Capa da publicação Existe uma lógica jurídica? Como ela transita nas decisões do STF?
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As lógicas do discurso jurídico e aplicações práticas nos julgados do STF na ADI nº 4.277/DF e na ADPF nº 132/RJ

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21/03/2017 às 13:13
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3 AS LÓGICAS JURÍDICAS

Após a explanação acerca das características elementares das lógicas jurídicas e formais, é pertinente, de agora em diante, a apresentação individual das principais escolas que compõem todo o desenvolvimento da lógica jurídica ocidental. Veja-se, portanto, esse estudo.

3.1 Hermenêutica Literária Formal

É composta basicamente pelas Escolas: da Exegese, Analítica, dos Pandectistas, pela Lógica Deôntica e o Formalismo de Hans Kelsen.

3.1.1 Escola da Exegese

O Código de Napoleão originou-se na França em 1804, de modo que a Escola da Exegese surgiu como resultado da reunião de vários comentadores do Código Civil Napoleônico que tinham perspectivas hermenêuticas comuns do direito.

Baseia-se no pressuposto de que os códigos são construções análogas às teorias científicas, isto é, traduzem-se como um corpo de normas simétricas, lógicas e completas, de sorte que compõem um sistema jurídico que deve ser analisado pelo juiz, homem absolutamente submisso à letra da lei, através de uma lógica jurídica, radicada no método dedutivo, a partir do qual é possível erradicar as aparentes ambiguidades, incompatibilidades e obscuridades do ordenamento. Por isso, ao construir a argumentação jurídica deve-se seguir a seguinte ordem de raciocínio:

Uma vez estabelecidos os fatos, bastava formular o silogismo judiciário, cuja maior devia ser fornecida pela regra de direito apropriada, a menor pela constatação de que as condições previstas na regra haviam sido preenchidas, sendo a decisão dada pela conclusão do silogismo. (PERELMAN, 2004, p. 33).

Além disso, defende-se que, do ponto de vista prático, o Direito Positivo sobrepõe-se ao Direito Natural e que a melhor visão do direito é a rigorosamente estatal, pois:

Para o jurisconsulto, para o advogado, para o juiz existe um só direito, o direito positivo... que se define: o conjunto de leis que o legislador promulgou para regular as relações dos homens entre si... As leis naturais ou morais não são, com efeito obrigatórias enquanto não forem sancionadas pela lei escrita... Ao legislador só cabe o direito de determinar, entre regras tão numerosas e, às vezes, tão controvertidas do direito natural, aquelas que são igualmente obrigatórias... Dura lex, sedlex; um bom magistrado humilha sua razão diante da razão da lei: pois ele é instituído para julgar segundo ela e não para julgá-la. Nada está acima da lei, e eludir suas disposições, sob o pretexto de que a equidade natural a contraria, nada mais é do que prevaricar. Em jurisprudência não há, não pode haver razão mais razoável, equidade mais equitativa do que a razão ou equidade da lei. (BONNECASE apud BOBBIO, 1995, p. 86).

Destaca-se, ainda, a eficiência dos métodos gramatical e sistemático, do uso da lógica formal e hermenêutica literária, uma vez que, por meio deles, consegue-se fazer uma interpretação da lei esclarecedora da qual é a verdadeira intenção do legislador, a partir dela se desconstitui irreais obscuridades ou lacunas na lei.

Defende-se, também, que direito e lei se confundem, de tal modo que um jurista chegou a dizer: “Eu não conheço o direito civil; eu ensino somente o Código de Napoleão”. (BUGNET apud CAMARGO, p. 67, 2003). E, por fim, caracteriza-se, ainda, pela valorização ao recurso ao princípio de autoridade na construção de argumentos jurídicos fidedignos e pragmaticamente eficientes, já que:

[...] tal princípio é de máxima importância para compreender a mentalidade e o comportamento jurídicos. Tal recurso não se deve a um mau hábito dos juristas (isto é, ao fato de o pensamento jurídico permanecer numa fase pré-científica), mas à própria natureza do direito, que é uma técnica de organização social, que deve estabelecer, de modo obrigatório para todos os concidadãos, o que é lícito e o que não é. Se os juristas devessem proceder exclusivamente com base em afirmações racional ou empiricamente verificáveis, não poderiam cumprir sua função, visto que não seria sempre possível chegar a um juízo unânime, cientificamente fundado, sobre o que é lícito e o que não é. Por isso, se torna necessário atribuir a uma pessoa qualquer o poder de estabelecer o que é justo e o que é injusto, de modo que a sua decisão não possa ser colocada em discussão, e consequentemente os juristas possuem um seguro ubi consistam em seu raciocínio: este personagem é precisamente o legislador. (BOBBIO, 1995, p. 89).

Portanto, a Escola da Exegese finca os pilares das teorias do racionalismo jurídico ocidental e ensina que a justiça confunde-se com a vontade geral, uma vez que esta ao se materializar nas leis, somatiza o legítimo exercício do poder político pelo povo.

3.1.2 Escola Analítica

A Escola Analítica foi fundada, na Inglaterra, por John Austin no século XIX. De modo geral, trata-se de uma concepção que imuniza o Direito positivo aos imperativos éticos e morais, haja vista que:

A jurisprudência geral, ou filosofia do direito positivo, não se refere diretamente à ciência da legislação. Trata diretamente dos princípios e distinções que são comuns aos diversos sistemas de direito particular e positivo e que cada um desses sistemas diversos inevitavelmente envolve, seja esse digno de louvor ou de censura, seja de acordo ou não com uma determinada medida ou critério. Ou bem (mudando a frase) a jurisprudência geral ou filosofia do direito positivo diz respeito ao direito como ele necessariamente é, ou antes o direito como deveria (ought) ser; o direito como deve necessariamente (must) ser, seja ele bom ou mau, ou antes o direito como necessariamente ser, se fosse bom. (AUSTIN apud BOBBIO, 1995, p. 102-103).

