Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Os BRICS no órgão de solução de controvérsias da OMC:

esboço de coalizão anti-hegemônica?

Exibindo página 1 de 2
Agenda 06/01/2016 às 15:53

Como os BRICS atuam no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC? Esse questionamento guia as reflexões dispostas neste artigo, levando à compreensão quanto à concentração não coordenada de esforços na reversão de medidas comerciais protecionistas dos países desenvolvidos.

RESUMO: O objetivo do autor é analisar a participação dos países dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) no sistema de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio, com a finalidade de identificar padrões de comportamento dos cinco países, bem como eventual coordenação na forma de iniciar seus litígios. Como as demandas entre os BRICS são bastante raras, buscar-se-á verificar se essa característica constitui padrão meramente aleatório ou se constitui expressão deliberada do projeto dos países de reforma das instituições econômicas internacionais, conforme expresso nas declarações oficiais dos encontros dos BRICS.

Palavras-chave: BRICS; OMC; solução de controvérsias


1. Introdução

Este paper está dividido em cinco partes. Na primeira, serão fornecidas algumas breves explicações sobre o sistema multilateral de comércio, sobre o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC e sobre a formação do grupo BRICS. A segunda parte consiste da análise do padrão de litígio adotado pelos BRICS no OSC da OMC, o qual se caracteriza pela ausência de contenciosos entre os membros do grupo e a concentração das demandas contra EUA e UE. Na terceira parte, explicar-se-á a razão de parte relevante dos casos iniciados pelos BRICS tratar da temática do antidumping. Uma análise de caso específico será realizada na seção seguinte, a qual é sucedida pelas conclusões do autor.

1.1. Solução de controvérsias na OMC

O sistema de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC), assim como o surgimento da própria organização internacional, na conclusão da Rodada Uruguai, em 1994, é resultado do adensamento de juridicidade (Lafer, 2006), verificado, após o fim da guerra fria, no âmbito do sistema multilateral de comércio. Sem negligenciar a relevância das negociações diplomáticas, as quais continuaram predominantes, criou-se uma forma eficiente e compulsória de resolver, com base em preceitos jurídicos, conflitos comerciais derivados dos acordos firmados no âmbito da OMC (Davis e Bermeo, 2009). Para consecução desse sistema, foi fundamental a adoção da regra do consenso negativo, conforme a qual a instauração de painel judicante é obstada apenas em caso de improvável unanimidade dos integrantes do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC). A ideia de unanimidade invertida despolitizou a fase inaugural de solução de litígios, e possibilitou acesso mais eficiente a julgamentos técnicos e imparciais.

Em linhas gerais, o OSC constitui especialização funcional do Conselho Geral da OMC. Sua competência abarca as seguintes atividades: a) estabelecimento de painéis; b) adoção de relatórios prolatados pelos painéis e pelo Órgão de Apelação (OA), que funciona como instância recursal, para análise de matéria estritamente jurídica; c) supervisão das decisões contidas nos relatórios; d) autorização de concessões originárias de tratados da OMC. Suas principais características são: a) abrangência; b) automaticidade; c) exequibilidade.

Deve-se notar que, mesmo diante da paralisia das negociações comerciais sobre o aprofundamento da liberalização comercial, o OSC continua a funcionar de maneira satisfatória. Em razão disso, subsiste a relevância estratégica da OMC para os Estados desenvolvidos e em desenvolvimento, uma vez que problemas relevantes sobre acordos comerciais abrangentes ainda devem ser solucionados pelo mecanismo de solução de controvérsias da organização multilateral. Os países em desenvolvimento, em específico, apesar de terem, em geral, maior dificuldade de acesso ao OSC, reconhecem a importância do órgão no âmbito do comércio internacional, pensamento expresso nas suas reivindicações por reforma do Entendimento de Solução de Controvérsias.

1.2. BRICS

O termo BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), inicialmente sem o “S”, referente à South Africa, surgiu como simples acrônimo, criado por Jim O’Neill, economista do banco de investimento Goldman Sachs, para designar aquelas, que no seu entendimento, seriam as quatro principais potências emergentes do mundo. Posteriormente, após repercussão favorável nos mercados e entre investidores, o acrônimo foi adotado pelos próprios países constituintes da sigla. Estes passaram a se reunir, periodicamente, em eventos que produzem, tradicionalmente, um documento principal na forma de declaração conjunta, que abarca diversos aspectos de cooperação entre os países, bem como divulga perspectivas acerca de temas importantes das relações internacionais, como sistema financeiro internacional, desenvolvimento, sustentabilidade, paz e segurança. Em momento posterior, a África do Sul foi incorporada ao grupo, que passou a ser conhecido como BRICS.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

