Capa da publicação Existe uma lógica jurídica? Como ela transita nas decisões do STF?
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As lógicas do discurso jurídico e aplicações práticas nos julgados do STF na ADI nº 4.277/DF e na ADPF nº 132/RJ

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21/03/2017 às 13:13
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4 análise do uso das lógicas jurídicas nos julgados do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 4.277/Distrito Federal e na ADPF nº 132/Rio de Janeiro

Antes de adentrar na análise dos principais argumentos jurídicos dos ministros do Supremo Tribunal Federal, far-se-á um breve relato acerca da historicidade das ações de controle concentrado que levaram ao novo paradigma jurídico acerca do reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar.

A ADPF nº 132 foi ajuizada pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, cumulada com pedido de concessão de medida liminar em face do Decreto-Lei nº 220/1975 (Estatuto dos Servidores Civis do Estado do Rio de Janeiro), pois, baseado no decreto do executivo, havia uma porção de decisões administrativas e judiciais que impediam aos servidores homoafetivos o gozo de determinados direitos previdenciários.

Em outras palavras, ela questionava a aplicação com interpretação inconstitucional dos incisos II e V, do art. 19 e dos incisos I a X do artigo 33 do Decreto-Lei 220/1975, posto que a interpretação que se tinha conferido a tais dispositivos implicava uma redução de direitos dos homossexuais.

Decisões judiciais e administrativas do Estado do Requerente negavam aos casais homoafetivos em união estável uma lista de direitos arrolados naqueles incisos, reconhecidos e gozados, por sua vez, de modo exclusivo pelos casais heterossexuais.

Assim, em virtude de o decreto estadual ter sido editado antes da Constituição Federal de 1988, sofreu, naturalmente, o controle de constitucionalidade por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, medida judicial subsidiária e cabível para avaliar, dentre outras coisas, a recepção ou não pela Constituição Federal de normas jurídicas anteriores a ela. Afinal, no Brasil, não se adota a teoria da inconstitucionalidade superveniente, de modo que, para que uma norma seja considerada inconstitucional por meio do julgamento, por exemplo, de uma ação declaratória de inconstitucionalidade, ela terá que entrar no mundo jurídico em momento posterior à Constituição.

Contudo, de acordo com a percepção consensual dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, a ADPF nº 132 restaura em parte prejudicada, uma vez que a legislação  fluminense desde 2007, no art. 1º da Lei nº 5.034/2007[14], fez a equiparação entre os servidores homossexuais e heterossexuais do Estado do Rio de Janeiro acerca dos direitos e deveres previstos em seu regime previdenciário.

Por isso, a Suprema Corte decidiu acolher o pedido subsidiário da ADPF nº 132 para ser, em face do princípio da fungibilidade, convertida e conhecida como ADI, a fim de que por meio da aplicação do princípio da interpretação, de acordo com a Constituição fosse dada ao art. 1.723 do Código Civil, de 2002[15], sentido hermenêutico analógico, a fim de que os mesmos direitos e obrigações da união estável entre homem e mulher fossem gozadas e adimplidas pela entidade familiar formada por pares do mesmo sexo.

Dessa forma, como a Procuradoria Geral da República[16] também ajuizou a ADI nº 4.227 com o mesmo pedido, o Supremo Tribunal Federal recebeu a ADPF como ADI, em conjunto com a ADI proposta pela Procuradoria, a fim de julgá-las simultaneamente.

Assim, por meio do mecanismo hermenêutico de mutação constitucional, o objetivo das ações de controle concentrado de inconstitucionalidade, era o de impossibilitar a lesão aos direitos fundamentais de casais que se relacionam afetivamente, mas que não se enquadram na relação familiar tradicional composta exclusivamente pela união entre homem e mulher, de modo que a eficácia da decisão pudesse transcender aos casais homoafetivos que integram o quadro de servidores públicos do Estado do Rio de Janeiro e ser aplicada aos homoafetivos em situação de união estável no território brasileiro em geral.

O autor da ADPF nº 132, o Governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, arguiu que os preceitos fundamentais da igualdade, da liberdade, da dignidade da pessoa humana e da segurança jurídica são constantemente violados em face de uma interpretação literal e reducionista da lei. Segundo ele, a homossexualidade é um:

[...] “fato da vida [...] que não viola qualquer norma jurídica, nem é capaz, por si só, de afetar a vida de terceiros”. Cabendo lembrar que o “papel do Estado e do Direito em uma sociedade democrática, é o de assegurar o desenvolvimento da personalidade de todos os indivíduos, permitindo que cada um realize os seus projetos pessoais lícitos”. (BRASIL, 2011, p. 05, grifos do autor).

O Autor buscou nos princípios constitucionais a fundamentação da ADPF. Ei-los:

  1. Princípio da Igualdade: é vedado conferir tratamento diferenciado a pessoas com base em sua origem, gênero e cor de pele (inciso IV do art. 3º);
  2. Princípio da Liberdade: autonomia plena na escolha da sua orientação sexual e de todos os desdobramentos que decorram dela;
  3. Princípio de Dignidade da Pessoa Humana: respeito aos projetos, desde que razoáveis, pessoais e coletivos de vida;
  4. Princípio da Segurança Jurídica: o não reconhecimento da união homoafetiva gera insegurança jurídica aos casais dessa relação;
  5. Princípio da Razoabilidade ou da Proporcionalidade: a restrição de direitos deve ser justificada equiparando-se bens jurídicos equivalentes, caso contrário, trata-se de mero preconceito.

Nesse diapasão, o autor da ação de controle de constitucionalidade defendeu a aplicação do método analógico de interpretação do Direito para equiparar as uniões estáveis homoafetivas às uniões heterossexuais estáveis. Desde que, tanto numa quanto noutra configuração de união sexual, faça-se presente os mesmos requisitos já acordados para os casais héteros, a saber, a convivência contínua, pública, notória, duradoura e que constitua uma unidade familiar doméstica. A partir desses pressupostos, para ambas as formas de família, alicerçadas pelo vínculo afetivo entre os conviventes, devem ser garantidas as mesmas prerrogativas consignadas pelo art. 1.723 do Código Civil.

O arguente solicitou a declaração, liminarmente, da validade jurídica das decisões administrativas que equiparam as uniões homoafetivas às uniões estáveis e pediu ainda a suspensão dos processos e dos efeitos de decisões judiciais em sentido oposto.

Em razão do recebimento da ADPF, o relator, Ministro Ayres Britto, solicitou informações aos arguidos: Governador do Estado do Rio de Janeiro, Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e Tribunais de Justiça dos Estados. Eis a síntese do pedido de informações:

I – Dos Tribunais de Justiça Estaduais informações acerca das ações em trâmite em seu espaço de jurisdição as posições majoritárias em favor da equiparação entre a união estável de casais heteroafetivos e às de traço homoafetivo; e também, as posições majoritárias contra o reconhecimento dos efeitos da união estável à união entre parceiros do mesmo sexo.

II – Da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro quanto sua manifestação sobre o tema na Lei Estadual 5.034/2007. Que arrola companheiros do mesmo sexo como dependentes para fins previdenciários dos servidores públicos fluminenses.

III – Da Advocacia-Geral[17] da União que se manifestou da seguinte maneira:

Direitos Fundamentais. Uniões homoafetivas. Servidor Público. Normas estaduais que impedem a equiparação do companheiro de relação homoafetiva como familiar. Preliminares. Conhecimento parcial da ação. Falta de pertinência temática e de interesse processual. Mérito: observância dos direitos fundamentais à igualdade e à liberdade. Exigências do bem comum. Direito comparado. Decisões dos Tribunais Superiores. Manifestação pelo conhecimento parcial da ADPF para que, nessa parte, seja julgado procedente, sem pronúncia de nulidade, com interpretação conforme a Constituição [somente dos dispositivos do Decreto-lei estadual n° 200/75], a fim de contemplar os parceiros da união homoafetiva no conceito de família. (BRASIL, 2011, p. 08, grifos do autor).