Dessa forma, considera que enquanto a Ética é de competência exclusiva dos filósofos e moralistas, o Direito Positivo, como resultado dos costumes transformados em lei positiva pela jurisprudência judiciária, é da alçada única dos juristas, os quais devem interpretá-lo, a partir da análise de seus conceitos, através do método da Lógica Formal Clássica Aristotélico-Tomista.

3.1.3 Escola dos Pandectistas

Surgida na Alemanha, no século XIX, a Escola dos Pandectistas teve como representante mais popular Bernhard Windscheid. O nome Pandectistas deve-se ao fato de que os componentes dessa Escola se dedicavam ao estudo do direito romano, sobretudo, ao estudo das Pandectas: a segunda parte do Corpurs Juris Civilis de Justiniano, pela qual se tinha acesso aos pareceres dados pelos jurisconsultos às questões de Direito Civil.

Assim, poder-se-ia reelaborar os institutos do antigo direito romano, e por meio de um processo abstrato de extração de conceitos e de atualização, os mesmos poderiam ser reaplicados em diferentes épocas e lugares. Para os Pandectistas:

O momento lógico baseia-se na investigação da ratio legis. Busca descobrir o sentido e o alcance da lei, sem o auxílio de qualquer elemento exterior, aplicando ao dispositivo um conjunto de regras tradicionais e precisas, tomadas de empréstimo à lógica geral. Funda-se no brocardo: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositivo, ou seja, ali onde está o racional, ali está a correta disposição legislativa. Procura a ideia legal que se encontra sub litteris, partindo do pressuposto de que a razão da lei pode fornecer elementos para a compreensão de seu conteúdo, de seu sentido e de sua finalidade. Numa lei o que interessa não é seu texto, mas o alvo fixado pelo legislador. O elemento lógico empregado nesse processo de interpretação é o fornecido pela lógica formal. A ratio legis consagra necessariamente os valores jurídicos dominantes e deve prevalecer sobre o sentido literal da lei, quando em oposição a este. O processo lógico permite que a interpretação alcance elevado padrão de rigor e segurança. (HERKENHOFF apud CAPPI & CAPPI, 2004, p. 498).

Portanto, para essa Escola, o Direito também se confunde com o direito positivo, o qual deve ser interpretado à luz da lógica formal e do método sistemático de interpretação. Mas, além disso, a fim de fazer uma correta hermenêutica das normas, o intérprete das leis, deve responder à seguinte pergunta: embora o legislador tenha produzido normas jurídicas no passado, qual poderia, possivelmente, ser a sua intenção se legislasse no tempo atual?

3.1.4 A Lógica Deôntica

O alemão Ulrich Klug foi o constituidor da lógica deôntica. Porém, ela foi adaptada para a realidade do discurso jurídico por Von Wright, pois, através de seus trabalhos foram possíveis as transposições, com algumas adaptações, dos conhecimentos da Lógica Modal Alética à linguagem do direito positivo. Em outras palavras:

Entendemos por Lógica Deôntica o projeto de criar um conjunto sistêmico de regras de Lógica Formal aplicáveis ao Direito, objeto de profundas adaptações exigidas pela deonticidade, isto é, pelo caráter normativo da linguagem usado nas proposições jurídicas. A predicação “ser” (o Sein da teoria pura do direito) é substituída por “dever-ser” (o Sollen) e “dever fazer”. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 210).

Desse modo, os argumentos jurídicos, na perspectiva da lógica deôntica, estruturam-se na forma do silogismo aristotélico, com a diferença de que ao invés de se alicerçar em sentenças descritivas ou informativas como ocorre com a lógica formal, fundamentam-se em proposições deônticas, pois os seus valores não correspondem à verdade ou à falsidade, mas ao proibido, ao permitido ou ao obrigatório.

Além disso, as sentenças organizam-se em formas condicionais, pois, cada hipótese de incidência (antecedente) corresponde a uma consequência jurídica (o consequente).

Dessa maneira, os argumentos obedecem à estrutura[13] referenciada a seguir:

TABELA 1 – Estrutura dos Argumentos

A norma

Premissa Maior:

Todo A deve ser B

A factualidade

Premissa Menor:

C é A

A sentença

Conclusão: Logo,

C deve ser B

Fonte: Elaborada e adaptada pelo autor (2014).

Ao analisar a tabela anterior que demonstra a Estrutura dos Argumentos, permite-se, ainda, exemplificá-la conforme ver-se posteriormente (vide TABELA 2):

TABELA 2 – Exemplificação da Estrutura dos Argumentos

“Todo A deve ser B”

Todo servidor público demitido sem a instauração de prévio processo administrativo disciplinar deve ser reintegrado ao Quadro Funcional.

“C deve ser A”

Fabrício foi demitido sem a instauração de prévio processo administrativo disciplinar.

“Logo, C deve ser B”

Logo, Fabrício deve ser reintegrado ao Quadro Funcional.

Fonte: Elaborada e adaptada pelo autor (2014).

Portanto, para os deônticos, a fim de garantir ao direito o status de científico, o discurso jurídico deve obedecer a mesma forma do raciocínio lógico-formal, porém, com as devidas modificações, haja vista que a argumentação jurídica em sua singularidade abrange funções da linguagem natural valorativas e normativas, as quais estão naturalmente ausentes da lógica formal.

3.1.5 O Formalismo de Hans Kelsen

O pensamento do autor austríaco está sintetizado em sua principal obra, “Teoria Pura do Direito”, que foi editada pela primeira vez em 1934 e teve sua segunda edição publicada em 1960. O objetivo da sua teoria foi garantir ao direito o status de cientificidade, isto é, de alicerçar o direito enquanto ciência, em um positivismo metodológico, por meio do qual o cientista do direito poderia analisar o seu objeto de estudo, as normas, com absoluta objetividade e exatidão, de modo a purgar a Ciência Jurídica de qualquer influência moral, política, ideológica ou sociológica. Então:

A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito Positivo – do Direito positivo geral, não de uma ordem jurídica especial. [...] Contudo, fornece uma teoria da interpretação.

Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Não importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É a ciência jurídica e não política do Direito.

Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto se não possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental. (KELSEN, 1998, p. 01).

O objeto de estudo da Teoria Pura do Direito, a norma, é pensada a partir da ideia de imputação, isto é, de acordo com a concepção segundo a qual existe uma norma posta que imputa uma sanção a quem venha contrariar-lhe.

A teoria normativa de Kelsen analisa o sistema de normas como um conjunto escalonado e hierarquizado, de sorte que a norma inferior encontra a sua fonte de validade na norma superior e, assim por diante, até chegar à norma fundante de todo o ordenamento: a norma hipotética fundamental.

Dessa forma, a maior preocupação que o intérprete da norma deve ter é a de verificar se a lei é válida, isto é, se ela foi elaborada pela autoridade competente e se está conforme as normas de hierarquia superior.

A norma trata de uma proposição que indica um deve ser, um mandamento e, por isto, tem natureza prescritiva, escapando ao princípio de causalidade dos fenômenos naturais. A doutrina, por sua vez, deve descrever as diversas possibilidades de sentido da norma, mas, dentro dos limites da moldura do sistema de normas e guiada pelos elementos da imputação e da coerção.

Da mesma tarefa está imbuído o juiz, que, embora tenha certa margem de discricionariedade concedida, de modo intencional ou não, pelo próprio legislador, para que lhe seja possível determinar quando, onde e como a norma deve ser aplicada, deverá prolatar uma sentença, resultado de uma opção por um dos sentidos possíveis da norma, que respeite os limites da moldura, isto é, do texto normativo. Como aduz o pensador austríaco:

Entendendo-se por “interpretação” a verificação do sentido da norma a ser executada, o resultado desta atividade só pode ser a verificação da moldura, que representa a norma a ser interpretada e, portanto, o reconhecimento de várias possibilidades que estão dentro desta moldura.

Nesse caso, a interpretação de uma lei não é necessária a uma decisão como a única e certa, mas leva, possivelmente, a várias decisões – enquanto só se ajustam a norma a ser aplicada – do mesmo valor, mesmo que uma única dentre elas se torne direito positivo numa sentença judicial.

O fato de que uma sentença judicial seja baseada numa lei nada mais significa, na verdade, senão que se encontra no interior da moldura e que a lei não significa que é uma das normas individuais possíveis dentro da moldura da norma geral. (KELSEN, 2009, p. 150-151).

Kelsen entende que o ordenamento jurídico é um conjunto de normas harmônicas e completas e que, por isso mesmo, nenhum fato da vida escapa a sua regulamentação, uma vez que tudo o que não está juridicamente proibido, está juridicamente permitido e, portanto, juridicamente determinado.

Assim sendo, existem, de modo geral, duas formas de interpretação: a autêntica, que cria direito, vinculada à ação e que é realizada pelos órgãos competentes do Estado para aplicar o Direito (o Legislativo, o Executivo e o Judiciário) e a inautêntica, feita no âmbito privado, que ocorre, por exemplo, quando um indivíduo qualquer é coagido a agir conforme a conduta prevista na lei, a fim de escapar da sanção.

Logo, interpretar, de acordo com a perspectiva da Teoria Pura do Direito, é escolher dentre as várias possibilidades de sentido circunscritas pela moldura do texto normativo.

3.2 Hermenêutica Material Histórico-Sociológica

Essa ciência é consolidada, sobretudo, pelas Escolas: Histórica do Direito, Teleológica do Direito, da Livre Pesquisa Científica, do Direito Livre, Sociológica Americana, da Jurisprudência dos Interesses, Egológica, Vitalista, Crítica Alternativa, Tópica de Theodor Viehweg e Nova Retórica de Chaïm Perelman.

3.2.1 Escola Histórica do Direito

A Escola Histórica do Direito surge na primeira metade do século XIX. Ela deriva do Romantismo alemão como resultado da reação ao racionalismo. Seus principais representantes são: Friedrich Karl von Savigny e Puchta.

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A Escola alemã entende o direito como fato histórico, originado dos costumes e das tradições de um povo, pois se trata de manifestação espontânea do espírito nacional. Em razão disso, rejeita as teorias que defendem o direito natural, racional e universalmente válido, as quais, segundo o historicismo jurídico, deitam as suas raízes na concepção liberal e burguesa de que a supremacia da lei deve ser cristalizada. Assim sendo:

O Direito não é criação lógica da razão universal, mas uma constante orgânica e espontânea da consciência popular de cada povo. O povo produz naturalmente o Direito, como naturalmente cria seu idioma nacional. O historicismo jurídico, o nacionalismo e o relativismo são características inerentes ao Direito. A origem do Direito, seu desenvolvimento e seu destino espelham a história da consciência nacional. Savigny [...] dizia: “o direito progride com o progresso do povo, fortalecendo-se com ele, entrando em decadência e perecendo, quando a nação perde sua personalidade”. (CAPPI &CAPPI, 2004, p. 507).

Dessa maneira, cria-se uma nova estrutura metódica para o direito, isto é, parte-se de uma ciência orgânica e progressiva comum a toda a nação, a fim de se elaborar cientificamente o direito de base histórica, a partir do qual, torna-se possível entender as normas jurídicas como derivadas das organizações sociais, baseadas em instituições históricas formadas pelo costume.

Assim, origina-se, finalmente, o método histórico-evolutivo, por meio do qual, o intérprete deve colocar-se no lugar do legislador, mas, com sensibilidade para captar o espírito do povo, a fim de ter condições de aplicar normas produzidas outrora em tempos atuais, utilizando técnicas específicas, tais como: a gramatical, a lógica, a histórica e a sistemática do direito.

Em suma, o magistrado, ao aplicar a norma à circunstância fática, deve seguir as regras rígidas do raciocínio lógico-formal e em caso de dúbia interpretação, a fonte originária (os costumes, o espírito do povo, etc.) deve prevalecer sobre a fonte originada (as leis, os códigos, etc.), pois a fonte primária e a plenitude sistêmica do direito estão enraizadas na consciência coletiva do povo.

