundações. Não se pode reconhecer que o art. 12 do Decreto-Lei 509/69 garante tal benefício aos Correios. Apelação e remessa oficial providas para declarar subsistente o título executivo. (TRF4, AC 44453 SC)

Antes, contudo, cabe verificarmos o teor do mencionado dispositivo legal, in verbis:

Art. 12 - A ECT gozará de isenção de direitos de importação de materiais e equipamentos destinados aos seus serviços, dos privilégios concedidos à Fazenda Pública, quer em relação a imunidade tributária, direta ou indireta, impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços, quer no concernente a foro, prazos e custas processuais.    

Como se trata de dispositivo legal anterior à Constituição, faz-se imperiosa a análise de sua receptividade pela Carta de 1988, o que é feito com fulcro na compatibilização de seu texto com os fundamentos trazidos pela Lei Fundamental. Nessa senda, cabe a análise do art. 150, §§ 2º e 3º desta:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(...)

 VI - instituir impostos sobre:

a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;

(...)

§ 2º - A vedação do inciso VI, "a", é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes.

§ 3º - As vedações do inciso VI, "a", e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel.                               

Desse modo, nos pareceu extremamente coerente o acórdão exarado pelo Egrégio TRF da 4ª Região que entendeu, amparado pelo Texto da Constituição, pela não extensão da norma imunizante recíproca às estatais. Tal julgamento, entretanto, não enfrentou a questão da essencialidade do serviço prestado, mas a aplicação do art. 150, §3º, cujo texto expressamente veda a extensão às estatais ou a quem cobre preço ou tarifa em contraprestação ao interesse público. 

Acontece, no entanto, que essa decisão foi alvo da irresignação da ECT que interpôs Recurso Extraordinário.

No memorável julgamento do Recurso Extraordinário 407.099 do Rio Grande do Sul, cuja relatoria coube ao Ministro Carlos Velloso foram fixadas algumas premissas, quais sejam:

  1. Empresa pública prestadora de serviço público (essencial), diferentemente do que ocorre com a que exerce atividade econômica, possui natureza jurídica de autarquia;
  2. Os bens da ECT são afetados à prestação de serviço público e, por isso, impenhoráveis e imprescritíveis;
  3. Diferentemente das estatais das quais tratamos no tópico anterior, apenas aquelas que exercem atividade econômica submetem-se ao disposto no art. 173, §2º da Constituição;
  4. O óbice imposto pelo art. 150, §3º só se aplica aos serviços públicos desde que esses sejam delegados à particulares nos moldes do art. 175. Esse dispositivo teria supostamente sofrido uma mutação constitcucional;
  5. A ECT não se equipara ao regime jurídico de direito privado, porquanto presta o serviço público postal em monopólio;
  6. A ECT, portanto, tendo em vista o fato de prestar serviço próprio de pessoa política, é merecedora da imunidade prevista no art. 150, VI, “a” da Constituição.

Cabe salientar, entretanto, que tais assertivas não se coadunam com o fim a que se dirige o Estado, tendo em vista que, embora seja o STF quem deva guarnecer a Constituição, ele, data máxima vênia, decidiu de modo muito mais político do que jurídico.

Primeiramente porque equiparou a ECT à Autarquia, sendo que, consoante explicitamos em tópicos anteriores, tratam-se de regimes jurídicos distintos, sendo que a mencionada estatal até 1969 era, de fato, uma autarquia, transformando-se em empresa com o fito de proporciona-lhe uma mudança de paradigma gerencial, tornando o serviço postal mais efetivo e colaborando para a consolidação da sua marca.

Desse modo, é possível percebermos que o fim precípuo da transformação do antigo “Departamento de Correios e Telégrafos” (Autarquia Federal) em “Empresa” foi justamente o de transformar seu modelo de gestão, devendo, entretanto, assumir os ônus inerentes ao regime jurídico de direito privado, quais sejam os relativos à sujeição aos ditames da ordem econômica, principalmente, no que tange às regras de concorrência e à livre iniciativa privada.

