1 INTRODUÇÃO
Essa monografia consiste em uma análise acerca das diversas Escolas de Lógica Jurídica que construíram várias técnicas de argumentação e de interpretação das normas jurídicas ao longo da história da Teoria Geral do Direito ocidental.
Além disso, a pesquisa utiliza como modelo os julgados do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 4.277/Distrito Federal e na ADPF nº 132/Rio de Janeiro, a fim de detectar as influências, às vezes expressas, outras vezes tácitas, de determinadas técnicas de argumentação oriundas de Escolas de Lógica Jurídica.
Desse modo, aqueles que tiverem acesso a ela poderão adquirir uma visão geral sobre as diversas maneiras pelas quais a linguagem do direito se fenomeniza. Daí, a razão pela qual o título dessa monografia ser: “As Lógicas do Discurso Jurídico e Aplicações Práticas nos Julgados do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 4.277/Distrito Federal e na ADPF nº 132/Rio de Janeiro”.
Assim, a motivação principal para a construção deste trabalho foi a de suscitar e estimular o debate acadêmico sobre a indispensabilidade, atribuída por grandes juristas – tais como Perelman, Alexy, Siches, etc. –, aos instrumentais lógicos da argumentação jurídica e a premência de que os currículos das faculdades de direito parem de ignorá-los.
Além disso, a opção pela utilização do julgado do Supremo Tribunal, por meio do qual se reconheceu as uniões homoafetivas como instituto jurídico, deu-se em virtude de ser um modelo que representa bem a tensão entre minorias e maiorias em um ambiente democrático. Neste cenário, em virtude da inércia do Poder Legislativo, o Poder Judiciário é convocado a garantir o ideal do Estado Democrático de Direito: satisfazer aos interesses da maioria sem, contudo, oprimir e reprimir os interesses das minorias, garantidos constitucionalmente.
Desde já, intenta-se esclarecer ao leitor que este trabalho foi elaborado com a finalidade de responder às seguintes indagações:
1) Existe uma lógica peculiar ao discurso jurídico, de modo que se pode denominá-la, com segurança, de lógica jurídica, ou, do ponto de vista técnico, é melhor dizer que na verdade existem lógicas jurídicas?
2) E se elas existem, como verificar, os seus usos, de modo prático, pelo Supremo Tribunal Federal, nos julgados da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277/Distrito Federal e da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 132/Rio de Janeiro?
A fim de responder às questões mencionadas, optou-se, nesta monografia, pelo uso do método de abordagem fenomenológico de Husserl[1], isto é, ao se aplicar a époche ou a redução fenomenológica, o autor deste empreendimento científico, busca suspender os seus juízos de valor, a fim de estudar o discurso jurídico com o máximo de objetividade e neutralidade possíveis, pois, ainda que sejam ideais contra fáticos, eles serão perseguidos como telos fundamental de modo constante em todo o trabalho.
Procura-se, em toda a monografia, apresentar uma sequência lógica que favoreça aos leitores uma compreensão geral, mas, ao mesmo tempo robusta, da peculiaridade da Lógica Jurídica e das principais Escolas de Lógica Jurídica formais e não formais. Para tanto, faz-se um estudo introdutório sobre a lógica jurídica, almejando uma generalização do fenômeno analisado e de como se dá a sua aplicação prática a partir de um estudo de caso.
Nesse sentido, organizou-se estre trabalho desta forma: no primeiro capítulo, “Existe uma Lógica Jurídica?”, tenta-se responder a questão acerca da existência ou não de uma lógica jurídica autônoma em face lógica formal e em qual paradigma filosófico ela está inscrita. Além disto, apresentam-se as características principais da lógica jurídica, distinguindo-as, expressamente, das da lógica formal, evidenciando, por conseguinte, as suas peculiaridades. E desconstrói-se toda e qualquer forma de redução da lógica jurídica, sejam as lógicas formais ou as lógicas não formais.
No segundo capítulo, “As Lógicas Jurídicas”, demonstra-se que, na verdade, o que se costuma chamar de Lógica Jurídica se desdobra em várias Lógicas, as quais, neste trabalho, se classificam em dois grandes grupos hermenêuticos: Hermenêutica Literária Formal (defendidas por autores como: Bonnecase, Austin, Windscheid, Von Wright, Hans Kelsen, etc.) e Hermenêutica Material Histórico-Sociológica (representada por autores como: Savigny, Ihering, Geny, Kantorowisz, Pound, Heck, Cossio, Siches, Wolkmer, Wiehweg, Perelman, etc.). Destacam-se, ainda, as principais categorias das diversas escolas de lógicas jurídicas que foram construídas ao longo dos tempos e as teorias gerais do direito que as fundamentam.