3.2.2 Escola Teleológica do Direito

A Escola em voga surgiu entre os anos de 1818 e 1892. Ela tem como principal expoente Rudolph von Ihering, que rejeita a ideia romântica da Escola Histórica do Direito de que a lei deriva natural e harmoniosamente das tradições consuetudinárias consensuais.

Ao contrário disso, pressupõe que o direito é resultado de guerra, pois é construído não por sofisticadas teorias ou conceitos abstratos, mas em meio a interesses existenciais concretos em constante conflito, por meio dos quais se geram lutas e quebra de tradições. Como elucida o pensador alemão:

A paz é o fim que o direito tem em vista, a luta é o meio de que se serve para o conseguir. Por muito tempo pois que o direito ainda esteja ameaçado pelos ataques da injustiça – e assim acontecerá enquanto o mundo for mundo –, nunca ele poderá subtrair-se à violência da luta. A vida do direito é uma luta: luta dos povos, do Estado, das classes, dos indivíduos.

Todos os direitos da humanidade foram conquistados na luta; todas as regras importantes do direito devem ter sido, em sua origem, arrancadas àqueles que a elas se opunham, e todo o direito, direito de um povo ou direito de um particular, faz presumir que alguém esteja decidido a mantê-lo com firmeza.

O direito não é uma pura teoria, mas uma força viva.

Por isso a justiça sustenta numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender.

A espada sem a balança é a força brutal; a balança sem a espada é a impotência do direito.

Uma não pode avançar sem a outra, nem haverá ordem jurídica perfeita sem que a energia com que a justiça aplica a espada seja igual à habilidade com que manejar a balança. (IHERING, 2009, p. 23).

À vista disso, a Escola denuncia a insuficiência da teoria da silogicidade, do método lógico-dedutivo e do formalismo jurídico, como critérios mediante os quais se aplicam o direito, uma vez que o direito que se considera relevante não é o posto, objetivo, e sim o subjetivo, já que ele se movimenta graças à energia do sentimento de justiça do sujeito que percebe seu direito lesado e, por consequência, reclama do prejuízo sofrido.

Propõe, pois, o método realista ou teleológico, a partir do qual o direito é entendido como tendo um elo com um fim que se pretende ver realizado na prática, ou seja, o magistrado, no labor de aplicar a norma, deve estar atento à finalidade última do direito: garantir a paz social, por meio da proteção aos interesses coletivos e individuais conexos à vida concreta.

3.2.3 Escola da Livre Pesquisa Científica

A Escola da Livre Pesquisa Científica, fundada na França por François Gény, defende que as lacunas do ordenamento devem ser preenchidas mediante a pesquisa científica, pela qual se investiga o direito para além das fontes formais, buscando-se os elementos objetivos que determinam as soluções exigidas pelo direito positivo. Logo:

A lei, não cobrindo todo o campo do direito, é por vezes incuravelmente muda. Torna-se inútil [...] arrancar-lhe um sentido artificial. Nesses casos só a livre pesquisa científica pode propiciar os elementos da solução, porque vai buscá-los, não na abstração dos conceitos, mas na noção de justo objetivo, vale dizer na razão e na consciência, e nas realidades sociais. Assim o sentido da lei deve ser pesquisado nela, mas também fora dela, se preciso for. (GÉNY apud CAPPI & CAPPI, 2004, p. 509-510).

O magistrado, a partir da perspectiva dessa Escola, tem papel criativo e é vocacionado a realizar a atividade legisladora, porém, respeitando a critérios objetivos, porque a livre pesquisa científica afirma o postulado lógico da “plenitude lógica da legislação escrita”.

Por isso, uma vez que o direito pretende ser um sistema de normas postas, uno e indivisível, a lacuna aparece como um vácuo e uma falha que deve ser necessariamente preenchida e corrigida pela atividade jurisdicional, a fim de que a plenitude do direito seja mantida. Por esta razão, o juiz deve ser sensível ao fato de que:

[...] O direito é composto por dois elementos fundamentais: le donné (o “dado”, fruto das condições físicas e culturais de um povo, dos costumes, tradições e condutas sociais) e le construit (o “elaborado”, o conjunto de normas da ordem jurídica positiva).

O juiz, intérprete do Direito positivo, investiga as motivações que determinaram o nascimento da lei. Ele deve fidelidade unicamente a esta interpretação, no momento da aplicação da lei, pois o seu significado originário não pode ser distorcido pelas mudanças de condutas sociais históricos. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 509).

Assim, embora o magistrado, em caso de lacuna e depois de esgotada todas as possibilidades de busca de soluções para o caso judicializado no próprio direito posto, possa recorrer, no intento de solucionar a lide, às fontes suplementares do direito – usos, costumes, autoridades dos mestres, tradição, jurisprudência e doutrina –, jamais poderá julgar contra legem, objetivando forçar a lei a dizer o que ela não diz.

Por conseguinte, em sua atividade hermenêutica, ele deve respeitar o limite que jamais deverá ser ultrapassado: a lei positiva, a fim de garantir a força e a eficácia da ordem jurídica do Estado de Direito.

3.2.4 Escola do Direito Livre

A Escola supracitada nasceu na Alemanha, quando Ulrich Kantorowisz, que usava o pseudônimo do tribuno romano Gnaeus Flavius, publicou um clássico da hermenêutica jurídica, intitulado “A luta pela Ciência do Direito”.

De acordo com essa Escola, o direito positivo surge do abuso do poder do Estado, pois este cria a ordem jurídica em proveito próprio e se o Estado fomenta a prática da hermenêutica literária formal no âmbito da prestação jurisdicional, é porque, por uma opção política, ele não pode admitir que a ratio legis, seja procurada, legitimamente, num direito extra positivo.