IV – Da Procuradoria-Geral da República que através de sua Vice Procuradora-Geral, Dra. Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, posicionou-se pela declaração da obrigatoriedade do reconhecimento, como entidade familiar, da união entre pessoas do mesmo sexo. Contanto que atendidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher.

a) o não reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar pela ordem infraconstitucional brasileira priva os parceiros destas entidades de uma série de direitos patrimoniais e extrapatrimoniais, e revela também a falta de reconhecimento estatal do igual valor e respeito devidos à identidade da pessoa homossexual;

b) este não reconhecimento importa em lesão a preceitos fundamentais da Constituição, notadamente aos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III), da vedação à discriminação odiosa (art. 3º, inciso IV), e da igualdade (art. 5º, caput), da liberdade (art. 5º, caput) e da proteção à segurança jurídica;

c) é cabível in casu a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, uma vez que a apontada lesão decorre de atos omissivos e comissivos dos Poderes Públicos que não reconhecem esta união, dentre os quais se destaca o posicionamento dominante do Judiciário brasileiro, e inexiste qualquer outro meio processual idôneo para sanar a lesividade;

d) a redação do art. 226, §3º, da Constituição, não é óbice intransponível para o reconhecimento destas entidades familiares, já que não contém qualquer vedação a isto;

e) a interpretação deste artigo deve ser realizada à luz dos princípios fundamentais da República, o que exclui qualquer exegese que aprofunde o preconceito e a exclusão sexual do homossexual;

f) este dispositivo, ao conferir tutela constitucional a formações familiares informais antes desprotegidas, surgiu como instrumento de inclusão social. Seria um contra-senso injustificável interpretá-lo como cláusula de exclusão, na contramão da sua teleologia;

g) é cabível uma interpretação analógica do art. 226, §3º, pautada pelos princípios constitucionais acima referidos, para tutelar como entidade familiar a união entre pessoas do mesmo sexo;

h) diante da falta de norma regulamentadora, esta união deve ser regida pelas regras que disciplinam a união estável entre homem e mulher, aplicadas por analogia. (BRASIL, 2011, p. 09-10).

Além disso, o relator deferiu os pedidos de ingresso na causa de 14 (quatorze) amici curiae[18]. A maioria deles era de entidades copertencentes à causa, de sorte que, em uníssono, com exceção da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, advogaram em favor da tese do autor, pela qual, no mérito, postulavam a aplicação do regime jurídico da união estável às relações homoafetivas.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277 foi proposta, subsidiariamente, à ADPF nº 132, pela Procuradoria-Geral da República, com a finalidade de conferir interpretação conforme a Constituição aos incisos II e V do art. 19 e ao art. 33 do Decreto-lei n° 220/75 (Estatuto dos Servidores Públicos do Estado do Rio de Janeiro) e ao art. 1.723 do Código Civil, solicitando, assim, ao Supremo Tribunal Federal, que declare:

[...] “a) que é obrigatório o reconhecimento, no Brasil, da união entre pessoas do mesmo sexo, como entidade familiar, desde que atendidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher; e b) que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis estendam-se aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo.” (BRASIL, 2011, p. 10-11, grifos do autor).

Relata-se que, na ADI se pediu a declaração da aplicação do regime jurídico da união estável às uniões entre pessoas do mesmo sexo. E para isto, fundamentou-se nos mesmos princípios da ADPF nº 132: dignidade da pessoa humana, igualdade, vedação de discriminações odiosas, liberdade e proteção à segurança jurídica e extensão do status de família às relações homoafetivas. Em suma, o Supremo Tribunal Federal:

Ao julgar a ADI nº 4.277/DF em conjunto com a ADPF nº 132/RJ na sessão plenária realizada em 5-5-2011, por unanimidade, acolheu os pedidos formulados em tais demandas, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, para afirmar a possibilidade jurídica de haver união estável entre pessoas do mesmo sexo. Conformando o sentido do art. 1.723 do Código Civil à Constituição, entendeu a Corte Suprema dever ser excluído desse dispositivo qualquer significado que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo. Salientou-se no julgamento que o art. 3º, IV, da Lei Maior veda qualquer discriminação em virtude de sexo, raça, cor e que, nesse sentido, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função de sua preferência sexual. (GOMES, 2011, p. 166-167).

Feita a breve historiografia das ações de controle de constitucionalidade, usadas como modelo nesse trabalho, far-se-á a análise dos principais argumentos que fundamentaram as decisões dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, destacando-se as teorias gerais e lógicas dos direitos das quais elas, expressa ou tacitamente, partem.

4.1 O voto do Ministro Relator: Aires Britto

O jurista da Corte Constitucional, Aires Britto, em seu voto, decide converter, preliminarmente, a ADPF nº 132/RJ em ADI, para ser julgada em conjunto com a ADI nº 4.277/DF. Ele aceitou também o preenchimento do requisito da pertinência temática, isto é, do interesse de agir processual do Governador do Estado do Rio de Janeiro para a propositura da primeira ação. Além disto, considerou procedente o pedido do autor de usar a técnica de se interpretar o artigo 1.723 do Código Civil em analogia à Constituição.

Feitas essas considerações iniciais, passa-se, então, à análise da estrutura lógica dos principais argumentos que balizaram a sua decisão e se busca apresentar elementos das Escolas Lógicas do direito a partir das quais eles se fundamentam.

A princípio, o ilustre jurista enfrenta a questão de se o termo “homoafetividade” é ou não o mais apropriado para ser usado contemporaneamente, pois outrora, foi utilizado o termo “homossexualismo” e posteriormente “homossexualidade”. Assim, de acordo com Aires Britto:

[...] o termo “homoafetividade”, aqui utilizado para identificar o vínculo de afeto e solidariedade entre os pares ou parceiros do mesmo sexo, não constava dos dicionários da língua portuguesa. O vocábulo foi cunhado pela primeira vez na obra “União Homossexual, o Preconceito e a Justiça”, da autoria da desembargadora aposentada e jurista Maria Berenice Dias, consoante a seguinte passagem: “Há palavras que carregam o estigma do preconceito. Assim, o afeto a pessoa do mesmo sexo chamava-se ‘homossexualismo’. Reconhecida a insuficiência do sufixo ‘ismo’, que está ligado a doença, passou-se a falar em ‘homossexualidade’, que sinaliza um determinado jeito de ser. Tal mudança, no entanto, não foi suficiente para pôr fim ao repúdio social ao amor entre iguais” (Homoafetividade: um novo substantivo). (BRITTO, 2011, p. 05)[19].

Desse modo, a partir dessas premissas, constata-se que o fenômeno da união afetiva e sexual entre pessoas do mesmo sexo é compreendido por três hermenêuticas diferentes, duas antigas e uma nova. A primeira (“homossexualismo”), a vê como patologia; a segunda (“homossexualidade”), como um modo de ser, mas ainda revestida de preconceitos; e a terceira (“homoafetividade”), fruto da mentalidade contemporânea, percebe-a sem preconceitos e como mais uma das variadas formas de expressão da sexualidade e do amor humanos.

A contemporaneidade da expressão “homoafetividade” é ainda constatada, segundo o Ministro do Supremo Tribunal Federal, em virtude de ser notória a presença marcante do mesmo nos dicionários, pois estes são referências de medida da evolução de um determinado referencial linguístico e cultural.

Sucede que não foi somente a comunidade dos juristas, defensora dos direitos subjetivos de natureza homoafetiva, que popularizou o novo substantivo, porque sua utilização corriqueira já deita raízes nos dicionários da língua portuguesa, a exemplo do “Dicionário Aurélio”. Verbete de que me valho no presente voto para dar conta, ora do enlace por amor, por afeto, por intenso carinho entre pessoas do mesmo sexo, ora da união erótica ou por atração física entre esses mesmos pares de seres humanos. (BRITTO, 2011, p. 05-06).