Nesse ponto, o autor empenhar-se-á em mostrar que, sobretudo, do ponto de vista pragmático, quanto ao grau de importância e eficiência, não existe uma hierarquia entre as lógicas jurídicas, uma vez que, em circunstâncias específicas e contextos diferentes, elas podem ser igualmente eficazes.
No terceiro e último capítulo, intitulado “Análise do uso das Lógicas Jurídicas nos Julgados do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 4.277/Distrito Federal e na ADPF nº 132/Rio de Janeiro”, usa-se como modelo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconheceu as uniões homoafetivas como instituto jurídico. A finalidade deste capítulo é mostrar como as lógicas jurídicas analisadas nesta monografia, transitam nas fundamentações dos votos dos ministros da Suprema Corte, desvelando-se, em um caso prático, e como todas elas se fazem presentes nos discursos jurídicos.
Dessa forma, por meio dessa trajetória, objetiva-se analisar a autonomia da lógica jurídica, de modo a evitar os riscos do reducionismo desta à lógica formal e outras espécies de reducionismos lógicos. Além disto, visa-se mostrar que quando a lógica jurídica é entendida como fundamentada em teorias da argumentação e, portanto, do diálogo aberto, tolerante e reciprocamente respeitoso entre maiorias e minorias, faz-se a opção por um regime político não apenas formal, mas materialmente democrático.
2 EXISTE UMA LÓGICA JURÍDICA?
A questão que se tenta responder acerca da existência da lógica jurídica traduz-se como uma investigação da sua natureza comunicacional e visa a uma tomada de posição acerca da problemática que questiona se existe uma lógica jurídica autônoma ou se há apenas a lógica formal aplicada ao discurso do direito. Portanto, implica na busca de solucionar uma questão ainda mais original: como se dá a forma comunicacional da linguagem jurídica?
A linguagem do direito expressa uma diversidade de formas específicas da comunicação humana e, por isso, para se compreender a sua constituição ontológica, é necessário que se faça uma análise fenomenológica de como a sua forma de discurso é produzida e por intermédio de quais lógicas ela pode ser comunicada, interpretada e produzir efeitos.
De modo geral, a lógica é entendida como ciência da inferência e da justificação racional, de sorte que se divide em duas espécies: a) Lógicas Formais, baseadas em teorias da demonstração e da racionalidade; e b) Lógicas não Formais, fundamentadas em teorias da argumentação e da razoabilidade. Ambas, em seus campos limitados de aplicação, visam evitar, no uso da linguagem, o império das falácias, das práticas discricionárias e casuísticas, do arbítrio subjetivo e anárquico. Deste modo, pode-se definir Lógica como:
[...] um instrumental usado pela razão, para demonstrar, e justificar determinados enunciados da linguagem. Costuma-se defini-la como “a ciência da inferência”. Seu objeto de estudo (os enunciados, elaborados em linguagem natural ou simbólica) se exaure dentro das fronteiras da racionalidade. A Lógica analisa os processos, explicativos e comprobatórios, mediante os quais o homem, como ser racional, elabora mecanismos inferenciais conclusivos, deduzidos a partir de informações verdadeiras dadas pelas demais ciências, bem como avalia a legitimidade dos processos de decisão intervenientes.
A lógica não é, portanto, somente “ciência da inferência” mas também ciência da “justificação racional”, instrumento de controle da presença da racionalidade nos enunciados inferidos. A Lógica não fala “das coisas”, mas dos “enunciados” que falam das coisas. Pressupõe-se que alguém (as demais ciências) fale das coisas, pois o que não é dito, o que não é enunciado, não é objeto de análise lógica. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 29).
Assim sendo, a hipótese deste trabalho é a de que a lógica jurídica existe, pois o discurso jurídico além de ser resultado de um raciocínio justificante das posições adotadas em face de um caso concreto, fundamenta-se nas teorias da argumentação e da razoabilidade, sem, contudo, desprezar e deixar de abranger o arsenal lógico das teorias da demonstração e da racionalidade, uma vez que, as lógicas não formais, quando consideram apropriada a satisfação de seus interesses pragmáticos, utilizam as estruturas essenciais das regras de argumentação das lógicas formais. Assim, o jurista terá que estudar tanto uma como a outra forma de procedimento lógico, para atingir a sua finalidade de organizar racionalmente as suas ideias, de modo a elaborar um discurso eficiente e capaz de razoabilidade[2], justificar as decisões judiciais tomadas e convencer o auditório[3] competente a emitir juízos jurídicos favoráveis à opinião jurídica defendida.