Contudo, a investigação científica e sociológica do direito, ao verificar que existe uma tensão entre a ordem social e a ordem estatal, constata que nem todo o direito exaure-se no Estado, pois a ratio legis, verdadeira fonte do direito, emana, naturalmente, das condutas consensuais de um povo. Desta maneira:

[...] Ao lado do direito estatal, ou mesmo anterior a ele, estaria o direito livre produzido pela opinião jurídica dos membros da sociedade, pelas sentenças judiciárias e pela ciência jurídica. Segundo Kantorowicz, o povo reconhece o direito livre, enquanto desconhece o direito estatal, a não ser que o último coincida com o primeiro.

[...] Enfim, o Movimento para o Direito Livre procurou resolver o problema provocado pelo distanciamento entre o direito estanque e a sociedade em movimento. A lei, tornando-se retrógrada, por não acompanhar as transformações vividas pela sociedade, acaba por gerar instabilidade em lugar de segurança. E assim ressurge o direito natural (social) de base histórica. (CAMARGO, 2003, p. 99-100).

Assim sendo, o juiz, ao aplicar a lei, em situações concretas, deve, a fim de resolver o paradoxo entre o direito estático e a sociedade em movimento, utilizar a seguinte metodologia:

. Se houver lei univocamente interpretada, e esta não ofender o “direito justo” (isto é, se a lei não ofender os sentimentos dominantes da comunidade), o Direito Positivo deve ser seguido. O juiz aplicará o Direito positivo iuxta legem.

. Se estiver diante de lacuna jurídica, o juiz (seguindo sua honrada convicção, após investigação científica sociológica) torna-se uma espécie de “legislador”, no caso concreto, criador de norma jurídica não-vinculante. Agirá praeter legem.

. Se a norma jurídica for claramente injusta, ofendendo o Direito material da sociedade que a rejeita frontalmente, cabe ao juiz (conforme sua honrada convicção e após investigação científica sociológica) ir contra legem. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 511-512).

Portanto, a Escola do Direito Livre defende a supremacia do Direito material sobre o Direito positivo, de sorte que ao delegar ao juiz o dever de dizer criativamente o direito, o torna mais importante do que a lei, de modo a exigir dele, além da imparcialidade e da formação de um espírito investigativo, conhecimentos interdisciplinares, tais como: Filosofia, Psicologia e Ciências Sociais.

3.2.5 Escola Sociológica Americana

O fundador da Escola Sociológica Americana é Roscöe Pound. Esta se singulariza por aplicar ao Direito as teorias da Lógica Experimental de John Dewey, lógico pragmatista, que defende os aspectos utilitaristas e práticos da ação.

Assim, rejeita o ponto de partida da lógica formal aristotélica (o antecedente da inferência), pois, este, caso seja formado por premissas verdadeiras, serve para dar a conclusão do argumento, na forma de silogismo, a validade formal de verdade irrefutável.

Por isso, ao invés de se focar no antecedente apercebido por premissas verdadeiras, o juiz deve se preocupar com as conclusões e consequências da decisão judicial, pois, a repercussão social do “consequente” é mais relevante do que a verdade do “antecedente”. Por essa razão, à lógica formal cabe um papel instrumental e acessório, uma vez que o papel central é dos juízos de valor, pelos quais o magistrado mede os efeitos que a sua sentença causará na sociedade.

No processo de formação de sua convicção, à luz do princípio da persuasão racional, os participantes do discurso jurídico em geral (membros do legislativo, executivo e judiciário) devem seguir os procedimentos de uma lógica jurídica pragmatista, a saber:

. Partir de uma investigação preliminar a respeito das consequências que a aplicação das normas legais provocariam no seio da convivência social.

. Antes de propor a promulgação de uma lei ao legislativo, aprofundar, por meio de análise sociológica, os efeitos da lei na social atual.

. Realizar um profundo estudo histórico-jurídico-sociológico das condições que determinaram a origem da lei, para avaliar se estas ainda subsistem, ou se estamos diante de uma norma anacrônica.

. No método jurídico, assumir a importância dos fatores psicológicos, que motivam decisões judiciais.

. Reconhecer que a sentença atinge seu fim quando representa uma solução justa e razoável que favoreça o bem-estar social. A norma legal justa é a norma eficaz que trouxer maior bem-estar-social.

. Pressionar o Ministério da Justiça para que assuma a tarefa de corrigir os anacronismos legais, mediante projetos de lei.

. Priorizar sempre, no Direito, a eficácia, na busca de se atingirem os fins. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 515, grifos do autor).

Ressalta-se que, apesar dos desdobramentos radicais ulteriores dessa Escola, como por exemplo, a formação de concepções segundo as quais o magistrado primeiro decide no seu íntimo, para depois fundamentar sua decisão, a personalidade humana do juiz é que, coberta pelo véu dos fundamentos oficiais da decisão, decide os rumos de seu julgamento, etc. A Escola Sociológica Americana, trouxe a ideia de que a lógica jurídica deve pautar-se em uma concepção prática e não em um formalismo abstrato do direito.

3.2.6 Escola da Jurisprudência dos Interesses

A Escola da Jurisprudência dos Interesses surgiu na Alemanha e tem como fundador o professor, de Tübingen, Philip Heck. Ela defende a tese de que a autêntica hermenêutica jurídica não se guia pelos procedimentos da dedução lógico-formal e sim pela verificação dos “interesses”, que estão por trás da edição das leis, pois, parte do pressuposto de que toda lei é feita com a finalidade de proteger os interesses de grupos socialmente dominantes. Esta alega que:

[...] Não é da competência do juiz legislar, mas interpretar e aplicar a norma jurídica, com a qual coopera “mediante uma justa interpretação da lei”. A obediência ao Direito Positivo é obrigação fundamental de qualquer juiz, uma obediência inteligente e competente, que, na análise dos conflitos sociais, o transforma em intérprete dos conflitos de interesses em jogo. Interpretar a lei não quer dizer aplicá-la por deduções lógico formais. Significa verificar quais os interesses que, de fato e no fato, são preservados, favorecendo os da coletividade ante os interesses dos grupos ou indivíduos, e os que intencionalmente a lei defendia, quando de sua edição pelo legislador. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 517).