Assim sendo, a primeira parte da fundamentação de sua decisão está enraizada, preponderantemente, na perspectiva da Escola Vitalista, uma vez que, segundo a mentalidade do vitalismo jurídico, o direito como forma de vida objetivada tem que acompanhar a vida autêntica, a existência real composta por atos, projetos e costumes circunscritos por uma cultura. Ora, a nova mentalidade, não permite mais que se chame, juridicamente e com razoabilidade, o fenômeno da união entre pessoas do mesmo sexo de homossexualismo ou homossexualidade, mas sim de homoafetividade.

Depois disso, o relator prossegue no itinerário argumentativo tentando definir o que mais caracteriza o ser humano e para isso se apoia na antropologia filosófica. Esta definição, do ponto de vista da persuasão racional, é importante para se naturalizar a dimensão pluralista da expressão do amor.

O ser humano é, essencialmente, razão, vontade ou amor? O jurista opta pelo terceiro atributo ontológico ao descrever a união homoafetiva nestes termos:

Trata-se, isto sim, de uma união essencialmente afetiva ou amorosa, a implicar um voluntário navegar emparceirado por um rio sem margens fixas e sem outra embocadura que não seja a confiante entrega de um coração aberto a outro. E não compreender isso talvez comprometa por modo irremediável a própria capacidade de interpretar os institutos jurídicos a pouco invocados, pois – é Platão quem diz: “quem não começa pelo amor nunca saberá o que é filosofia”. É a categoria do afeto como pré-condição do pensamento, o que levou Max Scheler a também ajuizar que “O ser humano, antes de um ser pensante ou volitivo, é um ser amante.” (BRITTO, 2011, p. 06, grifos do autor).

Dessa maneira, a concepção tradicional e cartesiana acerca da essência humana (“penso, logo existo”), segundo a qual o homem é primária e preponderantemente um animal racional, é abandonada, de sorte que, nesse momento, ele passa a ser compreendido, previamente, como um ser amante (“amo, logo existo”).

Por isso, o objeto para o qual ele orienta o seu amor, seja ele eros (sexual) ou filia (afeto), define, ontologicamente, a sua personalidade. Em suma, no processo de formação da personalidade humana, o amor precede a razão e a vontade, de forma que o Estado, ao trazer para si a missão de propiciar elementos concretos para o desenvolvimento das potencialidades humanas, tem que oferecer as condições fundamentais para que o homem e a mulher vivam a sua condição primária de “ser-amante” com dignidade.

O Ministro sergipano também recorre, dentre pensadores como Descartes (Filosofia), Fernando Pessoa (Literatura), Chico Xavier (Religião), especialmente a Nietzsche e Hegel, no âmbito da antropologia filosófica, e a Iung, na dimensão da Psicologia, para desconstruir de vez qualquer pretensão de que a homossexualidade tenha causa patológica.

Assim, ele expressa-se ao tentar definir a livre disposição da sexualidade:

[...] Um tipo de liberdade que é, em si e por si, um autêntico bem de personalidade. Um dado elementar da criatura humana em sua intrínseca dignidade de universo a parte. Algo já transposto ou catapultado para a inviolável esfera da autonomia da vontade do indivíduo, na medida em que sentido e praticado como elemento da compostura anímica e psicofísica (volta-se a dizer) do ser humano em busca de sua plenitude existencial. Que termina sendo uma busca de si mesmo, na luminosa trilha do “Torna-te quem tu és”, tão bem teoricamente explorada por Nietzsche. Uma busca da irrepetível identidade individual que, transposta para o plano da aventura humana como um todo, levou Hegel a sentenciar que a evolução do espírito do tempo se define como um caminhar na direção do aperfeiçoamento de si mesmo (cito de memória). Afinal, a sexualidade, no seu notório transitar do prazer puramente físico para os colmos olímpicos da extasia amorosa, se põe como um plus ou superávit de vida. Não enquanto um minus ou déficit existencial. Corresponde a um ganho, um bônus, um regalo da natureza, e não a uma subtração, um ônus, um peso ou estorvo, menos ainda a uma reprimenda dos deuses em estado de fúria ou alucinada retaliação perante o gênero humano. No particular, as barreiras artificiais e raivosamente erguidas contra ele (sexo ou aparelho sexual) corresponde a um derramamento de bílis que só faz embaraçar os nossos neurônios. Barreiras que se põem como pequenez mental dos homens, e não como exigência dos deuses do Olimpo, menos ainda da natureza. O que, por certo, inspirou Jung (Carl Gustav) a enunciar que: “A homossexualidade, porém, é entendida não como anomalia patológica, mas como identidade psíquica e, portanto, como equilíbrio específico que o sujeito encontra no seu processo de individuação”. (BRITTO, 2011, p. 12-13, grifos do autor).

O jurista do STF também mostra estar influenciado pelas perspectivas das Escolas Histórica, Egológica e do Direito Livre ao defender que, na labuta interpretativa, a definição de família, deve levar em consideração os costumes atuais do povo, a conduta real dos indivíduos, a supremacia do direito material sobre o direito positivo.

Então, ele proclama, depois de analisar todos os artigos da Constituição Federal, pelos quais, o ordenamento jurídico, protege a família:

[...] Mas, família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heterossexuais ou por pessoas assumidamente homoafetivas. Logo, família como fato cultural e espiritual ao mesmo tempo (não necessariamente como fato biológico).

[...] Deveras, mais que um singelo instituto de Direito em sentido objetivo, a família é uma complexa instituição em sentido subjetivo.

Ora bem, é desse anímico e cultural conceito de família que se orna a cabeça do art. 226 da Constituição. Donde a sua literal categorização com “base da sociedade”. E assim normada como figura central ou verdadeiro continente para tudo o mais, ela, família, é que deve servir de norte para a interpretação dos dispositivos em que o capítulo VII se desdobra [...]. Não o inverso. Artigos que tem por objeto os institutos do casamento civil, da união estável, do planejamento familiar, da adoção, etc., todos eles somente apreendidos na inteireza da respectiva compostura e funcionalidade na medida em que imersos no continente (reitere-se o uso da metáfora) em que a instituição da família consiste. (BRITTO, 2011, 20-23).

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Por fim, o Ministro insiste que se abandone uma interpretação literal e isolada do § 3º, do art. 226 da Constituição Federal, bem como do art. 1.723 do Código Civil, a fim de que, por meio de uma interpretação sistemática e teleológica, possa-se se aplicar analogicamente o regime jurídico da união estável às pessoas unidas homoafetivamente[20].

No discurso lógico do Ministro, é flagrante a presença de traços das Escolas: dos Pandectistas (que valoriza o método sistemático de interpretação) e Teleológica (que visualiza a finalidade da norma).

Em virtude disso, ele aduz que a Constituição veda: 1º) o preconceito em razão do sexo ou da natural diferença entre a mulher e o homem; 2º) a interferência repressora do Estado quanto à liberdade sobre o uso concreto da sexualidade, de sorte a ser proibido, simultaneamente, discriminar um ser humano em virtude de pertencer à espécie masculina ou feminina, em função de sua preferência sexual, ou em face de sua escolha de fazer ou não uso da sua sexualidade; 3º) a lesão aos direitos fundamentais à intimidade e vida privada, materializados, no caso, no factual emprego da sexualidade humana; 4º) qualquer dificuldade jurídica de realização do princípio da igualdade, o qual serve de norte das relações entre os membros da espécie humana no que tange as suas tendências ou preferências sexuais, salvaguardando e não embaraçando, a autonomia da vontade do indivíduo; 5º) a desigualdade entre os casais heteroafetivos e pares homoafetivos no exercício do direito subjetivo de formação de uma família, que se fenomeniza a partir das notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade; 6º) o estabelecimento de qualquer noção de hierarquia entre as espécies de entidade familiar formadas por casamento civil, união estável ou pela família monoparental; 7º) o entendimento preconceituoso de qualquer distinção entre a capacidade de adotar entre os homoafetivos e heteroafetivos.