Ante o exposto, comentar-se-á adiante a respeito da lógica jurídica, a partir do novo paradigma filosófico, o da linguagem, e depois serão delimitadas as diferenças entre lógica jurídica e lógica formal.
2.1 A lógica jurídica a partir do paradigma da linguagem
Do ponto de vista filosófico, superou-se, hodiernamente, a perspectiva moderna de mundo, alicerçada no racionalismo de vertentes empirista e racionalista. Ela estava baseada no princípio filosófico da subjetividade e no paradigma da consciência[4], de sorte que, em virtude da crença de que o ser humano poderia encontrar um método de análise do objeto imune aos erros, preconceitos, pré-juízos, etc., pensava-se que se poderia chegar a um conhecimento baseado em certezas absolutas e evidentes.
Como as demais formas de conhecimento, o direito também foi contagiado por essa mentalidade e pensou-se, por muito tempo, que utilizando o método analítico-lógico-formal e a hermenêutica gramatical, o juiz, como aplicador do direito, poderia ter acesso objetivo, neutro e radicalmente imparcial à vontade da lei e do legislador, de modo a aplicar a lei ao caso concreto, sem correr o risco de inovar a ordem jurídica, de lesar a segurança jurídica e o princípio da separação dos poderes. Como preleciona o filósofo belga:
O ponto de vista que se impôs durante os séculos que viram o triunfo do racionalismo foi o de Montesquieu, tal como expresso no início de sua grande obra, O espírito das leis: “Dizer que não há nada de justo ou de injusto senão o que ordenam ou proíbem as leis positivas é dizer que, antes que se houvesse traçado o círculo, nem todos os raios eram iguais. Cumpre, pois reconhecer relações de equidade anteriores à lei positiva que as estabelece”. Em virtude da doutrina da separação dos poderes, que proíbe aos juízes qualquer papel na formulação das leis, estes serão “apenas a boca que pronuncia as palavras da lei” (O espírito das leis, 1ª parte, LXI, cap. 6). Os juízes não têm de opor ao legislador a concepção de justiça deles: suas sentenças serão “um texto preciso da lei”. (PERELMAN, 2005, p. 388).
Por essa razão, fez-se a tentativa de reduzir à lógica jurídica a lógica formal, pois, esta oferecia a estrutura necessária para a utilização de técnicas de argumentação que não contradissessem uma perspectiva de direito e de justiça de viés exclusivamente positivista, isto é, centrada na ideia segundo a qual a justiça confunde-se com a forma que foi posta pelo legislador.
Assim, aplicando-se os princípios fundamentais da lógica formal (universalidade, necessidade e verdade necessária), o juiz, ao sentenciar, seria apenas o reflexo racional de um sistema jurídico revestido de unidade, consistência-coerência e completude, de sorte que as denominadas lacunas e antinomias[5], não teriam existência substancial, seriam apenas aparentes, e, portanto, facilmente solucionáveis por meio da lógica aristotélica, do silogismo judiciário e de uma hermenêutica gramático-sistêmica. Deste modo, o direito atingiria o status de ciência de matiz cartesiana. Como denunciou Perelman (2005, p. 2):
Ora, a concepção claramente expressa por Descartes, na primeira parte do Discurso do método, era a de considerar “quase como falso tudo quanto era apenas verossímil”. Foi ele que, fazendo da evidência a marca da razão, não quis considerar racionais senão as demonstrações que, a partir de ideias claras e distintas, estendiam, mercê de provas apodícticas, a evidência dos axiomas a todos os teoremas.
Com a nova perspectiva contemporânea de que a verdade não é uma entidade metafísica, existente a priori e a qual o sujeito do conhecimento tem acesso privilegiado ao utilizar o método correto, abandonou-se o princípio e o paradigma filosóficos antigos e colocou-se, em seus lugares, o princípio filosófico da intersubjetividade e o paradigma da linguagem.
Assim, a partir do giro-linguístico[6] contemporâneo, a essência do homem passa a ser enraizada na linguagem e não mais na consciência, pois se nutre, a partir daí, da concepção de que:
A capacidade de falar, ademais, não é apenas uma faculdade humana, dentre muitas outras. A capacidade de falar distingue e marca o homem como homem. Essa insígnia contém o desígnio de sua essência. O ser humano não seria humano se lhe fosse recusado falar incessantemente e por toda a parte, variadamente e a cada vez, no modo de um “isso é”, na maior parte das vezes impronunciado. À medida que a linguagem concede esse sustento, a essência do homem repousa na linguagem. Somos, antes, na linguagem e pela linguagem. (HEIDEGGER, 2003, p. 191).