É preciso que elucidemos ainda que o “serviço postal” foi consagrado no art. 21, X como sendo serviço de competência privativa da União, ele não foi eleito no rol do art. 177 da Constituição. Aliás, tal dispositivo se refere tão-somente àquelas atividades econômicas supostamente típicas da iniciativa privada às quais são exercidas em regime de monopólio pela administração, tendo em vista o imperativo do interesse público.

Insta aqui salientarmos o equívoco ao se falar em “monopólio do serviço postal”. Tal expressão resta impregnada pelo vício da atecnia. Isso porque “monopólio” na Constituição diz respeito ao exercício de atividades econômicas (stricto sensu) não típicas da administração, mas prestadas por ela por conta de sua importância, por conta do constituinte a ter expressamente elegido como sendo de relevante interesse público, diferentemente do que ocorre com os serviços públicos os quais competem à administração (ou às concessionárias e permissionárias – art. 175) devido à sua própria natureza.

Faz-se imperioso, contudo, destacarmos o entendimento doutrinário e jurisprudencial, particularmente esposado no RE 229.696 PE[10], segundo o qual, em que pese o serviço postal não esteja elencado no rol do art. 177 do Texto Magno, ele é exercido em monopólio da União. Tal posição não nos parece proceder, pois “serviço postal” (o qual será abordado nos próximos tópicos com mais profundidade) possui natureza de serviço público, prestado privativamente pela União e não natureza de atividade econômica em sentido estrito.

Essa seria uma das teses que supostamente viabilizaria a extensão da imunidade recíproca às estatais praticantes de atividade econômica em monopólio, pois a ratio essendi da vedação prevista pelo art. 173, §2º, qual seja a de tutelar a “livre concorrência”, não seria aplicável porquanto não haveria que se falar em concorrência quando do monopólio estatal. Esse entendimento, contudo, não merece prosperar, pois seria completamente contrário à extensão da norma imunizante recíproca, tendo em vista que enquadraria a atividade dessa empresa dentro do conceito “atividade econômica”, incompatibilizando-a (completamente) com o regime jurídico de direito público e impondo a obediência ao art. 150, §3º da Constituição.

Por outro lado, caso não entendamos o “serviço postal” como “monopólio da União”, e o enquadrarmos na categoria “serviço público”, seria preciso, para que se aplicasse a imunidade recíproca, o preenchimento de alguns requisitos, quais sejam:

a) a prestação do serviço pela administração direta, ou por autarquia, ou b) a cobrança de taxa para remunerar serviço essencial erroneamente atribuído pelo legislador a uma empresa estatal que preste-o com exclusividade, sem visar o lucro, mas tão somente a retributividade. Nesse sentido, a magistral obra do Mestre Geraldo Ataliba (ANO, p. 160):

Com efeito, pode o legislador decidir que os serviços (vacinação, identificação ou profilaxia etc.) sejam prestados sem remuneração. Se, entretanto, resolver que haverá remuneração, não pode senão optar pela taxa. A sua prestação só pode ser retribuída mediante taxa. (Grifo nosso).

A ECT não se enquadra em nenhuma dessas últimas hipóteses, contudo, ainda assim, o STF tratou de equipará-la à autarquia, aplicando-lhe o tratamento conferido pelo §2º do art. 150 da Carta Magna. Esse entendimento jurisprudencial, a nosso ver, se deu por conta de uma opção política, tendo em vista a crise vivida pelo serviço postal em tempos de avanços no âmbito das telecomunicações, e o risco à sobrevivência de uma estatal tão grande quanto os Correios. 

Acontece, no entanto, que o exercício de tal função política não cabe ao STF, mas àqueles legitimados a propor e aprovar uma Emenda Constitucional com vistas a expurgar o §3º do art. 150, incluindo em seu §2º além das autarquias, as estatais e, é claro, incluindo uma ressalva à aplicação do §2º do art. 173.