Por isso, antes de aplicar a norma jurídica ao caso concreto, o juiz deve responder as proposições: quais são os interesses que, ao subsumir o fato à norma, ele estará protegendo? A proteção recairá sobre a coletividade ou privilegiará apenas grupos determinados? Os grupos que se beneficiam atualmente da norma, são os mesmos que foram afetados positivamente por ela ao tempo de sua edição?

Assim, a metodologia de interpretação da Escola da Jurisprudência dos Interesses parte de uma teoria histórico-objetiva, pois tem como telos a investigação científica da vontade normativa presente nas palavras da lei, desde a sua gênese, mas, relacionada aos interesses presentes na ocasião em que a mesma é vocacionada a ser aplicada. Por conseguinte:

O “legislador” não é simples ficção ou fantasma, mas designação que engloba todos os interesses da comunidade vigentes [leia-se, valores]. Assim a questão por vezes posta, de saber se a vontade procurada é a do legislador de hoje ou de ontem, resolve-se com clareza. O escopo da determinação judicial do direito é, sem dúvida, a proteção de interesses atuais. Mas a realização desse escopo tem como fator o conhecimento daqueles interesses cujas exigências se revelaram já em forma de lei. (HECK apud CAMARGO, 2003, p. 94).

Nota-se, então, que nessa concepção, interpretar o direito é um procedimento de desvelamento de suas causas. Ele se traduz, afinal, como a tutela de interesses, ora gerais, quando defendidos pela lei, ora individuais, no momento em que é salvaguardado por uma sentença, entendida como norma individual.

3.2.7 Escola Egológica

Carlos Cossio, jurista argentino, é o instituidor dessa Escola que, advoga a ideia de que o objeto da hermenêutica jurídica não é a norma, mas a conduta humana, de sorte que o Direito segue a mesma metodologia das outras ciências, pois:

O objeto de quem interpreta a física é a matéria e a energia, e não as leis da física, que são a representação conceitual. Os astrônomos estudam os astros, sendo as leis de Kepler, de Copérnico ou de Newton, conceituações decorrentes do estudo dos astros.

No Direito não é diferente: objeto da Ciência Jurídica é a conduta humana nas relações interpessoais, sendo o Direito Positivo a conceituação posterior e decorrente. Todo objeto cultural tem um substrato (que existe na realidade e é perceptível empiricamente pela experimentação) e um sentido (que é objeto de nossa valoração intelectual e valoração axiológica). (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 518, grifos nossos).

Desse modo, o Legislador não cria o direito, pois este deriva da conduta humana. Por isto, a norma é apenas uma categoria formal e conceitual de conhecimento da conduta, isto é, instrumento pelo qual o direito expressa-se e é apreendido cognitivamente, de um lado há a conduta, empírica e factual e de outro, a norma, que habita o universo abstrato e conceitual. Em outras palavras, enquanto a norma trata de um “dever-ser-lógico”, a conduta perfaz um “dever-ser-existencial”.

Assim sendo, preleciona Diniz (2009, p. 48):

Nota-se que, para a egologia, a norma não pode criar ou extinguir o direito. Tem ela um papel constitutivo dos modos de ser do direito (faculdade, prestação, ilícito ou sanção), mas não do ser do direito. A norma pode constituir um ato facultativo em obrigatório, em ilícito ou sanção, porém não pode fazer que a conduta seja compartida ou deixe de sê-lo; o comportamento apresenta-se assim por si mesmo. O legislador pode normar a conduta daqueles quatro modos. A criação legislativa do direito pode apenas confirmar ou modificar os modos de vida existentes, mas não elaborar a vida existente. O elaborador da norma pode converter em lícito um modo de viver antes ilícito, pode contribuir à criação do delito ou da prestação, porém essa ação legislativa não cria o direito.

Nesse contexto, a Escola Egológica tem esse nome porque o substrato do seu objeto é a conduta humana em seu viés intersubjetivo, de modo que o juiz não é convocado, em virtude do munus publicum do qual se reveste, a interpretar a lei abstratamente, mas a interpretar a conduta humana através dos parâmetros da lei, visto que, enquanto a conduta humana é o substrato, a lei é o seu sentido, de maneira que o jurista a analisa pela ótica da norma jurídica.

3.2.8 Escola Vitalista

O pensador Luís Recaséns Siches foi o precursor da Escola Vitalista. Nela, define-se o direito como forma de vida humana objetivada, uma vez que o universo jurídico faz parte da concretização da existência humana autêntica, tais como projetos, atos, cultura, etc. Como opina o jurista guatemalteco:

Uma norma jurídica é um pedaço de vida humana objetivada que, enquanto esteja evidente, é revivida de modo atual pelas pessoas que a cumprem ou aplicam, e que, ao ser revivida, deve experimentar modificações para ajustar-se às novas realidades em que e para que é revivida (SICHES apud CAPPI & CAPPI, 2004, p. 520).

Porém, ele constata que, eventualmente, verifica-se o descompasso entre a vida autêntica (a existência real) e a vida objetivada (a norma jurídica), pois a norma, por ser abstrata e necessitar de mecanismos burocráticos de mutação, tende a não acompanhar o compasso das mudanças sociais. Em vista disto, o legislador é convocado a atualizar a norma, a fim de torná-la harmônica com as relações humanas reais.

Assim sendo, essa Escola propõe, ao invés da lógica formal, a lógica do razoável como lógica jurídica aplicada, já que apenas por meio de um raciocínio pautado na razoabilidade, que embora se guie pela norma, avança para além dela, introduzindo-se na existência humana concreta e historicamente estabelecida, será possível ao magistrado emitir uma apreciação justa. Por isto, o juiz conta, quando chegar o momento de aplicar a norma a cada caso concreto, com o método axiológico de interpretação, uma vez que a norma jurídica aplicada, antes de ser resultado do conhecimento da realidade, é consequência de sua valoração.

3.2.9 Hermenêutica Crítica Alternativa

A Hermenêutica Crítica Alternativa nasceu como resultado de um movimento político, inspirado no pensamento de Karl Marx, engajado nas lutas das classes populares, que se deu após a Segunda Guerra Mundial. Os principais consolidadores, dentre outros, são: Sadok Belaid, na França, José Castan Tobeñas, na Espanha, Luís Fernando Coelho, José Eduardo Faria e Antonio Carlos Wolkmer, no Brasil.