De acordo com a nova mentalidade, a verdade não é mais concebida pelos ditames da teoria da correspondência, segundo a qual há uma coincidência entre as palavras e as coisas, mas é entendida como resultado de consenso entre debatedores que compõe uma comunidade de falantes e ouvintes. Com a concepção de que a linguagem humana não tem acesso às coisas como elas são objetivamente, mas apenas interpreta e constrói sentidos frente ao mundo fenomênico, o universo do discurso jurídico passa a ser guiado pelos valores de um sistema cada vez mais democrático e, portanto, tanto mais retórico. Assim:
[...] o processo democrático, na medida em que satisfaz as condições de uma formação inclusiva e discursiva da opinião e da vontade, justifica uma presunção de aceitabilidade racional dos resultados e de que a institucionalização jurídica de tal processo de criação democrática do direito exige a garantia simultânea tanto dos direitos básicos liberais quanto dos políticos. (HABERMAS & RATINGER, 2007, p. 29-30).
Destarte, o direito mais uma vez contagiado pelos horizontes de compreensão da filosofia dominante de seu tempo, adotou uma lógica jurídica, que embora não dispense a lógica formal como instrumento eficiente de organização do pensamento e dos argumentos, transcende-a, de modo a deitar as suas raízes em uma teoria da argumentação e não da demonstração.
O juiz, pautado nessa nova perspectiva, ao exercer a atividade jurisdicional, não procura mais a única resposta possível e necessária, entendida como resultado de um raciocínio silogístico e demonstrativo, mas uma resposta razoável, consequência de debates, de emissão e de análise de argumentos prós e contras a uma determinada tese jurídica apoiada pelas partes verossimilhante e provável, capaz de convencer e de ser justificada racionalmente inserida em um determinado sistema referencial de uma comunidade linguística.
A verdade desvela-se e se processa no universo do discurso, onde acordos, doutrinas, jurisprudências, convenções e teorias são dinâmicas, refutáveis, axiológicas e historicamente determinadas. A verdade não é mais concebida como um “em si” a ser descoberto, mas, como “um sendo” a ser inventado e reinventado no processo do discurso. Não se pode encontrar a verdade, põem-se apenas a caminho dela pelos meandros da linguagem.
Ora, nesse novo modo de compreensão, nem mesmo sentenças que resultam de simples observação escapam ao fluxo da linguagem, pois:
Popper mostrou que afirmações simples de observação, que ele chama de “afirmações básicas” não são algo fixo e firmemente alicerçado na experiência. Até mesmo essas sentenças têm o caráter de hipóteses por causa dos nomes universais (predicates) que elas usam. Como tais são dependentes da teoria. Assim, “a palavra vermelho (implica) numa teoria das cores”. Isso significa que nem mesmo as sentenças básicas são incontestáveis. Elas também podem ser falsificadas. Por trás da sua aceitação existe um acordo. A indicação de afirmações simples de observação, portanto, não é objeção à possibilidade de testá-las discursivamente. (ALEXY, 2001, p. 95).
Dessa forma, com o modo de pensar contemporâneo envolto pelo paradigma da linguagem, o reducionismo da teoria da argumentação jurídica ao molde lógico-formal encontra-se privado de suas forças. Aliás, ao se descontruir o reducionismo lógico-formal, destrói-se, desde as suas bases, várias outras espécies de reducionismos lógicos no campo do discurso jurídico.
Assim, não existe apenas uma espécie de lógica jurídica, de sorte que, esta se desdobra em várias lógicas pautadas em teorias variadas, que ao serem usadas em contextos específicos, podem ser igualmente eficientes.
Desse modo, dissipa-se a ideia segundo a qual haveria uma relação hierárquica entre as lógicas, uma vez que, se for admitido o ponto de vista de que a lógica jurídica eficiente é aquela que constrói argumentos que persuadem ao órgão jurisdicional a tomar uma decisão judicial favorável à tese defendida pelo emissor da mensagem, não se pode admitir que o universo do discurso jurídico restrinja-se a algum dos reducionismos consignados a seguir:
Primeira forma de reducionismo: defender que o Pensamento Formal e sua lógica subjacente (seja a tradicional aristotélico-tomista, seja a simbólica) apresentam todas as categorias necessárias para a Ordem e o Sistema Jurídico.
