Sumário: 1. Introdução; 2. As alterações promovidas pela Comissão Itamaraty; 3. A nova proposta na Constituinte de 1934; 4. O Limite do número de Deputados nas Constituições de 1946 e 1988; 5. Conclusão; 6. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
A Constituição de 1988 passou a ser alvo de fortes críticas quanto ao enfraquecimento da democracia, por impor diferenciações entre os eleitores das unidades federativas, em especial entre os dos Estados mais populosos e os dos entes de menor população. De encontro ao princípio da isonomia, trazido em seu artigo 5º, foram criados cidadãos dotados de voto com valor diferenciado. Em consequência, temos, por um lado, estados sub-representados, enquanto, de outro, temos os sobre-representados, gerando uma distorção que conflita com os pressupostos da federação. O grande culpado residira na opção do constituinte em posicionar a regra da representação máxima de 70 deputados sobre a representação proporcional, como evieencia a redação do § 1º, artigo 45, da nossa atual Carta Magna. Esta concepção, no entanto, precisa de um debate mais aprofundado. Na verdade, não estamos diante de um problema surgido no pós-1988, pois as raízes desta questão remontam às discussões sobre a composição da Câmara dos Deputados, desenvolvidas na constituinte de 1934.
A Constituição de 1824, sob inspiração inglesa, estruturou um Poder Legislativo bicameral. Passávamos a ter uma Câmara dos Deputados e um Senado. No entanto, competiu à legislação infraconstitucional definir o número de deputados por província, sendo o número de senadores sempre metade daquele quantitativo.
A Constituição de 1891, sob inspiração norte-americana, também adotaria o bicameralismo, no Poder Legislativo. No entanto, o número de senadores passava a ser fixo e igual para todos os Estados da federação. A Câmara de Deputados, por ser a casa dos representantes do povo, deveria ter uma composição proporcional à população. Seguindo esta lógica, os estados mais populosos passavam a ter bancadas proporcionalmente mais numerosas que os estados menos populosos. Mas, o § 1º do artigo 28, refletindo a Seção II, artigo 1, da Constituição americana, fixou o mínimo de quatro deputados, por estado, independentemente da população. Esta regra introduziu claras distorções, pois entes com população ínfima, que deveriam ter apenas um representante, passaram a ter a sua representação legislativa quadruplicada. Na prática, artificialmente, aumentou-se a bancada de unidades federadas, sem que houvesse aumento populacional.
A situação será agravada, em 1934, em face da proposta de extinção do Senado. Como, a princípio, haveria apenas a Câmara de Deputados, defendeu-se a limitação do número máximo de representantes nesta Casa legislativa, de forma a evitar que os estados mais populosos dominassem a política nacional. Em consequência das alterações introduzidas nas regras constitucionais, houve sensível enfraquecimento da isonomia no valor do voto.
2. AS ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA COMISSÃO ITAMARATY
A Comissão Itamaraty, reunida em 1932, por Decreto de Getúlio Vargas, para a elaboração do anteprojeto constitucional, desenvolveria importante debate sobre o número de deputados por ente da federação. Integravam a mesma relevantes políticos e juristas da época, como Agenor de Roure, Oswaldo Aranha, José Américo, Oliveira Viana, dentre outros.
Desde a Constituição de 1891, adotávamos o princípio de termos um deputado por setenta mil habitantes.[1] Havia um problema muito grande nesta fórmula, em consequência da reforma eleitoral promovida pela Lei Saraiva, da época do Império, que negava aos analfabetos o direito de voto. Em consequência da exclusão dos que não sabiam ler e escrever, passou a haver um abismo enorme entre o número de habitantes e o número de eleitores, que se acentuava nos Estados onde a educação era mais deficitária.