4.2 O voto do Ministro: Luiz Fux

O Ministro Luiz Fux, em seu voto, também decide converter, preliminarmente, a ADPF nº 132/RJ em ADI, para ser apensada aos autos da ADI nº 4.277/DF e ser julgada junto com ela. Concordou, outrossim, que houve o preenchimento do requisito da pertinência temática, isto é, do interesse de agir processual do Governador do Estado do Rio de Janeiro para a propositura da primeira ação e considerou o fato de que a Procuradora Geral da República é legitimada universal e, por isso, faz-se desnecessário comprovar o seu interesse processual de agir.

Além disso, considerou procedente o pedido subsidiário do autor de usar a técnica de se interpretar o artigo 1.723 do Código Civil equipolente à Constituição.

Feitas essas observações, destacam-se os principais argumentos emitidos pelo jurista para fundamentar a sua decisão e as Escolas de Lógica Jurídica que o influenciaram.

A primeira premissa utilizada pelo Ministro da Corte Constitucional é a de que não reconhecer o direito fundamental das pessoas homoafetivas de unirem-se e formarem uma entidade familiar é lesar o direito de personalidade de quem tem uma orientação sexual minoritária. Ele alega isso nestes termos:

No caso em apreço, trata-se de questão concernente a violação de direitos fundamentais inerentes à personalidade dos indivíduos que vivem sob orientação sexual minoritária, idôneos a autorizar o manejo da ADI pelo Estado do Rio de Janeiro, por intermédio do Exmo. Sr. Governador.

[...] a homossexualidade é um fato da vida. Há indivíduos que são homossexuais e, na formulação e na realização de seus modos e projetos de vida, constituem relações afetivas e de assistência recíproca, em convívio contínuo e duradouro – mas, por questões de foro pessoal ou para evitar a discriminação, nem sempre público – com pessoas do mesmo sexo, vivendo, pois, em orientação sexual diversa daquela em que vive a maioria da população. (FUX, 2011, p. 07-08).

Nesse ponto, percebem-se claramente as influências das Escolas da Jurisprudência dos Interesses (que se preocupa com questão de qual interesse e de que grupo está sendo protegido com a edição da norma) e da Hermenêutica Crítica Alternativa (que tem como um de seus focos o direito direcionado para a proteção de minorias).

O jurista carioca, no percurso argumentativo, aceita as seguintes teses: 1ª) a homossexualidade faz parte do conjunto de facticidades da vida; 2ª) a homossexualidade é uma orientação e não uma opção sexual. Por isso, é um traço da personalidade; 3ª) a homossexualidade não é uma ideologia ou uma crença; 4ª) os homossexuais constituem entre si relações contínuas e duradouras de afeto e assistência recíprocas, com o propósito de compartilhar meios e projetos de vida; 5ª) não há qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade no estabelecimento de uniões homoafetivas. Não existe no direito brasileiro, vedação às uniões homoafetivas, haja vista, sobretudo, a reserva de lei instituída pelo art. 5º, II[21], da Constituição Federal para vedação de quaisquer condutas aos indivíduos.

A quinta tese, do ponto de vista jurídico, é a mais importante e tem característica evidente do raciocínio lógico estabelecido pelo Formalismo de Hans Kelsen, pois, segundo o pensador austríaco, tudo o que não está juridicamente proibido, está permitido pelo ordenamento e, por conseguinte, juridicamente determinado.

É nesse sentido que não é razoável que se adote a posição doutrinária antiga dos civilistas de que o casamento de pessoas do mesmo sexo tratar-se-ia de exemplo de ato jurídico inexistente.

Depois, o Ministro busca responder ao seguinte problema: se é obvio que as uniões homoafetivas encontram amparo na Constituição, então qual é o tratamento jurídico, exato e adequado, de modo constitucional, a ser conferido à união homoafetiva?

Ao colocar a problemática da especificidade do problema jurídico das uniões homoafetivas, o Ministro, sutilmente, deixa a sua argumentação ser tocada pela lógica da “Tópica de Theodor Viehweg”, pois, o juiz, nesta estrutura de pensamento, tem a possibilidade de resolver, caso a caso, o problema jurídico que lhe aparece, desde que leve em consideração suas dimensões temporais, espaciais e circunstanciais.

De acordo com o ilustre jurista, a união homoafetiva goza de todas as características factuais de toda e qualquer espécie de entidade familiar, mas falta-lhe o reconhecimento jurídico, meta dos autores da ação de controle de constitucionalidade. Assim, discursa:

O que, então, caracteriza, do ponto de vista ontológico, uma família? [...]

O que faz uma família é, sobretudo, o amor – não a mera afeição entre os indivíduos, mas o verdadeiro amor familiar, que estabelece relações de afeto, assistência e suporte recíprocos entre os integrantes do grupo. O que faz uma família é a comunhão, a existência de um projeto coletivo, permanente e duradouro de vida em comum. O que faz uma família é a identidade, a certeza de seus integrantes quanto a existência de um vínculo inquebrantável que os une e que os identifica uns perante os outros e cada um deles perante a sociedade. Presente esses três requisitos, tem-se uma família, incidindo, com isso, a respectiva proteção constitucional. (FUX, 2011, p. 12-13).

Por conseguinte, como as uniões homoafetivas gozam das mesmas características das uniões heteroafetivas, a saber: o amor, a comunhão e a identidade, qualquer pretensão de estabelecer diferenças legais entre eles não resiste ao “teste da isonomia”, de fato que, o tratamento constitucional adequado é aquele que concede à união entre pessoas do mesmo sexo o mesmo tratamento dispensado às uniões formadas por pessoas de sexos opostos.

Para fundamentar essa opinião, o autor recorre aos pensamentos, dentre outros autores, de Roberty Alexy (para quem “inexistindo razão suficiente para tratamento jurídico diferenciado, impõe-se o tratamento idêntico”), Ronald Dworkin (para o qual “todos os indivíduos devem ser tratados com igual consideração e respeito”) e aos valores constitucionais da igualdade, fraternidade, pluralismo, ausência de preconceitos e de discriminação de qualquer natureza presentes no preâmbulo[22] e no inciso IV[23], do art. 3º, e caput[24] do art. 5º, todos da Constituição Federal.

Desse modo, o jurista aproxima-se da concepção formal de justiça proposta pela “Nova Retórica” de Perelman, para a qual casos essencialmente semelhantes devem ser tratados de modo juridicamente equivalentes.

Ao prosseguir o seu raciocínio, o Ministro persiste ainda na importância do reconhecimento positivo das uniões homoafetivas como juridicamente legítimas, uma vez que isso tem como efeitos: o respeito e a amizade à diferença, a segurança jurídica, a certeza e previsibilidade das consequências jurídicas dessas uniões, o gozo certo de benefícios previdenciários, etc.

Além disso, ele defende que esta é a melhor interpretação a ser dada às normas constitucionais, uma vez que otimiza a concretização do telos constitucional e a moldura do ordenamento jurídico abre-se para regular as mudanças das relações fáticas.

Por fim, ele defende uma interpretação sistemática da Constituição, de modo a se evitar uma interpretação restritiva do art. 226, § 3º[25], da Constituição e do art.1.723 do Código Civil, de maneira que fica clara a influência, neste ponto, das Escolas: dos “Pandectistas” (que valoriza o método sistemático de interpretação) e “Teleológica” (que visualiza a finalidade da norma).