[...] Segunda forma de reducionismo: apresentar as Lógicas Heterodoxas como único parâmetro de análise lógica da argumentação jurídica. Referimo-nos à Teoria da Argumentação Persuasiva e à Nova Retórica de Chaïm Perelman, à Tópica de Viehweg, bem como a Lógica do razoável de Luís Recaséns Siches, presentes nas Teorias do Direito contemporâneo.
[...] Terceira forma de reducionismo: defender o uso exclusivo da Lógica Deôntica, dispensando as teorias contemporâneas da Nova Retórica de Perelman, da Tópica de Viehweg e da Lógica do razoável de Siches. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 33-37).
Evidencia-se que a lógica jurídica, como instrumento hábil para produção de discursos razoáveis, não visa à demonstração incontestável da verdade, mas a direcionar o auditório competente para a tomada de decisões judiciais vinculadas pragmaticamente ao mundo da vida.
O discurso jurídico, circunscrito pela expectativa das partes que litigam em face de um determinado bem da vida, para encontrarem uma decisão razoavelmente célere para o seu caso, não pode, como ocorre com os discursos filosóficos e científicos, projetar-se em um debate infinito, haja vista a necessidade de haver fim em tempo hábil, de modo que as conclusões a que chega adquiram certo status de imutabilidade, o qual os juristas chamam tecnicamente de coisa julgada[7].
Por isso, já que para o direito dizer é um fazer, porquanto tem natureza performativa[8], adota-se, neste trabalho, a hipótese da tese conciliadora das lógicas jurídicas, de forma a valorizá-las, com igual consideração e respeito, como instrumentos eficientes para a construção de argumentos jurídicos sólidos que objetivam levar o auditório revestido de poder jurisdicional a uma tomada de decisão.
A autonomia da lógica jurídica em face da lógica formal ficará mais perceptível após serem traçadas as diferenças entre ambas. Posteriormente, será estabelecida essa relação de distinção.
2.2 Diferenças entre lógica jurídica e lógica formal
A razão principal pela qual se devem relacionar as diferenças entre lógica jurídica e lógica formal é a de que, uma vez demonstrado que o discurso jurídico possui peculiaridades, é possível evitar o risco do reducionismo da lógica jurídica à lógica formal e às outras formas de reducionismos e, assim, estabelecer, de modo objetivo, as categorias-chave das teorias de argumentação, pela qual o fenômeno jurídico faticamente constrói-se, conceitua-se e se manifesta como um modo de dizer racionalmente delimitado por regras próprias e não de forma arbitrária.
A gravidade do reducionismo, ou seja, a confusão entre a lógica jurídica e a lógica formal foi expressamente delineada por Perelman (2004, p. 5-6) nestes termos:
[...] se identificarmos “a lógica pura e simples” com a lógica formal, não apenas esta última expressão se torna pleonástica, mas é ridículo falar de lógica jurídica, como seria ridículo falar de lógica bioquímica ou de lógica zoológica, quando utilizarmos as regras da lógica formal em um tratado de bioquímica ou de zoologia.
Se adotarmos, como faz Tammelo em um recente artigo, o ponto de vista de que “a lógica propriamente dita é a lógica dos especialistas que consideram a si mesmos lógicos e que assim são geralmente considerados” e se identificarmos a lógica com a lógica formal, teremos de renunciar, como sugere Kalinowski em seu artigo a expressão “lógica jurídica”, que se torna inadequada.
Assim sendo, a desconstrução do “reducionismo” é necessária para se demonstrar que a lógica jurídica não é a lógica formal, pois, o pressuposto desse trabalho, é o de que os argumentos jurídicos não se baseiam em uma lógica da demonstração, por meio da qual, a partir de premissas e de provas analíticas verdadeiras, chega-se a uma conclusão forçosa e necessariamente verdadeira.
De maneira oposta, o discurso jurídico é alicerçado na lógica da argumentação, que se baseia em provas dialéticas, produzidas no contraditório e que levam em consideração dimensões humanas não relevantes para a perspectiva da lógica demonstrativa, tais como: fatores psicossociais, comportamentais e axiológicos.
Nesse sentido, ao se demonstrar que o discurso jurídico deve fundamentar-se em uma teoria da argumentação, fertiliza-se o terreno político para o crescimento do ambiente democrático. E o espaço público, isto é, do debate político, torna-se o ethos da limitação do exercício exacerbado do poder, pois o poder se coloca sob a disciplina do direito.