Em parecer prestado à mencionada empresa pública, Roque Antonio Carrazza, consignou entendimento favorável à extensão da imunidade recíproca à estatal. Primeiramente, ele firma a premissa de que “o serviço público tem por mola propulsora a lei; não o pagamento ou tarifa que eventualmente ensejar” (CARRAZZA, 2004, p. 33), motivo pelo qual a ECT tem a obrigatoriedade da prestação do serviço, devendo fazê-lo ainda que “isto lhe cause assinalados prejuízos”, por exemplo, pela dificuldade de acesso ao destinatário.

Em que pese a magistral obra do mencionado jurista, pedimos vênia para discordar, tendo em vista a insuficiência do exemplo esposado. Explique-se.

Em toda a gestão empresarial privada as despesas com a atividade prestada são repassadas ao consumidor/usuário, e com a ECT não é diferente, pois é óbvio que os custos gerados com “a dificuldade de acesso ao destinatário” do serviço postal serão repassados a quem contratar tal serviço. Parece-nos clarividente que a contraprestação paga pelo usuário não só remunera a ECT, como também gera para ela lucro. Frise-se que essas remunerações são variáveis justamente porque levam em conta os custos com o serviço prestado. Uma carta de São Paulo ao Rio de Janeiro, portanto, é muito mais “barata” que uma enviada para destinatário em Manaus.

Outro argumento a favor da ECT seria no sentido de que esse lucro seria revertido para a prestação do serviço público. É aqui, justamente, que reside uma das maiores falhas na tese proposta por grande parte da doutrina e aceita pelo STF. Os Correios acumulam a prestação de inúmeras atividades, dentre elas, o denominado banco postal, o transporte de mercadorias, a venda de selos e caixas. 

O que ocorre é que ao majorar a receita com a contraprestação paga pelos usuários do serviço postal, e não pagar tributo (ou seja, mais receita e custo reduzido), os Correios revertem esse “lucro” para a prestação de outras atividades que inevitavelmente concorrem com a iniciativa privada.

Ora, a conclusão não poderia ser outra se não a de que isso gera uma concorrência desleal com a iniciativa privada, subvertendo toda a lógica da criação de uma empresa estatal que é a de justamente efetivar os princípios trazidos na Ordem Econômica.

Além disso, tem-se que um dos argumentos trazidos pelo citado autor é o de que o patrimônio da ECT é federal, desvinculado da União, mas afetado à prestação de serviço público e, por ser bem público, seria impenhorável, inalienável e imprescritível (CARRAZZA, 2004, pág. 25). Tal construção, contundo, faz parecer que o simples fato de uma entidade privada ser concessionária de serviço público a colocaria sob o manto da tutela aos bens públicos. O simples fato de ser delegatária de serviço público não autoriza a extensão da proteção inerente às pessoas políticas.

Em que pese a jurisprudência da Suprema Corte tenha se consagrado no sentido favorável à extensão da imunidade recíproca à ECT, há, no âmago do Pretório Excelso, Ministros que não compartilham dessa tese. É o caso do Ministro Marco Aurélio que, até então, expõe seu posicionamento de modo reiterado em casos semelhantes em trâmite no STF.

Insta salientarmos que o Ministro Marco Aurélio, inclusive, foi relator da ADPF 46,  memorável ação movida pela ABRAED – Associação Brasileira das Empresas de Distribuição em face da ECT com vistas a arguir a não receptividade da Lei

6.538/78, tendo em vista que esta descumpre preceito fundamental da vigente Constituição. Isso porque para a arguente, a ECT não poderia gozar de monopólio/exclusividade quanto ao serviço que presta, sob pena de afronta à livre concorrência e a livre iniciativa, princípios elevados ao status constitucional.

Nesse julgamento, foi traçado um panorama histórico da evolução do Estado Brasileiro no que tange à quebra dos paradigmas liberalistas e do Estado Social, sob o prisma da insuficiência Estatal e da livre iniciativa. Em linhas gerais, o Ministro Marco Aurélio se propõe a aprofundar a análise acerca da ratio essendi da norma constitucional prevista no art. 21, X da Magna Legis[11], se valendo de sua interpretação, para constatar que o fato de competir à União “manter o serviço postal” não impede a livre iniciativa, até mesmo porque a Constituição é passível de mutação que possa conferir-lhe maior efetividade em razão da mudança de um paradigma histórico.