4.3 O voto da Ministra: Cármen Lúcia

A Ministra Cármen Lúcia, seguindo os votos dos demais membros da Corte Constitucional, também, julga procedentes os pedidos dos autores e decide que o art. 1723 do Código Civil seja interpretado proporcionalmente à Constituição, a fim de que as uniões de pessoas do mesmo sexo, consideradas entidades familiares, sejam salvaguardadas dos mesmos direitos e deveres das uniões estáveis de pessoas de sexos opostos.

Ante o exposto, acentuam-se os principais argumentos emitidos pela jurista para fundamentar a sua decisão e as Escolas de Lógica Jurídica que a influenciaram.

A princípio, Cármen Lúcia observa que a busca de conquista e de efetivação de direitos pelos homossexuais está associada à luta pelos direitos em geral, especialmente pelos direitos de minorias. Em suas palavras:

Observo, inicialmente, que a conquista de direitos é tão difícil quanto curiosa. A luta pelos direitos é árdua para a geração que cuida de batalhar pela sua aquisição. E parece uma obviedade, quase uma banalidade, para as gerações que os vivem como realidades conquistadas e consolidadas.

Bobbio afirmou, na década de oitenta do séc. XX, que a época não era de conquistar novos direitos, mas tornar efetivos os direitos conquistados.

Este julgamento demonstra que ainda há uma longa trilha, que é permanente na história humana, para a conquista de novos direitos. A violência continua, minorias são violentadas, discriminações persistem. Veredas há a serem palmilhadas, picadas novas há a serem abertas para o caminhar mais confortável do ser humano. (LÚCIA, 2011, p. 01).

Ao apontar os temas acerca da luta pelos direitos e da busca do reconhecimento jurídico das pretensões das minorias, fica evidente as presenças das linhas de raciocínio das Escolas de Lógicas Jurídicas denominadas de “Teleológica do Direito” (para a qual o direito é resultado de luta e de guerra) e de “Hermenêutica Crítica Alternativa” (para quem o direito deve estar também a serviço das minorias em prol da efetiva realização da justiça social).

A Ministra prossegue, no desenvolvimento de sua argumentação, alegando que o art. 1.723 do Código Civil deve ser interpretado concordante à Constituição, em virtude de sua conexão com os princípios e direitos fundamentais, a fim de que se evite uma interpretação literal, o que excluiria dos direitos próprios da união estável aqueles que escolhem viver em uniões homoafetivas.

Ela defende ainda a tese segundo a qual, em face de que o art. 1.723 do Código Civil e a repetição literal do § 3º, do art. 226 da Constituição Federal, o próprio parágrafo constitucional deve ser interpretado de forma a incluir as uniões homoafetivas em seu rol de possibilidades de formação de entidades familiares.

Há nessa concepção uma nítida aproximação das Escolas dos “Pandectistas” (que destaca a importância do método sistemático de interpretação) e Escola Teleológica (que visualiza a finalidade da norma).

A jurista mineira avança na trilha argumentativa, e afirma que o direito a escolher a forma de exercício da própria sexualidade, com a segurança jurídica garantida pelo Estado de Direito, está diretamente associado à concretização do direito fundamental à liberdade. Por isso, ao continuar seus comentários sobre o § 3º, do art. 226 da Constituição, assegura:

Mas é exato que a referência expressa a homem e mulher garante a eles, às expressas, o reconhecimento da união estável como entidade familiar, como os consectários jurídicos próprios. Não significa, a meu ver, contudo, que se não for um homem e uma mulher, a união não possa vir a ser também fonte de iguais direitos. Bem ao contrário, o que se extrai dos princípios constitucionais é que todos, homens e mulheres, qualquer que seja a escolha do seu modo de vida, têm os seus direitos fundamentais à liberdade, a ser tratado com igualdade em sua humanidade, ao respeito, à intimidade devidamente garantidos.

Para ser digno há que ser livre. E a liberdade perpassa a vida de uma pessoa em todos os seus aspectos, aí incluído o da liberdade de escolha sexual, sentimental e de convivência com outrem. (LÚCIA, 2001, p. 06).

Ao concluir, ela, ainda, na esteira de uma interpretação sistemática e principiológica, aduz que o reconhecimento jurídico da união homoafetiva como entidade familiar é legítimo, uma vez que possibilita a efetividade de outros princípios e objetivos constitucionais, tais como: “a construção de uma sociedade justa, livre e solidária” (inciso I, do art. 3º, da CF/88); “a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (inciso IV, do art. 3º, da CF/88); “a igualdade de cidadania” (inciso II, do art. 1º, da CF/88), “a dignidade humana e jurídica” (inciso I, do art. 1º da CF/88), “o direito à intimidade” (inciso X, do art. 5º, da CF/88) e “o pluralismo político e social” (inciso V, do art. 1º, da CF/88).

4.4 O voto do Ministro: Ricardo Lewandowski

O Ministro da Suprema Corte, Ricardo Lewandowski, também entendeu procedente os pedidos dos autores das ações de controle de constitucionalidade de reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas, porém, com algumas ressalvas, que se desvelarão nos principais fundamentos de sua argumentação expostos abaixo.

No início, o jurista carioca salienta a importância de se determinar o conceito de família presente no caput do art. 226[26] da Carta Magna vigente. Para isto, ele compara o texto da Constituição atual, quando trata da noção de família, com os textos das Constituições revogadas. E assim o faz:

De início, cumpre fazer uma resenha da noção de família abrigada nas Constituições anteriores à presentemente em vigor, registrando, desde logo, que todas que trataram do tema vinculavam a ideia de família ao instituto do casamento. Senão vejamos:

i) Constituição de 1937: “Art. 124. A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Às famílias numerosas serão atribuídas compensações nas proporções de seus encargos.”

ii) Constituição de 1946: “Art. 163. A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado.”

iii) Constituição de 1967: “Art. 167. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Podêres Públicos”.

iv) Emenda Constitucional 1/1969: “Art. 175. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Podêres Públicos” (grifos meus).

A vigente Carta Republicana, todavia, não estabelece essa vinculação com o casamento para definir o conceito de família tal como faziam as anteriores.

Na verdade, a partir de uma primeira leitura do texto magno, é possível identificar, pelo menos, três tipos de família, a saber: a constituída pelo casamento, a configurada pela união estável e, ainda, a que se denomina monoparental. (LEWANDOWSKI, 2011, p. 01-02, grifos do autor).

Ao superar o problema da definição jurídica de família a partir dos parâmetros constitucionais hodiernos, Ricardo Lewandowski, passa a enfrentar a seguinte questão: é possível enquadrar as uniões homoafetivas em uma dessas três espécies de família definidas pela Constituição e pela legislação infraconstitucional?

A resposta é negativa, pois até mesmo a possibilidade de aplicar a técnica de interpretação conforme a intenção do legislador, tão cara à “Escola dos Pandectistas”, parece não resistir a uma análise mais aprofundada do Diário da Assembleia Nacional Constituinte[27]. Assim, ele arremata:

Verifico, ademais, que, nas discussões travadas na Assembléia Constituinte a questão do gênero da união estável foi amplamente debatida, quando se votou o dispositivo em tela, concluindo-se, de modo insofismável, que a união estável abrange, única e exclusivamente, pessoas de sexo distinto. Confira abaixo:

O SR. CONSTITUINTE GASTONE RIGHI: - Finalmente a emenda do constituinte Roberto Augusto. É o art. 225 (sic), § 3º. Este parágrafo prevê: ‘Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento’.

Tem-se prestado a amplos comentários jocosos, seja pela imprensa, seja pela televisão, com manifestação inclusive de grupos gaysés do País, porque com a ausência do artigo poder-se-ia estar entendendo que a união poderia ser feita, inclusive, entre pessoas do mesmo sexo. Isto foi divulgado, por noticiário de televisão, no showástico, nas revistas e jornais. O bispo Roberto Augusto, autor deste parágrafo, teve a preocupação de deixar bem definido, e se no §º: “ ‘Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’. Claro que nunca foi outro o desiderato desta Assembléia, mas, para se evitar toda e qualquer malévola interpretação deste austero texto constitucional, recomendo a V. Exa. que me permitam aprovar pelo menos uma emenda.

