O golpe de 2016 produziu uma situação bastante curiosa. Prescreve a CF/88:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
Art. 12. São brasileiros:
I - natos:
a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país;
b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil;
c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 54, de 2007)
II - naturalizados:
a) os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral;
b) os estrangeiros de qualquer nacionalidade, residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira.(Redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 3, de 1994)
§ 1º Aos portugueses com residência permanente no País, se houver reciprocidade em favor de brasileiros, serão atribuídos os direitos inerentes ao brasileiro, salvo os casos previstos nesta Constituição.(Redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 3, de 1994)
§ 2º A lei não poderá estabelecer distinção entre brasileiros natos e naturalizados, salvo nos casos previstos nesta Constituição.
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
O sistema constitucional brasileiro é bastante simples: o poder político deriva da soberania popular e só pode ser exercido mediante eleições em que os votos de todos os brasileiros tem o mesmo valor jurídico. Não há possibilidade constitucional de estabelecer distinção entre os eleitores (em razão do nascimento, religião, sexo, profissão, convicções políticas ou situação econômica). Também não existe diferença entre eleitos e eleitores, razão pela qual os primeiros devem respeitar as decisões eleitorais dos últimos. Não foi o que ocorreu em 2016.
O golpe sob aparência de Impedimento estabeleceu uma clara distinção entre deputados/senadores e os eleitores que atribuíram o mandato presidencial. A soberania popular foi claramente desrespeitada, produzindo-se uma verdadeira capitis diminutio política. Os brasileiros podem votar, mas a decisão deles não precisa mais ser respeitada pelos deputados/senadores. Os parlamentares podem escolher respeitar ou não o mandato atribuído ao presidente eleito pelo povo.
Portanto, após o golpe de 2016 a cidadania foi cindida em duas no Brasil. Apenas os deputados/senadores são brasileiros tem cidadania plena e podem atribuir mandato presidencial. Os demais brasileiros não tem cidadania política, tanto que 54 milhões de votos dados a Dilma Rousseff foram sumariamente rasgados por uma conspiração envolvendo parlamentares, pastores, imprensa e Ministros do STF. Voltamos, portanto, aos tempos do Império, cuja constituição fazia uma clara distinção entre os cidadãos brasileiros livres (os ricos tinham direito de votar e de ser votados; os pobres não tinham direito a voto). Índios e negros não eram cidadãos e, portanto, não podiam ter direitos políticos.
Ao estudar a situação dos cidadãos romanos durante o Império Paul Petit afirma que:
“Durante muito tempo se discutiu, finamente, o relacionamento entre o novo cidadão e sua antiga cidade. Os autores clássicos, como Mommsen, acreditaram que o novo cidadão perdia seu antigo direito de cidadão local adquirindo o direito de cidadão romano, e que era contrário à dignidade de Roma o fato de se poder ser ao mesmo tempo cidadão da Urbs e de uma obscura cidade grega. Na verdade, a cidadania romana está saindo então do quadro cívico primitivo e equivale a uma espécie de 'nacionalidade de Império', sendo a cidade de Roma a cidade ideal de todos, o símbolo da unificação. O novo cidadão possui, portanto, seus laços com a antiga pátria; e sobretudo, o que é essencial, permanece sujeito aos encargos locais que seu nascimento lhe impunha antes da naturalização. F. De Visscher ligou seu nome à solução deste problema. Um texto novo já célebre, embora não inteiramente elucidado, permite pensar que alguns chefes locais, promovidos a cidadãos romanos, conservavam igualmente o benefício do jus gentis.” (A Paz Romana, Paul Petit, Edusp, São Paulo, 1989, p. 250/251)
Sem querer os deputados/senadores golpistas criaram uma dupla cidadania. Os verdadeiros brasileiros (deputados/senadores que escolhem o presidente ou depõe o presidente escolhido pelo povo) tem apenas uma cidadania. Os brasileiros comuns cujos votos podem ser rasgados pelos verdadeiros brasileiros, receberam uma dupla cidadania. Eles são quase brasileiros, mas podem voltar a ter a mesma existência política que índios e negros tinham antes da proclamação da República. Durante a vigência da Constituição do Império os índios somente tinham vida política dentro de suas aldeias. Os negros-coisas tinham algo semelhante nas senzalas.
Os brasileiros comuns foram devolvidos às suas raízes ancestrais. Os descendentes de índios e de negros voltaram a ficar sob a tutela de um Estado comandado exclusivamente por uma casta que concentra os poderes políticos. Não podemos mais decidir os destinos da nação, privilégio atribuído pelo STF apenas aos verdadeiros brasileiros.
Após o golpe de 2016 os brasileiros comuns ainda podem torcer nos estádios e opinar na internet sobre qual seria o melhor técnico para a seleção brasileira. Também podem xingar os juízes nos estádios de futebol e disputar coisas relevantes como partidas de dominó no botequim da esquina e votar em eleições sindicais e concursos carnavalescos. Aos brasileiros comuns foi garantido o sagrado direito de selecionar o canal de televisão que preferem ver, mas em todos eles receberão a mesma coisa: propaganda em favor do novo regime criado pelos verdadeiros brasileiros e notícias negativas em relação aos representantes dos brasileiros comuns que foram depostos e presos.
A ausência de um espaço comum para a política entre brasileiros comuns e verdadeiros brasileiros vai resultar em instabilidade e, eventualmente, em revolução. Pequena perda direi quando os donos do Estado, seus pastores e jornalistas começarem a ser queimados vivos dentro dos templos evangélicas e das redações das empresas de comunicação.