Portanto, embora a lógica formal seja, em certa medida, importante para a construção do discurso jurídico, essa importância é limitada, pois a lógica jurídica – enquanto discurso que visa não a juízos jurídicos verdadeiros e corretos, mas, equitativos, razoáveis, prováveis e justos – transcende e abrange a lógica formal, desdobrando-se em diversas espécies de lógicas (baseadas em hermenêutica literária formal e/ou hermenêutica material histórico-sociológica).
Essas, pois, quando é julgado indispensável utilizam a lógica formal como um de seus instrumentos para a construção de argumentos organizados, ordenados, convincentes e justificadores.
Por isso, para se distinguir a linguagem da lógica jurídica da lógica formal comentar-se-á a respeito de cada uma delas individualmente, a fim de que as suas características peculiares sejas reveladas com toda a evidência.
Contudo, não se fará um estudo pormenorizado dos atributos essenciais das duas formas de logicidade, pois para isto seria necessário uma pesquisa mais extensiva do que uma monografia pode fornecer.
2.2.1 Características da linguagem da lógica formal
A lógica formal tem sua gênese enraizada na filosofia antiga[9], pois os filósofos procuraram desde a antiguidade clássica estabelecer o uso metódico da razão, de sorte que se interessaram pela formulação de raciocínios que chegassem a resultados verdadeiros e não falsos.
Desse modo, ela é uma ciência exata que tem a finalidade de demonstrar os modos de operações intelectuais pelos quais se chega ao conhecimento verdadeiro, isto é, às inferências que são válidas e as que não o são.
Ela é ainda uma metalinguagem, pois analisa a estrutura formal da linguagem. Assim, pode ainda ser entendida por meio de duas acepções:
(i) Ciência; (ii) sistema linguístico estrutural. Enquanto ciência, a Lógica estuda a estruturação e métodos do raciocínio humano, ou seja, a forma como se dá a estruturação da linguagem. Enquanto linguagem (língua), a lógica é um sistema de significação dotado de regras sintáticas rígidas, cujos signos apresentam um e somente um sentido, que tem por função reproduzir as relações estabelecidas entre os termos, proposições e argumentos de outra linguagem, à qual denominamos de linguagem-objeto. (CARVALHO, 2010, p. 179-180).
Além disso, por razões históricas e didáticas, a lógica formal divide-se em duas categorias: a lógica clássica ou tradicional, de origem aristotélica e lógica moderna, também chamada de matemática ou simbólica[10]. Entretanto, observa-se que a lógica moderna contém em seu bojo a lógica clássica.
Todo o raciocínio lógico-formal é sustentado por três pilares, que são axiomas, também, denominados de princípios racionais[11], a saber:
1. Princípio da identidade: é a regra segundo a qual todo ser é idêntico a si próprio. Pode ser traduzido por A = A. Exemplo: Sofia é Sofia. Tem-se, portanto, neste caso, uma tautologia (do grego tauto, “o mesmo”), proposição em que o predicado é igual ao sujeito;
2. Princípio do terceiro excluído: segundo este axioma, quando duas proposições com o mesmo sujeito e o mesmo predicado são contraditórias, necessariamente uma é falsa e outra verdadeira. Não existe uma terceira possibilidade. Pode ser representado, simbolicamente, por A é B ou A é não B. Exemplo: Sofia é criminosa ou Sofia não é criminosa;
3. Princípio de não contradição: é o fundamento segundo o qual uma proposição e sua contradição não podem ser verdadeiras ou falsas ao mesmo tempo e nas mesmas circunstâncias. Pode ser traduzido, em linguagem simbólica por [~] (A é B e não B). Exemplo: É falso que Sofia seja criminosa e não criminosa.
Em virtude dessas regras fundamentais da razão, a lógica formal apresenta as oposições de proposições mediante as relações de contrariedade, contradição, subcontrariedade e subalternação. A professora Aurora Tomazini de Carvalho (2010, p. 207) as explica:
(i) São contrárias entre si duas proposições quando é possível que ambas sejam falsas, mas não é possível que ambas sejam verdadeiras, por exemplo, se é necessário que a parede seja branca, não pode ser necessário que ela não seja branca e vice-versa, mas também pode ser falsa a necessidade de a parede ser branca e a necessidade de ela não ser.
(ii) São contraditórias entre si duas proposições quando uma é verdadeira e a outra falsa. Assim, se é verdade que uma fruta seja necessariamente vermelha, é falso que seja possível ela não ser vermelha.