O SR. CONSTITUINTE ROBERTO FREIRE: - Isso é coação moral irresistível.

O SR. PRESIDENTE (ULYSSES GUIMARÃES): - Concedo a palavra ao relator.

O SR. CONSTITUINTE GERSON PERES: - A Inglaterra já casa homem com homem a muito tempo.

O SR. RELATOR (BERNARDO CABRAL): - Sr. Presidente, estou de acordo.

O SR. PRESIDENTE (ULYSSES GUIMARÃES) - Todos os que estiverem de acordo permaneçam como estão. (Pausa). Aprovada (Palmas).” (LEWANDOWSKI, 2011, p. 04-05, grifos do autor).

Portanto, ressalta-se que os constituintes da Constituição vigente excluíram, intencionalmente, a união entre pessoas do mesmo sexo do conceito jurídico de união estável, de maneira que, por definição legal, a união estável apenas abarca pessoas de sexos opostos que se unem por laços de afeto.

Por isso, o Ministro entende que, sendo fiel ao princípio da separação dos poderes, umas das cláusulas de eternidade, e para não forçar o texto constitucional a dizer o que ele não diz, é necessário se inferir que a união homoafetiva, embora encontre guarida nos princípios e direitos fundamentais, terá que ser classificada a partir de um quarto gênero de entidade familiar, definido jurisprudencialmente.

A labuta jurisprudencial terá que encontrar o nome jurídico da quarta espécie de família através da técnica de interpretação sistemática, pela qual, se deve dar concretude aos princípios já postos em destaque pelos outros ministros: o da dignidade da pessoa humana, o da igualdade, o da liberdade, o da preservação da intimidade e o da não discriminação por orientação sexual.

Essa diligência em relação ao texto constitucional, o profundo respeito à separação dos poderes e à forte necessidade que o jurista sente de que, diante do vácuo jurídico sobre a definição legal da união homoafetiva, a jurisprudência o defina, pelo menos até o momento em que o legislador decida qual nome atribuir a esse fato da vida, demonstra que no discurso do Ministro estão presentes as estruturas lógicas de pensamento das Escolas da “Exegese” (para a qual são relevantes os métodos sistemático e gramatical e o princípio da separação dos poderes), “Pandectistas” (que valoriza o método sistemático de interpretação) e “Analítica” (para quem os costumes, hábitos e fatos reiterados da vida, são transformados em lei positiva pela jurisprudência).

O Ministro sugere que ao se aplicar o instrumento metodológico da integração e por meio do recurso a analogia, nomeie-se a união homoafetiva de “união homoafetiva estável”. Assim, ele elucida que:

Convém esclarecer que não se está, aqui, a reconhecer uma “união estável homoafetiva”, por interpretação extensiva do § 3º do art. 226, mas uma “união homoafetiva estável”, mediante um processo de integração analógica. Quer dizer, desvela-se, por esse método, outra espécie de entidade familiar, que se coloca ao lado daquelas formadas pelo casamento, pela união estável entre um homem e uma mulher e por qualquer dos pais e seus descendentes, explicitadas no texto constitucional.

Cuida-se, enfim, a meu juízo, de uma entidade familiar que, embora não esteja expressamente prevista no art. 226, precisa ter a sua existência reconhecida pelo Direito, tendo em conta a ocorrência de uma lacuna legal que impede que o Estado, exercendo o indeclinável papel de protetor dos grupos minoritários, coloque sob seu amparo as relações afetivas públicas e duradouras que se formam entre pessoas do mesmo sexo. (LEWANDOWSKI, 2011, p. 12).

A abordagem da “Hermenêutica Alternativa” também transita, sutilmente, nos argumentos do Ministro, ao definir como um dos papéis do Estado, a proteção das minorias.

Convém ressaltar que o Ministro entende, ao final do seu voto, que uma vez reconhecida a união homoafetiva como entidade familiar, que se aplique a ela, analogicamente, as regras do instituto jurídico que lhe é mais próximo, a união estável heterossexual, mas apenas nos aspectos em que são semelhantes, até que o legislador regulamente, de forma expressa, tais relações.

4.5 O voto do Ministro: Joaquim Barbosa

Acompanhando o entendimento dos demais ministros, em voto com fundamento sintético, Joaquim Barbosa também julga procedentes os pedidos dos autores e decide que sobre o art. 1723 do Código Civil incida a técnica de interpretação conforme a Constituição, a fim de que as uniões de pessoas do mesmo sexo, consideradas entidades familiares sejam salvaguardadas dos mesmos direitos e deveres das uniões estáveis de pessoas de sexos opostos.

Dito isso, destaca-se, doravante, os principais argumentos emitidos pelo jurista para fundamentar a sua decisão e as Escolas de Lógica Jurídica que o influenciaram.

A princípio, o Ministro, faz uso de um discurso claramente oriundo da “Escola Vitalista” (que denuncia o descompasso entre a vida autêntica, a existência real, e a vida objetivada, a norma jurídica). Em suas palavras:

Inicialmente, gostaria de ressaltar que estamos diante de uma situação que demonstra claramente o descompasso entre o mundo dos fatos e o universo do Direito. Visivelmente nos confrontamos aqui com uma situação em que o Direito não foi capaz de acompanhar as profundas e estruturais mudanças sociais, não apenas entre nós brasileiros, mas em escala global. É precisamente nessas situações que se agiganta o papel das Cortes constitucionais, segundo o conhecido jurista e pensador israelense Aaron Barak. Para Barak, as Cortes Supremas e Constitucionais devem fazer a ponte entre o mundo do Direito e a Sociedade, isto é, cumpre-lhes fazer o que ele mesmo qualifica como BRIDGING THE GAP BETWEEN LAW AND SOCIETY. (BARBOSA, 2011, p. 01, grifo do autor).

A posteriori, o jurista mineiro enfrenta a questão de se o silêncio do legislador constituinte acerca do enquadramento jurídico da união homoafetiva representa indiferença, desprezo ou hostilidade ao tema.

Ele responde, recorrendo ao argumento da “intenção do legislador” (cara à “Escola dos Pandectistas”), que não, pois quando a Carta Magna prevê que os direitos fundamentais não se encerram naqueles expressamente por ela listados[28], há no sistema jurídico o acolhimento do reconhecimento das uniões homoafetivas.

Barbosa prossegue, na sua linha de raciocínio, com a defesa de que o reconhecimento das uniões homoafetivas como instituto jurídico também está sedimento no Multiculturalismo e pensamento diferencialista.

E conclui com o argumento de que o reconhecimento da união homoafetiva não se encontra no art. 226, § 3º, da Constituição, pois este se destina a regulamentar exclusivamente as uniões entre homem e mulher não envolta dos rigores formais do casamento, mas sim em todos os dispositivos constitucionais que trazem em seu bojo normas autoaplicáveis[29], a saber: a proteção aos direitos fundamentais, aos princípios da dignidade da pessoa humana, igualdade e não discriminação.

Demonstrando-se, então, a influência das Escolas que destacam o método sistemático de interpretação (como é o caso, por exemplo, dos “Pandectistas”).

4.6 O voto do Ministro: Gilmar Mendes

A fundamentação do voto do Ministro Gilmar Mendes é a mais longa do julgado. Por esta razão, apenas comentar-se-á acerca das partes mais importantes da sua decisão e serão destacadas as Escolas Jurídicas que influenciam o seu discurso.

O Ministro mato-grossense também julga procedentes os pedidos dos autores, mas faz questão de salientar que por fundamento diverso do relator e dos demais ministros que o acompanharam na íntegra.