Para termos uma ideia do tamanho da questão, o Brasil contava, em 1934, com aproximadamente 40 milhões de habitantes, dos quais, oitenta por cento não eram eleitores, por serem analfabetos. Dos oito milhões restantes, subtraía-se os menores e as mulheres (eleitores facultativos desde 1932). Ao final, chegávamos a apenas pouco mais de dois milhões de eleitores obrigatórios. Em consequência deste quadro, poderíamos ter Estados com muitos deputados, mas eleitos por um número de eleitores muito reduzido.
No entanto, um expressivo problema surgirá quando a Comissão Itamaray, alinhando-se ao modelo unicameral da Constituição de Weimar, resolveu pela extinção do Senado, que garantia uma representação igualitária aos estados da federação. Em consequência, haveria a necessidade de mudança na composição da Câmara, para afastarmos o domínio dos estados menores pelos maiores.
Como solução ao problema, Agenor de Roure propôs a fixação do número máximo de deputados a integrarem a Câmara federal, nos seguintes termos:
Art. O número de deputados será fixado por lei, em proporção que não excederá de um por trezentos mil habitantes, não devendo esse número ser inferior a quatro por Estado e superior a 150 no total.
Oswaldo Aranha propôs que, além da limitação de um máximo geral e de quatro deputados, no mínimo, por unidade da federação, deveria haver a proporcionalidade do número de deputados ao número de eleitores, não ao de habitantes.[2] Citou o caso do Rio Grande do Sul que detinha um dos maiores números de eleitores do país, mas era ultrapassado por outros estados. Na defesa de sua proposta, destacou:
Nada explica que um Estado com 100 mil eleitores, eleja 32 representantes e outro que leve as urnas 300 mil, só eleja 14! Isso que é violar o sistema democrático. Era o que ocorria na antiga Câmara dos Deputados. São Paulo com 96 mil eleitores, elegia 22 deputados e o Rio Grande do Sul, com 136 mil, na mesma eleição, dava apenas 16! É um absurdo contrário ao princípio democrático. O que se torna necessário é corrigir, a não ser que se pretenda dar voto aos analfabetos. (Azevedo, 1933, p. 365)
Oliveira Viana, Antonio Carlos e José Américo votaram contra a fixação do número de deputados em função do eleitorado. A favor da proposta de Aranha, tivemos Prudente de Moraes, João Mangabeira e Gois Monteiro.
João Mangabeira avaliou como muito baixo o limite máximo de cem deputados, devendo este número, na sua opinião, ser elevado para, no mínimo, 212, quando muito a 200. Antonio Carlos propôs a imposição de um representante para cada 150 mil habitantes, o que elevaria o quantitativo de deputados. Carlos Maximiliano propôs um para cada 180 mil habitantes. Roure propôs, então, nova redação para seu artigo:
Art. O número de representantes será fixado pelo Congresso Nacional, na proporção de 1 por 200 mil habitantes, não podendo ser inferior a 4 por Estado e não podendo ser superior a 250, na Assembleia Nacional.
José Américo defendeu que a proposta de limitação do número máximo de deputados implicaria em enfraquecimento da democracia. Góis Monteiro propôs uma redação diferente, fixando número mínimo de 5 e máximo de 20, por Estado. Deixaria de existir um teto geral para a Câmara dos Deputados e o limite passaria a ser aplicado a cada unidade federativa. Esta proposta acabaria sendo aprovada na comissão. Ao final, o texto do anteprojeto constitucional adotou a fórmula que impunha o teto máximo para o número de representantes do povo, nos seguintes termos:
Art. 22.
§ 1º. O número de deputados será proporcional à população de cada Estado, não podendo todavia nenhum eleger mais de 20 e menos de quatro representantes.
3. A NOVA PROPOSTA NA CONSTITUINTE DE 1934
A proposta do anteprojeto, ao ser recebida pela Assembleia Constituinte de 1933/34, despertou forte oposição por parte dos representantes dos estados mais populosos. Os políticos dos dois Estados com maior número de habitantes (Minas Gerias, com quase 8 milhões, e São Paulo, com cerca de 7 milhões) logo concluíram que a proposta implicaria a perda de expressivo poder político, pois suas bancadas seriam fortemente reduzidas. O deputado mineiro Bias Fortes destacou que a regra, na verdade, propõe que a minoria controle a maioria. Os estados menores, pelo contrário, enxergavam, na proposta, o aumento do seu poder decisório no Legislativo.