(iii) A subcontrariedade se afere quando é possível que ambas as proposições sejam verdadeiras, mas não falsas. Por exemplo, pode ser verdade que é possível o avião cair e que é possível ele não cair, mas não há de ocorrer que ambas as possibilidades sejam falsas.
(iv) Por fim, na relação de subalternação, onde as proposições são postas na posição de subalternantes e subalternas, da verdade da subalternante se infere a verdade da subalterna e da falsidade da subalterna se infere a falsidade da subalternante. Vejamos: se é necessário que o cachorro lata, é possível que ele lata; e se a possibilidade de ele latir não existe, será falsa a necessidade de ele latir.
Sem adentrar nos pormenores do estudo de todo o aparato técnico da lógica formal clássica ou simbólica, tais como a análise dos silogismos, dos conectivos lógicos, tabelas de verdade, cálculos de predicados, cálculo sentencial, etc., é importante destacar mais algumas particularidades dessa forma de linguagem a fim de atingir o objetivo de mostrar a sua singularidade quando comparada a lógica jurídica. Ei-las:
a) as suas leis são universais, podendo ser aplicadas a qualquer campo de observação;
b) ela analisa juízos de fato e não juízos estéticos, de valores ou jurídicos. Por isso, a sua linguagem é informativa e descritiva;
c) No que se refere ao discurso jurídico, não compete à lógica analisar o seu conteúdo e nem pode indicar que proposição normativa pode ser aplicada a determinado fato, pois, a sua finalidade é a verificação da estrutura formal da linguagem jurídica.
d) ela é instrumental, formal, propedêutica e preliminar à investigação científica ou filosófica;
e) é normativa, pois fornece princípios gerais de raciocínio. Configura-se, também, como uma doutrina da prova, uma vez que apresenta as condições e os fundamentos necessários de todas as demonstrações;
f) é geral e atemporal, pois as formas puras do pensamento com seus princípios e suas leis não dependem do espaço e do tempo.
Além disso, segundo Marilena Chauí (2010, p. 127, grifos nossos) seu objeto de estudo é:
[...] a proposição, que exprime, por meio da linguagem, os juízos formulados pelo pensamento. A proposição é a atribuição de um predicado a um sujeito: S é P. O encadeamento dos juízos constitui o raciocínio e este se exprime logicamente por meio da conexão de proposições; essa conexão chama-se silogismo. A lógica estuda os elementos que constituem uma proposição, os tipos de proposições e de silogismos e os princípios necessários a que toda proposição e todo silogismo devem obedecer para serem verdadeiros.
Consequentemente, a lógica formal não coincide com a lógica jurídica, uma vez que a primeira é preponderantemente descritiva e a segunda majoritariamente prescritiva. E como se verá adiante, a lógica jurídica alimenta-se de sistemas linguísticos diversos do lógico-formal (axiológicos, sociais, culturais, etc.).
Entretanto, a lógica jurídica não despreza a lógica formal, pois uma vez que esta ajuda a conhecer a estrutura, a forma e as relações que se estabelecem entre as proposições jurídicas, apresenta-se como um poderoso instrumento para o estudo do direito.
2.2.2 Características da linguagem da lógica jurídica
Compreende-se que a lógica jurídica, entendida pela via de uma abordagem monista, não existe, pois na verdade, ela se desdobra em diversas lógicas que têm em comum apenas o objeto de análise: o discurso jurídico. Desta maneira, neste trabalho, o termo lógica jurídica abrange todas as lógicas presentes no discurso jurídico.
Assim, a partir do pressuposto de que é aceito a tese conciliadora das lógicas jurídicas, visto que, todas elas são consideradas meios eficientes pelos quais se constroem argumentos jurídicos sólidos, urge apresentá-las a partir da Teoria Geral do Direito da qual estas são se emanam.
Para se atingir tal empreendimento, adota-se, com algumas modificações, em virtude de sua vantagem didática, a classificação das lógicas jurídicas proposta pelos professores Antonio Cappi e Carlo Crispim Baiocchi Cappi, na obra “Lógica Jurídica: a construção do discurso jurídico”, editada pela segunda vez pela UCG, em 2004.
Segundo os autores supracitados, pode-se dividi-las em duas diferentes formas de hermenêutica[12]:
1ª) a Literária Formal, que abarca as Escolas: da Exegese, Analítica, dos Pandectistas e, acrescentam-se nesse trabalho, a lógica deôntica e o formalismo de Hans Kelsen;
2ª) a Material Histórico-Sociológica, que compreende as Escolas: Histórica do Direito, Teleológica do Direito, da Livre Pesquisa Científica, do Direito Livre, Sociológica Americana, da Jurisprudência dos Interesses, Egológica, Vitalista, Crítica Alternativa e se acrescentam nesse trabalho mais duas Escolas: a Tópica de Theodor Viehweg e a Nova Retórica de Chaïm Perelman. (CAPPI & CAPPI, 2004).