Nessa senda, cumpre destacar a insuficiência do Estado na prestação dos serviços a ele inerentes e da capacidade da iniciativa privada em poder exercer essas atividades em razão do desenvolvimento econômico alcançado pelo país. Ou seja, o Estado no século XX preocupou-se em intervir na economia por duas grandes razões: a) A iniciativa privada, principalmente no que tange à indústria de base (as quais demandam grande investimento), não conseguia adentrar na atividade econômica em razão de seu déficit financeiro e b) O Estado passou a acumular dupla função: além de sua função política, passou a ser um gestor, passou a exercer a prática de atividades até então privativas de particulares.

Com o advento do neoliberalismo e da falência desse modelo interventor de Estado, passou-se a entender que o Estado era grande demais e não conseguia se gerir de maneira eficiente o que acarretou na má prestação das suas atividades. É nesse ponto que se dá o giro hermenêutico, adequando-se a realidade histórica à exclusividade dos serviços prestados pela ECT, ou seja, é aí que se vê a mutação constitucional do quantum positivado na amplitude conferida ao art. 21, X da Lei Maior de modo a se adequar com o atual modelo econômico, onde a iniciativa privada tem condições de exercer a atividade econômica empreendida pela ECT.

É preciso que se diga, no entanto, consoante vimos no julgamento da ADPF 46, que o serviço postal continua sendo de prestação exclusiva da União (em que pese não tenha havido unanimidade no STF), o que não significa, frise-se, que “atividades exercidas pela ECT” serão de competência privativa da União, mas tão somente o serviço postal, entendido por aqueles trazidos no art. 9º da Lei 6.538/78, in verbis:

Art. 9º - São exploradas pela União, em regime de monopólio, as seguintes atividades postais:

  1. - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de carta e cartão-postal;
  2. - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de correspondência agrupada: III - fabricação, emissão de selos e de outras fórmulas de franqueamento postal.

Foi preciso, contudo, uma revisão da linguagem empregada pelo legislador de modo a adequá-la à Constituição, ou seja, é preciso que entendamos a distinção entre o regime de “monopólio” e o de “serviço público exclusivo”, o que o Ministro Marco Aurélio faz com maestria, concluindo que o art. 42 da mencionada Lei abarca tão somente o serviço postal. Veja-se:

ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. EMPRESA PÚBLICA DE CORREIOS E TELEGRÁFOS. PRIVILÉGIO DE ENTREGA DE CORRESPONDÊNCIAS. SERVIÇO POSTAL. CONTROVÉRSIA REFERENTE À LEI FEDERAL 6.538, DE 22 DE JUNHO DE 1978. ATO NORMATIVO QUE REGULA DIREITOS E OBRIGAÇÕES CONCERNENTES  AO  SERVIÇO POSTAL. PREVISÃO DE SANÇÕES NAS HIPÓTESES DE VIOLAÇÃO DO PRIVILÉGIO POSTAL. COMPATIBILIDADE COM O SISTEMA CONSTITUCIONAL VIGENTE. ALEGAÇÃO DE AFRONTA AO DISPOSTO NOS ARTIGOS , INCISO IV; , INCISO XIII, 170, CAPUT, INCISO IV E PARÁGRAFO ÚNICO,E 173 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA LIVRE CONCORRÊNCIA E LIVRE INICIATIVA. NÃO-CARACTERIZAÇÃO. ARGUIÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. INTERPRETAÇÃO CONFORME  À CONSTITUIÇÃO CONFERIDA   AO ARTIGO 42 DA LEI N. 6.538, QUE ESTABELECE SANÇÃO, SE CONFIGURADA A VIOLAÇÃO DO PRIVILÉGIO POSTAL DA UNIÃO. APLICAÇÃO ÀS ATIVIDADES POSTAIS DESCRITAS NO ARTIGO , DA LEI.