No que tange à atuação na OMC, destaca-se que, a despeito do crescente volume de comércio intrabloco, os países constituintes dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), aparentemente, evitam fazer uso do Órgão de Solução de Controvérsia (OSC) para resolverem disputas comerciais entre si, preferindo direcionar suas demandas aos atores desenvolvidos, em especial ao EUA e UE. Esse aspecto torna-se mais relevante se analisada a frequência geral de participação dos países no OSC: três dos BRICS (Brasil, China e Índia) são partes diuturnas nas disputas comerciais do OSC, nas três situações possíveis: demandante, demandado e terceira parte.

País

Demandante

Demandado

Terceiro

Total

África do Sul

0

4

2

6

Brasil

27

15

95

114

China

13

33

121

138

Índia

21

22

85

128

Rússia

4

0

7

11

(Dados disponíveis em www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/dispu_by_country_e.htm. Consultado em 20 de junho de 2015).

Como se observa do quadro, a China é país que mais participa do sistema de solução de controvérsias, pois, além de ser o país mais demandado, é aquele que mais figura como terceiro interessado. O maior demandante dos BRICS, por sua vez, é o Brasil, seguido, respectivamente, de Índia e de China. A África do Sul, apesar de ser membro antigo da organização, quase não utiliza o sistema, característica que, possivelmente, não será observada no caso da Rússia, a qual, no seu primeiro ano, usou o instituto do terceiro interessado por sete vezes.

Desse número de demandas, apenas quatro referem-se a controvérsias entre os BRICS, e as três envolvem a África do Sul (outlier entre os BRICS), aspecto que reforça - em vista do padrão geral de conduta do bloco - a qualidade de exceção desses litígios internos. Nota-se, além disso, elevada seletividade dos BRICS ao iniciarem suas demandas, as quais são direcionadas principalmente aos países desenvolvidos. Das treze demandas iniciadas pela China, nove são contra os EUA e quatro são dirigidas à UE; o Brasil acionou esses dois atores dezessete vezes nas vinte sete demandas que inaugurou; a Índia contestou medidas comerciais de EUA e UE em 75% dos casos que levou ao OSC; e das quatro demandas originadas pela Rússia, três delas são contra a UE. Existe, portanto, claro direcionamento das demandas aos dois principais atores econômicos do mundo desenvolvido.

Em parte, esse padrão de litígio pode ser explicado pelo elevado volume de exportações que os BRICS destinam aos dois atores desenvolvidos, porquanto, em teoria, a intensidade do intercâmbio comercial é diretamente relacionada à probabilidade de divergências entre as partes, correlação bastante óbvia na relação entre EUA e UE. Verifica-se, entretanto, que o volume de comércio entre os membros dos BRICS também é elevado, sem que isso resulte em litígios no interior do bloco, diferentemente do que se observa nas trocas atlânticas entre americanos e europeus. Existe, ao lado disso, evidente desproporcionalidade entre a distribuição do comércio internacional dos BRICS e o padrão de litígio do bloco no âmbito da OMC. O caso chinês é bastante emblemático: EUA e a UE absorvem, em conjunto, apenas 40 % das exportações chinesas, mas são os dois alvos exclusivos de todas as demandas iniciadas pelo país asiático. Para Brasil, Rússia e Índia, ocorre desproporção semelhante, embora com maior variedade dos alvos das demandas. Para esses três países, além disso, a China constitui grande destino de exportações, sem que isso, entretanto, acarrete demandas contra o país asiático.

Com base nessas informações, infere-se que, na escolha das demandas propostas pelos BRICS, existe um padrão específico que não pode ser adequadamente explicado pelo volume e pela distribuição do comércio internacional desses países. Dessa inferência derivam-se os seguintes problemas: em que medida a existência do grupo de concertação política, formado pelos cinco países emergentes e destituído de qualquer mecanismo autônomo de solução de controvérsias, poderia dissuadir seus membros a litigarem entre si no âmbito da OMC? Em outros termos, em que medida, a cooperação pouco formalizada no âmbito dos BRICS explica a baixa litigância entre seus membros na OMC? E, além disso, por que os litígios dos principais países dos BRICS são direcionados principalmente aos EUA e à EU? Haveria deliberada coordenação dos países nesse padrão de litigância comercial?