A princípio, seguindo a linha de raciocínio do Ministro Lewandowski, Gilmar Mendes salienta a sua estranheza quanto à possibilidade de se aplicar a técnica de interpretação em consonância com a Constituição ao art. 1723 do Código Civil, pois este nada mais é do que uma reprodução da norma Constitucional que prevê a união estável entre homem e mulher. De acordo com as suas palavras:

Tal como eu já tinha falado inicialmente, em aparte ao voto da Ministra Cármen Lúcia, vi com alguma preocupação a formulação deste pedido de interpretação conforme, porque em princípio, a meu ver, o texto legal não fazia nada mais do que reproduzir a norma constitucional que prevê a união estável entre homem e mulher – tal como já foi destacado agora, de forma bastante precisa, no voto do Ministro Lewandowski –, fazendo, então, a genealogia da criação do próprio modelo jurídico que está no texto constitucional.

De modo que, diante da não equivocidade, da não ambiguidade do próprio texto, pareceria muito estranha a intervenção do Tribunal para fazer essa segunda subleitura do texto, que realmente faz uma alteração substancial [...]. (MENDES, 2011, p. 01).

Constata-se que é preciso ter cuidado com a aplicação da técnica de interpretação conforme a Constituição, visto que ela não pode ser utilizada de modo arbitrário, de forma a causar uma lesão irreparável ao verdadeiro sentido do texto constitucional ou a real intenção do legislador ao elaborar a norma. Por isto, é indispensável que se respeite os limites e as regras de aplicação da técnica hermenêutica. Destarte:

Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, porém, a interpretação conforme à Constituição conhece limites. Eles resultam tanto da expressão literal da lei, quanto da chamada vontade do legislador. A interpretação conforme à Constituição, por isso, apenas é admissível se não configurar violência contra a expressão literal do texto (Bittencourt, Carlos Alberto Lucio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. 2. ed. Rio de Janeiro, p. 95) e se não alterar o significado do texto normativo, com mudança radical da própria concepção original do legislador (ADIn 2405-RS, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 17.02.2006; ADIn 1344-ES, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 19.04.2006; RP 1417-DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 15.04.1988; ADIn 3046-SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 28.05.2004). (MENDES, 2011, p. 04).

A preocupação do Ministro com a construção de uma justificativa racional para uma decisão que irá ocasionar consequências para todo o sistema jurídico se inspira nos pressupostos da “Nova Retórica” de Perelman e na lógica do razoável da “Escola Vitalista”. E o seu entendimento do texto constitucional como o alicerce do qual se parte uma hermenêutica racional origina-se dos pressupostos do “Formalismo de Hans Kelsen”.

Contudo, o Ministro reconhece que o Tribunal Constitucional precisa fazer uma interpretação, pela qual se vede que a norma que regulamenta a união estável seja usada para fundamentar decisões administrativas ou judiciais que neguem direitos sucessórios ou previdenciários aqueles que se encontram em estado de união homoafetiva.

Assim, embora o § 3º, do art. 226 da Constituição Federal e o art. 1.723 do Código Civil, quando conceituam o instituto da união estável, refiram-se, realmente, apenas à união entre homem e mulher, os dois dispositivos não podem ser usados de modo isolado de toda a ordem constitucional, a ponto de servirem de justificativas para a negação de direitos às pessoas unidas homoafetivamente. É neste sentido, que aduz o ilustre jurista:

Talvez o único argumento que pudesse justificar a tese da aplicação ao caso da técnica de interpretação conforme à Constituição seria a invocação daquela previsão normativa de união estável entre homem e mulher como óbice ao reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo, como uma proibição daquele dispositivo.

E, de fato, é com base nesse argumento que entendo pertinente o pleito trazido nas ações diretas de inconstitucionalidade. (MENDES, 2011, p. 16).

O jurista prossegue afirmando que as uniões homoafetivas são fatos da vida e que estão relacionadas aos direitos de personalidade, pois, uma vez que a orientação sexual é um traço da personalidade, a sua vivência, com proteção jurídica, implica que o indivíduo tem plena liberdade de dar prosseguimento ao desenvolvimento de sua personalidade.

Para isso, existem os pressupostos jurídicos para o seu reconhecimento, o qual trará segurança jurídica. Além disto, imbuído do espírito da Escola “Hermenêutica Alternativa do Direito”, ele afirma que se trata, no caso, do reconhecimento de direito de minorias e, portanto, de direitos fundamentais básicos.

E assim, ao fazer também uma interpretação sistemática, cara à Escola dos “Pandectistas”, o Ministro encontra o reconhecimento jurídico dessas uniões como entidades familiares em toda a ordem constitucional. Em consequência disto, ele declara:

Claro que isso não nos impede de identificar esse direito no nosso sistema, a partir, sobretudo, do direito de liberdade e em concordância com outros princípios e garantias constitucionais.

Nesse sentido, é possível destacar, dentre outros: os fundamentos da cidadania e da dignidade da pessoa humana (art. 1º, II e III); os objetivos fundamentais de se construir uma sociedade livre, justa e solidária e de se promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, I e IV); a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II); a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantida a inviolabilidade do direito à liberdade e à igualdade (art. 5º, caput); a punição a qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI); bem como a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais (art. 5º, §1º) e a não exclusão de outros direitos e garantias decorrentes do regime constitucional e dos princípios por ela adotados ou incorporados por tratados internacionais (art. 5º, §2º). (MENDES, 2011, p. 29).

Conclusivamente, Gilmar Mendes, com o respeito ao texto, próprio da “Escola da Exegese”, infere que usar o recurso de uma interpretação ampla do art. 236, § 3º, da Constituição Federal para enquadrar, à força, as uniões homoafetivas no conceito jurídico de união estável, seria extrapolar os limites de competência da Corte, pois o princípio da separação dos poderes exige que, para ser legítimo, o órgão jurisdicional aplique o direito com respeito à norma jurídica e levando a sério o texto constitucional.

E seguindo a trilha de pensamento do Ministro Ricardo Lewandowski, alega que é preciso que o Tribunal, diante do vácuo presente no ordenamento jurídico quanto a um modelo institucional que proteja essas relações, apresente uma solução juridicamente possível ao caso.

Desse modo, a melhor resposta à demanda, sub judice, é aplicar, analogicamente, no que couber, as regras do instituto jurídico que mais se aproxima da união homoafetiva, isto é, a união estável. Para isto, o Tribunal Constitucional deve submeter-se ao referencial limite do “pensamento jurídico do possível”[30], de Peter Häberle.

4.7 O voto do Ministro: Marco Aurélio

O Ministro Marco Aurélio também julgou procedente o pedido formulado pelos demandantes de conferir interpretação proporcional à Constituição ao art. 1.723 do Código Civil, a fim de declarar a aplicabilidade do regime da união estável às uniões entre pessoas de mesmo sexo.

Feitas essas observações, analisa-se, nesta subseção, a estrutura lógica de seu raciocínio e se estabelecem as relações entre ela e as Escolas de Lógica Jurídica que a influenciaram.

Em virtude do pronunciamento dos Ministros que fundamentaram as duas decisões divergindo do relator, Marco Aurélio enfrenta a questão novamente. Deste modo, ao se referir especificamente ao instituto da união estável, desdobra o problema hermenêutico em duas perguntas: “[...] seria possível incluir nesse regime uma situação que não foi originalmente prevista pelo legislador ao estabelecer a premissa para a consequência jurídica? Não haveria transbordamento dos limites da atividade jurisdicional? [...]”. (AURÉLIO, 2011, p. 02).