  1. O serviço postal --- conjunto de atividades que torna possível o envio de correspondência, ou objeto postal, de um remetente para endereço final e determinado --- não consubstancia atividade econômica em sentido estrito. Serviço postal é serviço público.
  2. A atividade econômica em sentido amplo é gênero que compreende duas espécies, o serviço público e a atividade econômica em sentido estrito. Monopólio é de atividade econômica em sentido estrito, empreendida por agentes econômicos privados. A exclusividade da prestação dos serviços públicos é expressão de uma situação de privilégio. Monopólio e privilégio são distintos entre si; não se os deve confundir no âmbito da linguagem jurídica, qual ocorre no vocabulário vulgar.
  3. A Constituição do Brasil confere à União, em caráter exclusivo, a exploração do serviço postal e o correio aéreo nacional [artigo 20, inciso X].
  4. O serviço postal é prestado pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - ECT, empresa pública, entidade da Administração Indireta da União, criada pelo decreto-lei n. 509, de 10 de março de 1.969.
  5. É imprescindível distinguirmos o regime de privilégio, que diz com a prestação dos serviços públicos, do regime de monopólio sob o qual, algumas vezes, a exploração de atividade econômica em sentido estrito é empreendida pelo Estado.
  6. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos deve atuar em regime de exclusividade na prestação dos serviços que lhe incumbem em situação de privilégio, o privilégio postal.
  7. Os regimes jurídicos sob os quais em regra são prestados os serviços públicos importam em que essa atividade seja desenvolvida sob privilégio, inclusive, em regra, o da exclusividade.
  8. Argüição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente por maioria. O Tribunal deu interpretação conforme à Constituição ao artigo 42 da Lei n. 6.538 para restringir a sua aplicação às atividades postais descritas no artigo desse ato normativo. (STF – ADPF 46)

Nesse mesmo sentido caminha a obra de Eros Grau (GRAU, 2010, p. 139):

Reporto-me à necessidade de apartarmos o regime de privilégio, de que se reveste a prestação dos serviços públicos, do regime de monopólio sob o qual, algumas vezes, a exploração da atividade econômica em sentido estrito é empreendida pelo Estado. Um e outro são distintos entre si.             

Para esse doutrinador, não há que se falar em competição entre prestadores de serviços púbicos, diferentemente do que ocorre no exercício da atividade econômica em sentido estrito. No seu entendimento, inclusive, a prestação de serviço público por estatal não visa precipuamente a obtenção de lucro, mas a satisfação do interesse público.             

Há que se concordar com Eros Grau no que tange a estatal enquanto instrumento de realização do interesse público. Ocorre, no entanto, que tal premissa independe da prestação de serviços públicos ou do exercício de atividade econômica. A estatal sempre exercerá função pública, ainda que empreendedora de atividade econômica em sentido estrito, conforme se pode depreender do próprio art. 173 do Texto Constitucional, isso não a deixaria em situação privilegiada em detrimento às concessionárias e permissionárias de serviços públicos como conclui o mencionado doutrinador (GRAU, 2010, p. 142-143).

Quanto à ECT, delegatária de serviço público postal e que exerce atividade econômica, é preciso que se ressalte que a ela não pode ser concedida a imunidade recíproca, uma vez que isso afrontaria a livre concorrência. Não é outro o entendimento reiterado do Ministro Marco Aurélio:

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Presidente, sem querer corrigir o relator, certamente não há precedente da minha lavra, porque sempre sustentei, no Plenário, que a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, sendo uma pessoa jurídica de direito privado que explora atividade econômica, não está protegida pela imunidade recíproca versada no art. 150, inciso VI, alínea “a” da Constituição Federal, que veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(...)

Não confundo empresa pública, pessoa jurídica de direito privado, com a União, com o Estado, com o Distrito Federal, com o Município. Mas há mais: o artigo 173, ao prever a exploração direta de atividade econômica pelo Estado, contém regra que obstaculariza um verdadeiro privilégio, que seria o tratamento diferenciado das empresas públicas e das sociedades de economia mista. Vem-no do §2º do referido artigo 173:

(...)

