Nos dias atuais, tornou-se usual o discurso de combate a corrupção como o principal objetivo a se atingir nessa República. O andamento da famigerada operação “lava-jato” aguçou mais ainda o sentimento de revolta a impunidade na sociedade que, em geral, vem demonstrando menor grau de tolerância a atos de corrupção desde que aderiu massivamente aos movimentos sociais voltados a esse tema, vide a participação maciça da população no movimento “vem pra rua”, que desencadeou tantos outros.
De lá pra cá, diversas foram as tentativas de resposta que os Poderes constituídos buscaram dar a essa sociedade que clama pelo que entendem por justiça.
O Poder Executivo lançou seu pacote anticorrupção, o Poder Legislativo passou a discutir a reforma política, a própria Ordem dos Advogados do Brasil lançou seu pacote anticorrupção, Associações Classistas se manifestaram e, mais recentemente, o Ministério Público Federal lançou um pacote de 10 medidas de combate a corrupção amplamente divulgadas pelas redes sociais, mídia social, pelo Procurador Geral da República em sua sabatina de recondução ao cargo e, mais recentemente, no Seminário Internacional de Combate a Lavagem de Dinheiro e ao Crime Organizado ocorrido no Superior Tribunal de Justiça.
O Ministério Público Federal através de seus procuradores, especialmente o Procurador Geral da República e por aqueles designados para atuar na força tarefa da operação “lava-jato”, lançou seu pacote de medidas que visam combater a corrupção através de uma série de alterações legislativas. Para tanto, pretende por meio de iniciativa popular apresentar à Câmara dos Deputados (art. 62, §2º, CF) projeto de lei.
Nesse aspecto, é importante destacar que, em que pese a legitimidade da iniciativa popular no processo legislativo, não passa despercebida a nítida participação do Ministério Público nesse processo em um momento propício a atuação desmedida em substituição ao Poder legitimado, uma vez que a competência legislativa pertence a Câmara dos Deputados e ao Senado Federal, por expressa previsão Constitucional.
A iniciativa popular, apesar de legítima, não me parece o método mais razoável de se legislar quando se vê um povo revoltado com determinados indivíduos e incapacitados de enxergar que eventual mudança legislativa não atingirá esses que desejam a qualquer custo ver punidos, face a irretroatividade da lei penal, mas, sim, futuros alvos das midiáticas operações penais das quais ninguém pode se intitular imune.
O que se pode observar é que através de distorções legais, o Ministério Público tem claramente usurpado competências que não possui. Basta se tomar como exemplo o que tem ocorrido nos termos de delação premiada firmados no âmbito da operação “lava-jato” onde a acusação, de forma velada, utiliza a prisão preventiva como forma de indução a colaboração do acusado e, através do acordo pactuado, decide quem terá o direito a responder o processo em liberdade e quem poderá fazê-lo em prisão domiciliar.
De forma completamente descabida, usurpa-se a competência do juiz natural que tem o único papel de homologar aquilo que já foi negociado e delimitado pela acusação em termo de colaboração premiada firmado com réu preso e suscetível a qualquer tipo de acordo, inclusive, a abstenção do uso de recursos e remédios heroicos contra decisões do juízo.
O fato é que as preocupações com esses procedimentos tem sido alvo de inúmeras manifestações de diversos juristas de renome. O que se tenta a qualquer custo resguardar é o mais basilar direito de qualquer acusado, o direito de defesa, consubstanciado na autodefesa e na defesa técnica do acusado.
Diversas são as inconsistências presentes nas medidas propostas pelo Ministério Público, mas uma delas chama a atenção com destaque por clara afronta a esse sagrado direito de se defender.
A medida nº 9, prevê uma alteração no artigo 312 do Código de Processo Penal, acrescentando uma hipótese de prisão preventiva, para “permitir a identificação e a localização ou assegurar a devolução do produto e proveito do crime ou seu equivalente, ou para evitar que sejam utilizados para financiar a fuga ou a defesa do investigado ou acusado, quando as medidas cautelares reais forem ineficazes ou insuficientes ou enquanto estiverem sendo implementadas.”
A simples leitura do dispositivo em comento demonstra com clareza as violações a direitos e garantias fundamentais, em especial, o direito de defesa.
Explico.
A prisão preventiva que, em tese, pode ser decretada em hipóteses excepcionais e caso sejam insuficientes as demais medidas cautelares previstas no artigo 319 do mesmo Códex, passa a ser manejada também em caso de ineficiência das medidas cautelares reais (sequestro, hipoteca e arresto). As medidas cautelares reais, diferentemente das medidas cautelares pessoais, garantem medidas patrimoniais assecuratórias, ou seja, garantem que o patrimônio adquirido pelo criminoso, de forma lícita ou não, irá reparar o dano causado após a configuração definitiva da culpa.
Ocorre que a única possibilidade de ineficácia das medidas cautelares reais é caso a ordem de patrimonial assecuratória reste infrutífera, ou seja, não se encontre qualquer lastro patrimonial do criminoso apto a assegurar o dano causado.
A partir dessa ineficiência das medidas cautelares reais é que o Ministério Público pretende, a partir da medida nº. 9, retirar do acusado o direito de se defender.
O que pretende o Ministério Público é forçar o acusado a celebrar a delação premiada através da prisão preventiva – prática usualmente utilizada e em total desacordo a voluntariedade da colaboração premiada – e mais, impedir que o acusado constitua advogado de defesa caso a ineficiência das medidas cautelares reais seja incompatível com a atuação do advogado particular em favor do acusado.
Se o acusado não garante a reparação civil do dano causado e tem sua segregação cautelar decretada, por óbvio é vítima de prisão civil por dívida, há tempos declarada inconstitucional e vedada por Tratado Internacional do qual o Brasil é signatário.
A proposta do Ministério Público Federal, consegue em uma só medida restringir o direito de defesa, ressuscitar a prisão civil por dívida e afrontar qualquer juízo de proporcionalidade e excepcionalidade das medidas cautelares previstas na legislação processual penal.
Chegou o tempo de se atentar aos meios utilizados para se alcançar os fins pretendidos. As aparentes boas intenções não podem suprimir direitos e garantias fundamentais conquistadas as duras penas na história, sob pena de nos tornarmos reféns do que um dia acreditamos serem boas intenções.
Exemplo disso é o Projeto de Lei 500/2015 de autoria do Senador José Medeiros (MT) que prevê obrigatoriedade dos réus em ações de improbidade administrativa e por crimes contra a administração pública a comprovar a origem lícita do dinheiro que usam para pagar seus advogados. A pretensão legislativa percorre a mesma esteira da medida nº. 9 acima tratada.
Em completo descompasso com o papel indispensável que o advogado exerce à Administração da Justiça, com o sigilo inerente a relação entre advogado e cliente e com o direito constitucional a ampla defesa, tais situações nos revelam que estamos indefesos contra o que o professor Aury Lopes Junior costuma chamar de “a bondade dos bons”.
Ainda que o momento vivido por essa República exija forte atuação contra os malfeitores da ordem pública, essa caminhada não pode ser trilhada ao arrepio das garantias constitucionais, tolhendo as garantias profissionais do advogado uma vez que de nada adianta o combate a impunidade em inobservância ao Estado Democrático assim como de nada adianta o Estado Democrático sem um efetivo combate a impunidade.