2. BRICS: coalizão anti-hegemônica?

A literatura tangencia esse tema ao destacar a clivagem política entre países desenvolvidos e países em desenvolvimentos (Narlikar, 2004; 2010), principalmente nas negociações comerciais da Rodada Doha, sem, entretanto, explicar seus efeitos no OSC da OMC. Destaca-se, igualmente, que as diferenças nos padrões de comércio entre países desenvolvidos e em desenvolvimento acarretam divergências mais profundas entre os dois grupos do que no interior destes (Narlikar, 2004). Dessa forma, a despeito do elevado número de demandas entre EUA e UE, explicada, por sua vez, pelo grande volume de comércio bilateral, o eventual litígio comercial entre os dois atores desenvolvidos não indicia grandes diferenças de concepção acerca de temas centrais da economia internacional. Esse diagnóstico, entretanto, fundamentado no fluxo de comércio, não pode ser repetido para o padrão de litigância dos BRICS, o qual é influenciado por aspectos mais qualitativos.

Excluída a explicação baseada no volume de comércio, nota-se que o padrão de litígios entre os membros dos BRICS tampouco se deve a compromissos formais ou informais assumidos no âmbito do grupo de concertação, cuja formação é bastante recente e, portanto, posterior ao início desse padrão de litigância de seus membros, que pode ser observado desde os primórdios da OMC. Portanto, mesmo que a participação no grupo influencie as opções dos cinco membros no âmbito do regime multilateral de comércio, ela é secundária na explicação do comportamento dos países no OSC.

Na realidade, para avaliar esse padrão de litigância dos BRICS, o raciocínio deve ser reformulado: a existência dos BRICS não deve ser tomada como variável explicativa para ausência de litigância entre seus membros, pois ambos são fenômenos congêneres. Esses dois fenômenos, a criação dos BRICS (2008) e a ausência de litigância entre seus membros, resultam ambos da convergência de agendas econômicas dos cinco países em desenvolvimento (Mielniczuk, 2003), especialmente de três deles: China, Índia e Brasil, como explicitado nas declarações conjuntas do bloco, que ocorrem desde 2008. Essa agenda envolve não apenas uma inflexão no processo de regulação do comércio internacional, mas, igualmente, a reformulação das instituições financeiras originárias de Bretton Woods, as quais, no entendimento desses países, não refletem mais a realidade econômica mundial, na qual os países europeus, os EUA e o Japão são os atores mais importantes.

Dessa forma, em razão de concepções diferentes sobre aspectos centrais da economia mundial, o litígio puramente técnico e econômico, como aqueles observados entre EUA e UE, é menos provável no caso de confrontos comerciais entre Norte e Sul. Mesmo que sejam tratados no âmbito regrado do OSC, eles costumam ser contaminados pelo histórico de oposição entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, que se expressa em diversos regimes (e.g. mudança climática, não-proliferação), mas que é especialmente intenso no sistema multilateral de comércio. Portanto, essa clivagem entre países pobres e ricos estrutura as coalizões nas negociações comerciais, consolida-se no princípio do tratamento especial e diferenciado - que perpassa todo o sistema multilateral de comércio-, e influencia o padrão de litigância de alguns países emergentes no OSC, entre os quais os três BRICS mais ativos na OMC.

Esse padrão de litigância, entretanto, não é identificado em todos os países em desenvolvimento. Ele é mais claro entre os grandes países emergentes. A causa dessa heterogeneidade comportamental são as diferenças de capacidade de mobilização do OSC entre os países em desenvolvimento: grandes países, como Brasil, China e Índia, que se engajaram antecipadamente nos litígios comerciais no âmbito do OSC, apresentam vantagens procedimentais (menores custos de transação) em relação a outros países em desenvolvimento (Davis e Bermeo, 2009) e, portanto, podem vocalizar, de maneira não oficial, os interesses mais amplos dos países pobres contra os países ricos.