A Comissão dos 26, encarregada de consolidar as emendas ao anteprojeto da Comissão Itamaraty, deliberou quanto ao assunto na sessão de 29 de janeiro de 1934. Havia dois relatores para elaborar o texto sobre o Poder Legislativo: Odilon Braga, por Minas Gerais, e Abel Chermont, pelo Pará. O representante mineiro ficou claramente contra a proposta do anteprojeto, que considerou, em seu parecer, como inconstitucional e arbitrária:
Suprimindo o Senado, teve a subcomissão que adotar uma providência arbitrária e injurídica para resolver o delicado problema de equiparação da representação dos grandes e dos pequenos estados: fixou um mínimo de quatro para este e o máximo de vinte para aqueles. Diversas são as emendas modificando esses limites, mas conservando-os. O que não se pode admitir – repita-se – é a fixação simultânea de um máximo e de um mínimo o que equivale à soma virtual de duas injustiças, a saber, a de aumentar arbitrariamente a representação dos pequenos estados e a de se reduzir arbitrária e concomitantemente a dos grandes. A fixação simultânea de um mínimo e um máximo para a representação dos estados não se poderá explicar jamais à luz de qualquer teoria democrática de representação política. Terá que ser puramente arbitrária, injurídica e antirrepublicana. Um dos princípios básicos da democracia é o da igualdade de todos perante a lei, sobretudo perante a lei política. Um dos princípios básicos da democracia é o da igualdade de todos perante a lei, sobretudo perante a lei política. (Anais, vol. X, 1935, p. 288)
Ao final, a luta entre as bancadas dos grandes e dos pequenos estados seria traduzida pela adoção de uma regra híbrida. Até 20 deputados, seria observada a proporcionalidade do número de deputados em relação à população. A partir de então, a eleição de novos deputados seria dificultada, pela exigência de um maior poder político. A redação final do substitutivo ficaria nos seguintes termos:
Art. 37. O número de representantes será fixado por lei e os do povo em proporção que não excederá de um por 150.000 habitantes, até o máximo de 20, e deste para cima, de um por 250.000 habitantes.
O deputado pelo estado do Rio de Janeiro, César Tinoco propôs, no entanto, a volta do teto, impondo-se o máximo de 25 deputados por unidade federativa e o coeficiente de 100 mil habitantes por deputado. Como justificativa, ressaltou que, com a possibilidade de extinção do Senado e com a possibilidade de adoção da eleição indireta para Presidente da República, havia risco real de volta da política do café com leite, através do domínio dos estados mais populosos sobre os menos populosos. Destacamos sua manifestação plenária:
Se fosse assim, com a existência do Senado, não haveria esse perigo que vejo agora; e – vamos dizer, com sinceridade de homem para homem, com sentimento de brasileiros – na hora em que a bancada mineira se tronasse ainda maior do que atualmente e o Estado de S. Paulo adquirisse, na proporção em que cresce a sua população, a mesma potência da bancada mineira, não sairia mais nenhum Presidente da República, a não ser de S. Paulo e Minas, no revezamento permanente que já se deu. (Anais, 1935, vol. V, p. 176)
Bias Fortes, deputado por Minas Gerais, em oposição, retrucou Tinoco, no plenário, aduzindo que “V. Ex. está querendo que três eleitores de Minas valham por um em outro Estado, o que não é possível.”. Vergueiro César, deputado por São Paulo, também contestou, afirmando que “V. Ex. não acha justo que São Paulo tenha representação proporcional a sua população? Os que nascem em São Paulo, não merecem direitos iguais aos dos demais brasileiros?”.