Por isso, peço vênia ao relator, reafirmando mais uma vez que não estou aqui em evolução de entendimento, mas reiterando a convicção que sempre tive sobre a matéria, para julgar improcedente o pedido formulado na inicial. (STF - ACO 959 RN)

Desse modo, o artigo 150, §3º veda expressamente a extensão da imunidade recíproca às pessoas jurídicas que exerçam atividade econômica, submetidas ao regime jurídico de direito privado (caso das Estatais) ou, ainda, que cobrem preço ou tarifa em contraprestação à serviço público. Há que se ressaltar também que o art. 173, §2º veda o tratamento diferenciado das estatais em relação à iniciativa privada.

5.4.2. Essencialidade do Serviço Postal

Procurou-se, durante este trabalho, deixar claro posicionamento contrário à extensão da norma imunizante do art. 150, VI, incisos “a”, “b”, “c”, “d” e “e” da Constituição Federal12 às Empresas Estatais (salvo quando essas, em razão de equívoco legislativo, têm natureza jurídica de autarquia. Por isso reconhecemos que uma Estatal, criada com o único fim de prestar serviço público exclusivo ou exercer atividade econômica em regime de monopólio, poderia fazer jus à imunidade, tendo em vista que representaria, como preceitua o mestre Roque Carrazza, uma “longa manus do Estado”.

O fim precípuo de dotar um serviço do caráter de exclusividade é o de concentrar nas mãos das pessoas políticas àqueles serviços cuja natureza possua o status de essencial. Portanto, para averiguarmos a possibilidade de extensão da norma imunizante recíproca à ECT é preciso que verifiquemos se, na ordem econômica vigente, o serviço postal (ainda) é essencial. Não olvidamos de sua relevância, mas entendemos que a ECT gere o serviço postal empresariamente o que, por si só, retiraria dela o status de essencialidade. Tal posicionamento, em que pese minoritário, encontra respaldo na doutrina - já citada - de José dos Santos Carvalho Filho, bem como na opinião do Ministro Marco Aurélio.

Com o advento da globalização e da necessidade de comunicação em escala global, a tecnologia nesse âmbito sofreu grandes avanços. Atualmente as propagandas, faturas, softwares, etc. sofrem um processo de desmaterialização, ou seja, vêm deixando de necessitar de sua remessa física ao destinatário, pois podem ser acessados facilmente na internet, ambiente onde, frise-se, há garantia de segurança e de inviolabilidade, principalmente, no que tange ao uso de Certificado Digital. Muitos dos serviços que outrora necessitavam de Correio, hoje são acessados por via eletrônica e, em alguns casos, até mesmo por via telefônica, onde não há assaltos, extravios,... 

Desse modo, a norma prevista no art. 21, X da Carta Magna, consoante já exposto, sofreu incontestável mutação constitucional, na medida em que sua ratio essendi (essencialidade do serviço postal) perdeu força com o advento do avanço tecnológico no âmbito das telecomunicações.

5.4.3. Monopólio do Serviço Postal

Em que pese ainda haja na doutrina e na jurisprudência quem defenda o “monopólio” do serviço postal, aqui já restou demonstrado a impropriedade etimológica da expressão, tendo em vista que o monopólio, tratado pela CF no art. 177, diz respeito a atividade econômica em sentido estrito. Aliás, até mesmo a lei 6.538/78 se utiliza erroneamente de tal expressão.

Cumpre aqui mencionarmos o debate dos ministros do Pretório Excelso quando do julgamento do RE 229.696, onde o Ministro Moreira Alves e o Ministro Marco Aurélio travaram uma eloquente discussão acerca do monopólio, onde o primeiro defendia o monopólio (com fulcro no art. 21, X da Constituição) e segundo a falta de previsão pelo art. 177 do Texto Constitucional.