A partir do ponto de vista desse movimento, o Direito é aparelho ideológico de Estado, pois se configura como institucionalização da ideologia burguesa. Por isto, concebe-se que:

A classe dominante monta um aparelho de coerção e de repressão social que lhe permite exercer o poder sobre toda a sociedade, fazendo-a submeter-se às regras políticas. O grande instrumento do Estado é o Direito. Isto é, o estabelecimento das leis que regulam as relações sociais em proveito dos dominantes. Através do Direito, o Estado aparece como legal, ou seja, como “Estado de direito”. O papel do Direito, ou das leis, é o de fazer com que a dominação não seja tida como uma violência, mas como legal, e por ser legal e não violenta deve ser aceita. Ora, se o Estado e o Direito fossem percebidos nessa sua realidade real, isto é, como instrumento para o exercício consentido da violência, evidentemente ambos não seriam respeitados e os dominados se revoltariam.

A função da ideologia consiste em impedir essa revolta fazendo com que o legal apareça para os homens como legítimos, isto é, como justo e bom. Assim, a ideologia substitui a realidade do Estado pela ideia do Estado, ou seja, a dominação de uma classe é substituída pela ideia de interesse geral, encarnado pelo Estado. E substitui a realidade do Direito pela ideia do Direito, ou seja, a dominação de uma classe por meio das leis é substituída pela representação ou ideias dessas leis como legítimas, justas, boas e válidas para todos. (CHAUÍ, 2002, p. 90-91).

Os conceitos clássicos das outras Escolas Jurídicas são relacionados à estrutura de pensamento binária de viés marxista: opressor x oprimido, burguesia x proletariado, maioria x minoria, etc., de tal forma que o Estado passa a ser percebido, essencialmente, como aparelho ideológico, a hermenêutica jurídica como atividade política e o poder estatal como poder burguês.

Por isso, a hermenêutica alternativa invita o Direito a responsabilizar-se por sua opção política: as massas populares, de modo a dar uma conotação crítica e alternativa aos métodos de interpretação jurídica. Denomina-se “crítica” porque busca desvelar os mecanismos ideológicos do direito positivo, e “alternativa” porque objetiva representar os anseios de participação democrática e emancipadora da sociedade civil e não a vontade conservadora do legislador.

Diante do exposto, para o direito crítico e alternativo, as fontes do direito sofrem transposições, pois são invertidas as posições da concepção clássica: a lei passa a ser fonte secundária e a jurisprudência fonte primária do direito, então o legislador faz lei, mas, não diz o direito, criando-o, adaptando-o e recriando-o, já que é tarefa do magistrado em sua interação intersubjetiva com os demais argumentadores do discurso jurídico.

Com papel central no ordenamento, deve o juiz utilizar, em virtude das lacunas, vácuos, fissuras e antinomias jurídicas, o direito burguês contra os próprios modos legais de opressão da burguesia, exercendo três funções ao aplicar a lei:

  1. função criadora: enquanto dá concretude, mediante o exercício do poder decisório, à abstração da lei, garantindo estabilidade e continuidade ao direito;
  2. função adaptadora: na medida em que adapta as normas jurídicas às mudanças constantes das aspirações democráticas da sociedade;
  3. função recriadora: quando, em atitude transgressora emancipatória, decide contra a lei, nos casos em que a justiça e a dignidade humana seriam prejudicadas por uma aplicação mecânica da normativa. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 525).

Diante dessa perspectiva, o juiz, ao se relacionar com toda a comunidade de ouvintes e falantes do universo jurídico, deve, com a autonomia e garantias constitucionais que, em virtude de sua função pública, o revestem, está comprometido não com quem o nomeou, mas com a realização da justiça: atendimento às aspirações e concretizações dos valores dos oprimidos (libertação, participação popular, pluralismo, emancipação das massas, etc.).

3.2.10 A Tópica de Theodor Viehweg

Com a publicação da obra “Tópica e Jurisprudência”, de autoria do pensador alemão Theodor Viehweg, em 1979 manifestou-se essa teoria, resultante de seu estudo da:

[...] tópica propriamente dita, tomando por base Aristóteles e Cícero. Aristóteles atribui como título de uma das partes do Organon o termo tópicos, em referência à antiga arsdisputationes dos retóricos e sofistas, tão combatida por Sócrates e Platão. Insere a tópica no campo da dialética, ou seja, da disputa e dos opostos, em contraposição ao gênero apodítico, representado pela ordem das verdades. Propõe-se a encontrar um método de raciocínio formulado a partir de opiniões tomadas como proposições e montar, daí, uma cadeia discursiva coerente (sem contradições), considerando todos os problemas possíveis de serem apresentados. (CAMARGO, 2003, p. 147-148).

Ela expressa-se como uma tentativa de delimitar as peculiaridades do discurso jurídico e defende que o caminho lógico para as soluções jurídicas difere do percurso da lógica formal, pois se baseia na teoria da argumentação e não na teoria da demonstração. Assim, reconhece-se que o direito é substancialmente dialético e argumentativo.

Por isso, o discurso jurídico é naturalmente problemático, apontando para diversas possibilidades de solução. Outrossim:

É nesse momento que entra em ação a Tópica, técnica do pensamento problemático, que já na retórica aristotélica nos ensinava a procurar pontos de partida aceitáveis, como início da argumentação, por serem lugares-comuns (topoi) que agregam consenso. Na opinião de Viehweg, é o momento mais rico do processo retórico, denominado, por ele, buscadas premissas. A retórica começa pela tópica. Topoi são, portanto, para Aristóteles, pontos de vista utilizáveis em toda a parte, que se empregam a favor ou contra o que é conforme a opinião aceita e que podem conduzir à verdade. (CAPPI & CAPPI, 2004, p. 338, grifos nossos).