De fato, a proposta de Tinoco implicaria em mudanças profundas. Por exemplo, o Estado do Rio de Janeiro, ao qual pertencia o constituinte, dotado de 2 milhões de habitantes, teria 20 deputados, pois a regra fixava um representante a cada cem mil pessoas. Minas Gerais, no entanto, com 8 milhões, ao invés de oitenta deputados, teria apenas 25.
Colocada em votação, a emenda de Tinoco não conseguiu a votação necessária para ser adotada. No texto final da Constituição de 1934, o número de deputados manteria a limitação nos termos fixados pela Comissão dos 26, como evidencia o seu artigo 23:
Art. 23.
§ 1º. O número de deputados será fixado por lei: os do povo, proporcionalmente à população de cada Estado e do Distrito Federal, não podendo exceder de um por 150 mil habitantes até o máximo de 20, e deste limite para cima, de um por 250 mil habitantes; os das profissões, em total equivalente a um quinto da representação popular. Os Territórios elegerão dois Deputados.
Mesmo com a não aprovação, mudaríamos, de forma expressiva, a proporcionalidade da representação popular do país. O Senado continuava a ter o mesmo número de representantes por unidade federativa. A Câmara deixaria de ter abismos entre o tamanho das bancadas e caminharia para uma maior isonomia de poder político entre os entes federados. Os estados menores foram, certamente, os grandes vencedores.
4. O LIMITE DO NÚMERO DE DEPUTADOS NAS CONSTITUIÇÕES DE 1946 E 1988
A Constituinte de 1946, inicialmente, adotou a mesma fórmula da Constituição anterior, mantendo o quadro de representação desigual entre os estados mais populosos e os com menos habitantes. No entanto, haveria forte agravamento das distorções existentes. Isto porque sobreviria a Emenda Constitucional nº 17/65, que elevaria o mínimo de deputados, por estado, para sete, e reduziria o teto máximo, ao aumentar o número de eleitores necessários para o crescimento da bancada. A nova regra trazia a seguinte redação:
Art. 58. O número de Deputados será fixado, por lei, em proporção que não exceda de um para cada trezentos mil habitantes, até vinte e cinco Deputados, e, além desse limite, um para cada quinhentos mil habitantes.
§ 1º - Cada Território terá um Deputado, e será de sete Deputados o número mínimo por Estado e pelo Distrito Federal.
Por fim, a Constituição de 1988 introduziria a mudança mais agressiva, ao ressuscitar a proposta do anteprojeto da Comissão Itamaraty, impondo um teto absoluto para o número de deputados. A nova regra ficaria inscrita no § 1º, artigo 45:
Art. 45. A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos, pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal.
§ 1º O número total de Deputados, bem como a representação por Estado e pelo Distrito Federal, será estabelecido por lei complementar, proporcionalmente à população, procedendo-se aos ajustes necessários, no ano anterior às eleições, para que nenhuma daquelas unidades da Federação tenha menos de oito ou mais de setenta Deputados.
5. CONCLUSÃO
A regra da proporcionalidade de representação mitigada pela imposição do número máximo de deputados por estado foi adotada, na íntegra, pela Constituição de 1988. Torna-se paradoxal que a denominada Constituição cidadã tenha, na verdade, imposto o voto com valor diferenciado entre os eleitores dos estados brasileiros. Torna-se discutível que um modelo considerado, em 1934, como dotado de duvidosos contornos constitucionais, além de mostrar-se antidemocrático, tenha sido ressuscitado meio século depois, pela constituinte de 1987. Este quadro mostra-se ainda mais conflitante, se considerarmos que as duas justificativas para a imposição do número máximo de deputados, utilizadas pela constituinte da década de 30 (o fim do Senado e a necessidade de evitarmos o domínio presidencial de Minas Gerais e São Paulo), não estavam mais presentes em 1988. Como, hoje, propostas de alteração no texto constitucional que tendam a enfraquecer o federalismo não são possíveis, inexistem perspectivas de que a atual distorção no número de representantes por estado venha a ser alterada, ou mesmo que se aproxime de um modelo mais isonômico.