Nesse sentido, insta salientar que, com base na doutrina já mencionada de Eros Grau, que o exercício da atividade econômica pelo Estado exercer-se-á quando houver relevante interesse público e de modo a satisfazer imperativo de segurança nacional, requisitos trazidos pelo artigo 173, mas, no caso de monopólio, tais pressupostos devem estar presentes de modo ainda mais acentuado. Note-se, nesse sentido, que a monopolização de atividade econômica de iniciativa privada é potencialmente danosa para esta, motivo pelo qual o artigo 177 traz um rol taxativo das atividades econômicas em sentido estrito nas quais apenas o Estado poderá empreender, quais sejam:

Art. 177. Constituem monopólio da União:

  1. - a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos; 
  2. - a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro;
  3. - a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores;
  4. - o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem;
  5. - a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos cuja produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão, conforme as alíneas be c do inciso XXIII do caput do art. 21 desta Constituição Federal.

Da simples leitura de tal disposto, depreende-se que o serviço postal não é exercido em monopólio pela União, motivo pelo qual deve se sujeitar aos ditames da ordem econômica típicos da iniciativa privada, inclusive, no que diz respeito a livre concorrência.

5.5. O ÓBICE IMPOSTO PELO §3º DO ART. 150 DA CONSTITUIÇÃO

Procurou-se aqui, deixar claro o entendimento de que, apenas em alguns casos, haveria a possibilidade de extensão da norma imunizante às estatais, contudo, há na doutrina entendimento ainda mais radical, como por exemplo o de Ercias Rodrigues (2003, p. 131), para quem:

Desta forma, o só fato de ser remunerado o serviço público pelo particular é suficiente para afastar a imunidade, sendo desimportante se tal serviço vem a ser prestado diretamente pelo ente político ou por meio de transferência, em qualquer das modalidades permitidas pelo direito administrativo, com o que nos distanciamos, respeitosamente, da conclusão, já vista, a que chegou o Professor Roque Carrazza.

Outro não é o (irretocável) entendimento de Hugo de Brito Machado (2008, p. 283) ao comentar o referido dispositivo:

É plenamente justificável a exclusão da imunidade quando o patrimônio, a renda e o serviço estejam ligados a atividade econômica regulada pelas normas aplicáveis às empresas privadas. A imunidade implicaria tratamento privilegiado, contrário ao princípio da liberdade de iniciativa. Ocorre que também não há imunidade quando haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário. Isto quer dizer que um serviço, mesmo não considerado atividade econômica, não será imune se houver cobrança de contraprestação, ou de preço ou de tarifa.             

De fato, é o que se depreende da leitura do parágrafo terceiro do art. 150 da Constituição que foi claro e taxativo ao não admitir a extensão da norma imunizante recíproca a quem cobre preço ou tarifa. Com efeito, ao se dedicar ao estudo fundante da regra que imuniza, percebe-se que se trata apenas de um enunciado que tem uma base em outras normas de cunho fundamental, dando-as efetividade, como, por exemplo, o fim de proteger a cláusula federativa e assegurar a livre concorrência. Aliás, tem-se que o art. 150, §3º possui íntima relação com o art. 173, §2º, veja-se.

5.6. O ÓBICE IMPOSTO PELO §2º DO ART. 173 DA CONSTITUIÇÃO

Consoante já foi amplamente debatido, é preciso que o Texto Constitucional seja interpretado sistematicamente e, por isso, faz-se imperioso que destaquemos que o “poder de tributar” encontra limitações não apenas no âmbito do “Sistema Constitucional Tributário”, mas em toda a unidade da Carta Magna.

Desse modo, se faz clarividente a impossibilidade da extensão da norma imunizante às empresas estatais, tendo em vista que, por praticarem atividade econômica, conforme amplamente exposto, elas devem observância ao princípio da livre concorrência, respeitando a iniciativa privada. É claro que onde não há concorrência (porquanto tratar-se-ia de serviço público) cabe a extensão, até mesmo por conta da supremacia do interesse público e de sua continuidade. Aqui, todavia, não haveria que se falar no art. 173, §2º da Constituição.