Nesse ínterim, analisam-se as características gerais das diversas lógicas jurídicas. Nota-se que primeiro grupo está contido na chamada Hermenêutica Literária Formal. É a adotada pelo positivismo jurídico e se caracteriza por aceitar apenas a interpretação textual e contextual, desprezando, consequentemente, qualquer forma de investigação exterior ao texto, de modo que:
Os juristas que apoiam a hermenêutica literária formal defendem a tese de que “a interpretação jurídica se completa e se exaure ao nível semiótico e sintático na Ordem e no Sistema Jurídico”. Hermenêutica é um mecanismo de auto-integração, um recurso interno ao Sistema Jurídico, que dispensa qualquer investigação aos fatores externos ao texto e contexto da normativa codificada. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 487, grifos dos autores).
A Hermenêutica Literária Formal privilegia a doutrina liberal da separação dos poderes, busca garantir a efetividade da segurança jurídica, impõe ao juiz o papel de servo da legalidade e o dever de dizer o direito de modo absolutamente neutro e imparcial.
Por isso, a partir dessa perspectiva, o problema da justiça da lei não é da alçada do Poder Judiciário, mas única e exclusivamente do Poder Legislativo. O juiz, portanto, aplica o direito e não necessariamente a justiça, pois esta só será realizada pelo aplicador da norma ao caso concreto, caso ele tenha, eventualmente, uma lei justa nas mãos. Em suma, o juiz diz o direito posto e não o direito justo.
Já o segundo grupo de lógicas jurídicas, por sua vez, compõe a denominada Hermenêutica Material Histórico-Sociológica.
De modo geral, trata-se de uma concepção lógica segundo a qual a lei não deve ser interpretada apenas dentro dos parâmetros do texto normativo, pois embora o jurista parta do texto, ele o ultrapassa e se torna sensível a outras fontes de interpretação, de forma que pelo entendimento da teleologia social, ele analisa a axiologia social e extrai o direito, équo e justo, dos valores consensualmente produzidos e vivenciados pela comunidade humana. Em síntese:
Os juristas que apoiam a hermenêutica material histórico-sociológica defendem a interpretação “aberta” da normativa jurídica, que só encontra o sentindo profundo da norma na facticidade histórica das condutas humanas, que mudam no tempo e no espaço, de acordo com “o senso da comunidade”, isto é, de acordo com todos os fatores culturais (sociais, axiológicos, psicológicos, políticos, religiosos etc.) em constante transformação no meio social. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 499).
A hermenêutica torna-se atividade criativa, pois produz novo direito positivo, uma vez que, ao subsumir a lei ao caso concreto, o juiz deve utilizar técnicas de interpretação, pelas quais consiga a atualização do texto normativo, de modo a retirar dele uma norma jurídica adaptada às necessidades sociais hodiernas e as expectativas circunstanciais das partes que compõem a relação processual. Por conseguinte, Cappi & Cappi relatam que (2004, p. 483, grifos dos autores):
[...] Individualizando a lei no ato aplicativo da justiça, a atividade decisória do magistrado a “abre” para receber o sentido real, atual. Aplicando a justiça, o magistrado exerce uma atividade atualizadora e construtora de sentido jurídico. O ato aplicativo do direito interrompe o genérico e universal “dever-ser” e o transforma em “dever-ser nesta circunstância”. A lei, genericamente formulada, é individualizada, aplicada ao caso concreto. A norma adentra na vida real.
Desse modo, para as Escolas que compõem a Hermenêutica Material, a lógica jurídica não descarta a lógica formal, mas vai além dela, encontrando o sentindo do texto não apenas no texto e contexto literário da lei, mas também na vida social e nos valores sociais, históricos, dinâmicos e evolutivos que orientam as condutas.
Dessa forma, partindo de uma hermenêutica perenemente atualizadora, elas buscam garantir a composição dos litígios, arrancando pela raiz o maior mal que ameaça de modo iminente e constante as relações sociais: o conflito entre as condutas humanas em constante mutação e a lei escrita estática e generalizadora.
Isso posto, é pertinente que se faça uma análise geral das espécies de lógicas jurídicas em um capítulo específico. À vista disto, passar-se-á ao estudo individualizado das teorias gerais do direito das quais elas derivam.