É importante lembrar que esses três países em desenvolvimento há tempos se destacam como atores importantes do sistema econômico internacional. Eles assumiram, por exemplo, posições importantes nas críticas ao status quo durante o período da guerra fria. A Índia, por meio da liderança do grupo dos países não alinhados, reivindicou recursos a priorização do desenvolvimento, em detrimento da corrida armamentista e do conflito Leste-Oeste. A China, após o cisma com a URSS, aproximou-se do Movimento Não-Alinhado e buscou o desenvolvimento autônomo de seu regime socialista. O Brasil, durante os períodos de Política Externa Independente e de Pragmatismo Responsável, mesmo localizado em zona de influência norte-americana, tentou desvincular a agenda comercial de preferências ideológicas, com o argumento de que essa conduta seria mais favorável ao seu próprio desenvolvimento. Esses países, dessa forma, são atores que, reiteradamente, passaram a problematizar a ordem econômica estabelecida e a atuar de maneira mais coerente com suas necessidades materiais específicas. Os três, por várias décadas, acumularam, portanto, experiência nesse tipo de atuação estratégica, geralmente contrária à predominância política e normativa dos países ricos e frequentemente capaz de vocalizar os interesses mais gerais do mundo em desenvolvimento.

No âmbito específico do sistema multilateral de comércio, esse compartilhamento de objetivos na reforma da estrutura de comércio resulta na coordenação de agendas de negociação na Rodada Doha, como materializado no âmbito do G20 comercial, constituído na Conferência Ministerial de Cancun (Narlikar, 2010). Nesta coalizão, China, Brasil, Índia e África do Sul uniram-se aos seus pares emergentes com finalidade de relançar as negociações em termos mais favoráveis aos países em desenvolvimento, em especial no tema de agricultura.

Em se tratando do mecanismo de solução de controvérsias, a atuação dos BRICS indicia a mencionada concentração de esforços em demandas específicas contra os EUA e a UE, bem como na tentativa não declarada de evitar litígios contra os países em desenvolvimento, mesmo que estes sejam grandes parceiros comerciais. Esses dois atores, dominantes no âmbito das organizações internacionais econômicas, na esfera comercial, defendem liberalização seletiva nos setores em que são mais fortes, mas praticam protecionismo não-tarifário, sob a forma de subsídios e da aplicação constante de medidas antidumping, em proteção a setores tradicionais, que claramente não apresentam mais competitividade (Lohbauer, 2010). Essas práticas que, dentro dos limites normativos dos seus respectivos acordos, são admissíveis, são particularmente prejudiciais aos países em desenvolvimento, pois estes apresentam maiores dificuldades em desfazê-las por meio da negociação direta e pela via quasi judicial do OSC. Os eventuais êxitos nas demandas patrocinadas pelos BRICS nesses temas, por sua vez, podem gerar ganhos coletivos em favor dos países em desenvolvimento, embora, formalmente, as decisões do OSC tenham apenas efeitos inter partes. Por isso, essas demandas buscam reverter sistemáticas medidas unilaterais que, ao excederem os limites admissíveis pelas normas da OMC, assumem natureza protecionista. São objeto frequente de demandas dos BRICS as medidas antidumping (Messerlin, 2004; Thorstensen e Oliveira, 2012), destacando-se também o fornecimento de subsídios, a aplicação de medidas compensatórias e a não observância do tratamento especial e diferenciado. Todos esses temas, por sua vez, estão bastante relacionados ao padrão de comércio dos países em desenvolvimento.

Conforme expresso em declarações conjuntas, os BRICS reconhecem a função relevante do sistema de solução de controvérsias, ainda que reivindique sua reforma[1]. Esse reconhecimento, por sua vez, sugere que o sistema de solução de controvérsias pode desempenhar papel importante no projeto conjunto dos BRICS de revisão das instituições econômicas internacionais, este, sim, um objetivo declarado de seus membros[2]. Existe a clara compreensão, por parte dos BRICS, de que a consecução de nova arquitetura econômica internacional, na qual os membros do grupo possam ocupar posições mais destacadas, requer que estes exerçam o papel de empreendedores normativos. Paralelamente, o grupo está ciente de que, se as negociações comerciais encontram-se paralisadas em razão da falta de entendimento entre os Estados, o sistema de solução de controvérsias continua em funcionamento, interpretando as normas estabelecidas, direcionando a jurisprudência e, em última instância, produzindo normas para casos específicos. A participação nesse sistema, portanto, torna-se relevante nas suas ambições de produção normativa.

Sobre o autor
Mauro Kiithi Arima Junior

Bacharel em Direito e Relações Internacionais pela USP. Especialista em Direito Político, Administrativo e Financeiro pela FD USP. Especialista em Política Internacional pela FESPSP. Mestre em Direito Internacional pela USP. Doutor em Direito Internacional pela USP. Advogado, professor e consultor jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KIITHI, Mauro Arima Junior. Os BRICS no órgão de solução de controvérsias da OMC:: esboço de coalizão anti-hegemônica?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4571, 6 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45628. Acesso em: 22 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!