Contudo, ao se falar em estatal que, como a ECT, concorre com a iniciativa privada em algumas de suas atividades (v. ADPF 46), não se pode olvidar a impossibilidade de situação fiscal privilegiada, uma vez que nesses casos estar-se-ia diante de ofensa à Constituição.

5.7. HIPÓTESE DE MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL

Segundo JJ Gomes Canotilho mutação (ou transição) constitucional consiste em “revisão informal do compromisso político formalmente plasmado na constituição sem alteração do texto constitucional. Em termos incisivos: muda o sentido sem mudar o texto.” (1999, p. 1153). Esse processo de mudança do sentido do Texto Magno, segundo o mencionado autor, tem seus alicerces fincados na quebra de paradigmas sociais e no impacto da transformação da realidade com a qual interage a Constituição. Obviamente essa mudança social que justifique a mutação de sentido, por mais drástica que seja, não deve contrariar princípios estruturais trazidos pela Lei Maior.

Contextualizando esse conceito com o tema aqui estudado, poder-se-ia firmar entendimento segundo o qual o art. 21, X do Texto Constitucional sofreu inevitável mutação constitucional, tendo em vista que, consoante já exposto, a sociedade sofreu, com o advento tecnológico, mudança de paradigma que justifique a revisão do impacto constitucional causado no que tange à exclusividade da ECT na prestação do serviço postal e congêneres.

Além disso, é possível que haja a ocorrência de tal transformação também no que tange ao desenvolvimento econômico sofrido pelo Brasil, aonde, devido ao modelo neoliberal, a iniciativa privada cada vez mais ganha destaque nos âmbitos econômico e social. Nesse sentido, o art. 173 da Constituição ganha tamanho relevo que abrangeria também empresa estatal ainda que prestadora de serviço público, tendo em vista que o seu modelo de gestão e a cumulação de seu objeto com o exercício de atividade econômica, potencialmente causaria um dano à iniciativa privada que, ressalte-se, ganhou, com o advento do constitucionalismo moderno e da “publicização” da propriedade privada, relevante função social, representativa do interesse público.

Tal processo de transformação poria, de uma vez por todas, um óbice à extensão da norma imunizante recíproca às estatais, mais precisamente à ECT, ou seja, encerraria os argumentos trazidos por quem entende de modo diverso do que, frisese, já decorre de texto expresso da Constituição. Ocorre, contudo, que para alguns, a mudança de sentido do Texto se deu não relação aos artigos 21 e 173 da Carta Magna, mas em relação ao §3º do artigo 150, o que, conforme já exposto, possivelmente não faz sentido. Isso porque tal dispositivo constitucional, além de estar em consonância com o atual paradigma social, demonstra a preocupação expressa e específica do constituinte em tutelar a livre concorrência e proibir exceção à capacidade contributiva, evidenciada mediante a exteriorização de riqueza (lucro) das estatais ao perceberem o fruto de sua atividade empresária: o lucro.

Sobre os autores
Igor Nunes Costa e Costa

Doutorando em Ciências Jurídicas pela UMSA – Universidad del Museo Social Argentino. Especialista em Direito Tributário pelo IBET – Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. Professor das disciplinas Direito Tributário e Direito Empresarial em cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade Anísio Teixeira – FAT em Feira de Santana e de pós graduação no CESB – Centro Educacional do Sudoeste da Bahia, em Vitória da Conquista. Advogado tributarista do escritório Didoné & Garrido Advogados Associados. Autor de artigos científicos e editor-assistente da Revista de Direito da FAT Saber Jurídico.

Ailson Santana Freire Filho

Bacharel em Direito pela Universidade Salvador – UNIFACS. Pós Graduando em Direito Tributário pelo IBET. Advogado tributarista do escritório Didoné & Garrido Advogados Associados

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Igor Nunes; FREIRE FILHO, Ailson Santana. A (in)constitucionalidade da extensão da imunidade recíproca às estatais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4404, 23 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41167. Acesso em: 22 dez. 2024.

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