Desse modo, o pensamento tópico se difere do pensamento lógico, enquanto aquele exibe o modo pelo qual se acham as premissas, este as recebe e as elabora, de maneira que a tópica precede à lógica. Os topoi são procurados no universo antropo-cultural compartilhados pelo auditório, dando ao juiz a possibilidade de resolver, caso a caso, em suas dimensões temporais, espaciais, circunstanciais e factuais. Eles objetivam alcançar raciocínios que resultam de premissas que aparentam ser verdadeiras em virtude de sua ampla aceitação.

Nesse sentido, quanto mais pluralista e fragmentada culturalmente uma sociedade, mais penoso se torna o trabalho do jurista, pois o recurso aos antecedentes, em virtude de reivindicações, pressões e mudanças pluriculturais velozes, torna-se, às vezes, um parâmetro envolto de obscuridade, de forma que o intérprete da norma, em atividade jurisdicional, ver-se ao ponto de “dar um salto no escuro”, tendo que escolher uma possibilidade de decisão razoável dentre infinitas possibilidades, impondo argumentos não por serem verdadeiros ou falsos, mas por trazerem respostas convincentes e pela necessidade de se por fim aos litígios.

Por conseguinte, a Tópica é a arte da argumentação, de modo que os topoi são as pegadas, no caminho retórico, pelas quais se orienta o jurista em sua busca de aplicar a normativa mais adequada a cada caso.

3.2.11 A Nova Retórica de Chaïm Perelman

Chaïm Perelman, professor de lógica da Universidade Livre de Bruxelas, que publicou, com Lucie Olbrechts-Tyteca, a obra intitulada “Tratado da Argumentação” (em 1958) é o mentor da Nova Retórica. Nesta, adota-se a retórica como teoria da argumentação, pois busca uma dimensão de racionalidade compatível com a vida prática.

Defende-se a ideia de que a razão além de lidar com verdades abstratas e formalmente demonstráveis, pode também trabalhar com valores, organizar preferências e fundamentar, de modo razoável, decisões judiciárias e argumentos jurídicos em geral.

Perelman e Lucie (2005) denunciam a perspectiva moderna de que a retórica, em nome de uma verdade evidente de natureza cartesiana, deveria ser esquecida, porque segundo ele, é preciso resgatar o raciocínio dialético valorizado desde a antiguidade clássica, sobretudo, pelo pai da lógica formal: Aristóteles.

Assim, busca-se um modo de dizer racional que, embora não se confunda com a lógica demonstrativa nem com um dizer artístico como a poesia, tenda a persuadir e envolver de probabilidade e verossimilhança uma tese qualquer, pois concebe que a razoabilidade não sendo racionalidade, também, não é emotividade.

Ao se evitar que lógica jurídica se reduza à lógica formal, constrói-se uma racionalidade que fomenta uma perspectiva aberta e tolerante de mundo, com o objetivo de imunizar o direito e a política contra as consequências negativas de uma lógica, cuja persecução seja exclusivamente a verdade irrefutável e a construção de um ordenamento estático, uno e absolutamente completo, assim como assevera os lógicos belgas:

Descartes nos diz com toda a clareza, na segunda metade do Discurso do método, que uma legislação que é obra de um só vale mais do que a que foi elaborada por vários através das transformações da história, pois é mais fácil a um só seguir um plano racional e apartar-se das contingências que constituem os hábitos e os costumes dos habitantes de um país. Vê-se como a visão cartesiana das relações entre Deus e os homens prepara e prefigura a teoria do poder absoluto sob todas as suas formas. A vontade do rei, pela graça de Deus, se torna a lei, justa porque emanação de um poder santificado. Essa ideologia glorifica a monarquia absoluta e justifica o uso da força para com aqueles que se atrevessem a revoltar-se contra sua arbitrariedade. (PERELMAN; LUCIE, 2005, p. 363-364).

O autor da obra “Lógica Jurídica” propõe que se deixe a concepção de que a verdade jurídica é algo que se descobre como única resposta a uma demanda provocada pelas partes em litígio e ao invés disso, se abarque uma noção de verdade jurídica que se se constrói, durante todo o processo do contraditório das partes, no percurso retórico, que envolve orador, mensagem e auditório. Este é entendido por Perelman (2004), como os operadores qualificados do direito para tomar decisões judiciais, isto é, o juiz e/ou o tribunal.

Por conseguinte, a verdade jurídica passa a ser compreendida como a versão assumida pelo juiz ou tribunal que dá maior inteligibilidade ao caso, em virtude de sua razoabilidade argumentativa.

Os argumentos emitidos pelas partes usam a normativa aplicável mais pertinente ao caso, visando a convencer e persuadir o júri ou o juiz, auditórios qualificados. A interação entre os argumentos das partes deve estar presente na motivação da sentença, pelo qual se resume toda a lógica processual. Com estes requisitos preenchidos, o órgão responsável pela prestação jurisdicional terá condições de referir um direito justo, équo e preservador da segurança jurídica e paz judiciária, a qual resulta de um tratar de modo juridicamente equivalente casos essencialmente semelhantes e de modo juridicamente diferente casos substancialmente dessemelhantes.

Feita essa breve exposição dos desdobramentos da lógica jurídica em diversas Escolas preocupadas em delimitar o modo específico de dizer do direito, apresentar-se-á, no último capítulo, uma exposição de como determinadas técnicas de argumentação jurídica foram utilizadas pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal que reconheceram a união homoafetiva como instituto jurídico na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277/Distrito Federal (ADI) e na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132/Rio de Janeiro (ADPF).

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Sobre o autor
Fábio Soares Rapôso

Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil Pela Universidade CEUMA - UniCEUMA. Licenciado em Filosofia pelo Instituto de Estudos Superiores do Maranhão - IESMA. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Advogado militante e professor de Filosofia do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão - IEMA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAPÔSO, Fábio Soares. As lógicas do discurso jurídico e aplicações práticas nos julgados do STF na ADI nº 4.277/DF e na ADPF nº 132/RJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5011, 21 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56502. Acesso em: 16 abr. 2024.

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