Diante da primeira pergunta, o Ministro defende a ideia de que o instituto da sociedade de fato[31] não é suficiente para regulamentar as relações entre aqueles que estabelecem uniões homoafetivas, pois não se coaduna com a nova perspectiva de família inaugurada pela Constituição Federal de 1988, denominada de virada de Copérnico. Desta maneira, como o regime da união estável é o instituto jurídico que mais resguarda os direitos fundamentais das pessoas homoafetivas que querem unir-se estavelmente, ele deve ser aplicado para essas relações. Assim sendo:

O Direito Civil, na expressão empregada por Luiz Edson Fachin, sofreu uma “virada de Copérnico”, foi constitucionalizado e, por consequência, desvinculado do patrimônio e socializado. A propriedade e o proprietário perderam o papel de centralidade nesse ramo da ciência jurídica, dando lugar principal à pessoa. É o direito do “ser”, da personalidade, da existência.

Relegar as uniões homoafetivas à disciplina da sociedade de fato é não reconhecer essa modificação paradigmática no Direito Civil levada a cabo pela Constituição da República. A categoria da sociedade de fato reflete a realização de um empreendimento conjunto, mas de nota patrimonial, e não afetiva ou emocional. Sociedade de fato é sociedade irregular, regida pelo artigo 987 e seguintes do Código Civil, de vocação empresarial [...]. (AURÉLIO, 2011, p. 09).

E na segunda questão, o jurista a soluciona levantando a tese, cara à “Hermenêutica Alternativa”, de que é obrigação do Poder Judiciário defender os direitos de minorias, de tal forma que ao aplicar a técnica de interpretação conforme a Constituição ao art. 1.723 do Código Civil, ao invés de exceder os limites da atividade jurisdicional, está, na verdade, o Supremo Tribunal Federal, respondendo positivamente a sua vocação de, por meio do exercício de seu poder jurisdicional, dar a resposta jurídica que melhor efetive os direitos fundamentais. Por isto, ele observa que:

[...] Mostra-se inviável, porque despreza a sistemática integrativa presentes princípios maiores, a interpretação isolada do artigo 226, § 3º, também da Carta Federal, no que revela o reconhecimento da união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, até porque o dispositivo não proíbe esse reconhecimento entre pessoas de gênero igual.

No mais, ressalto o caráter tipicamente contramajoritário dos direitos fundamentais. De nada serviria a positivação de direitos na Constituição, se eles fossem lidos em conformidade com a opinião pública dominante. Ao assentar a prevalência de direitos, mesmo contra a visão da maioria, o Supremo afirma o papel crucial de guardião da Carta da República [...]. (AURÉLIO, 2011, p. 13).

O jurista carioca prossegue ao afirmar que o reconhecimento das uniões homoafetivas como entidade familiar é obrigação constitucional do Estado. E defende ainda que, através de técnicas tradicionais de hermenêutica, é possível dar uma interpretação do art. 222, § 3º, da Constituição Federal, de modo que o regime da união estável abarque também o fenômeno das uniões homoafetivas.

Para isso, é necessário que se faça uma interpretação sistemática e principiológica da Constituição e da legislação infraconstitucional que regulamenta a matéria. Neste ponto, são evidentes as influências das Escolas que destacam o método sistemático de interpretação, como, por exemplo, o caso dos “Pandectistas”.

Em consequência, o Ministro conclui que embora o art. 1.723 do Código Civil seja uma reprodução literal do § 3º, do art. 226 da Constituição Federal, ele não corresponde fidedignamente ao propósito constitucional de reconhecer direitos a grupos minoritários, os quais, no caso das pessoas homoafetivas, podem ser constatados, por exemplo: ao se recorrer ao princípio da dignidade da pessoa humana; a ideia segundo a qual o que não está juridicamente proibido, está juridicamente permitido e, por isto, deve estar juridicamente determinado; a vedação constitucional a toda forma de discriminação; a liberdade de orientação sexual e ao tratamento equânime entre homossexuais e heterossexuais.

4.8 O voto do Ministro: Celso de Mello

O jurista paulista também julgou procedente a ação constitucional, com o fito de que com efeito vinculante, se declare a obrigatoriedade do reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar com os mesmos direitos e deveres das uniões afetivas entre pessoas de sexos opostos, desde que também os pares homoafetivos atendam aos mesmos requisitos exigidos de consolidação da união estável entre homem e mulher.

É salutar enfatizar que o voto do Ministro Celso de Mello teve a segunda fundamentação mais longa do julgado. Por isto, ante o exposto, dissertar-se-á a respeito da estrutura lógica de seus principais raciocínios, com destaque para os argumentos jurídicos, de modo a se repetir a técnica de se estabelecer a relação entre eles e as Escolas de Lógica Jurídica que os influenciaram.

O Ministro usa o mesmo argumento de outros membros da Corte Constitucional para fundamentar a legitimidade da técnica de interpretação conforme a Constituição do art. 1.723 do Código Civil, isto é, de que o dispositivo infraconstitucional não pode ser usado para fundamentar decisões judiciais e administrativas que obstaculizem o acesso a direitos fundamentais por aqueles que estabeleceram uniões homoafetivas. Assim, ele aduz:

Por isso, Senhor Presidente, é que se impõe proclamar, agora mais do que nunca, que ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado de direitos nem sofrer quaisquer restrições de ordem jurídica por motivo de sua orientação sexual.

Isso significa que também os homossexuais têm o direito de receber a igual proteção das leis e do sistema político-jurídico instituído pela Constituição da República, mostrando-se arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que puna, que exclua, que discrimine, que fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as pessoas em razão de sua orientação sexual. (MELLO, 2011, p. 11-12, grifos do autor).

Além disso, a citação mencionada mostra que o Ministro insiste no argumento, caro à Escola da “Hermenêutica Crítica Alternativa”, de que o Supremo Tribunal Federal é órgão legítimo para proteger os direitos fundamentais dos homossexuais que criam laços de uniões homoafetivas, uma vez que tratam de direitos de minorias. Em seu voto declara:

Na realidade, o tema da preservação e do reconhecimento dos direitos das minorias deve compor, por tratar-se de questão impregnada do mais alto relevo, a agenda desta corte suprema incumbida, por efeito de sua destinação institucional, de velar pela supremacia da Constituição e de zelar pelo respeito aos direitos, inclusive de grupos minoritários, que encontram fundamento legitimador no próprio estatuto constitucional. (MELLO, 2011, p. 27, grifos do autor).

O jurista da Suprema Corte, também, trabalha com a ideia de que deve ser feita uma interpretação sistemática, teleológica e principiológica do texto constitucional, de sorte que o art. 226, § 3º, da Lei Fundamental não deve ser entendido como um dispositivo pelo qual se vede aos que estabelecem uniões homoafetivas o livre gozo dos direitos fundamentais (de natureza familiar, previdenciária e/ou sucessória), mas, como uma típica norma de inclusão que legitima a qualificação da união estável homoafetiva como entidade familiar. Desta forma, conjectura o Ministro:

Nessa perspectiva, Senhor Presidente, entendo que a extensão, às uniões homoafetivas, do mesmo regime jurídico aplicável à união estável entre pessoas de gênero distinto justifica-se e legitima-se pela direta incidência, dentre outros, dos princípios constitucionais da igualdade, da liberdade, da dignidade, da segurança jurídica e do postulado constitucional implícito que consagra o direito à busca da felicidade, os quais configuram, numa estrita dimensão que privilegia o sentido de inclusão decorrente da própria Constituição da República (art. 1º, III, e art. 3º, IV), fundamentos autônomos e suficientes aptos a conferir suporte legitimador à qualificação das conjugalidades entre pessoas do mesmo sexo como espécie do gênero entidade familiar. (MELLO, 2011, p. 22-23, grifos do autor).

Ao recorrer às técnicas de interpretação sistemática e teleológica, elucida-se que o Ministro sofre as influências das Escolas dos “Pandectistas” e “Teleológica do Direito”.

Além disso, em consonância com a “Escola Analítica”, ele defende que as normas jurídicas independem e têm total autonomia em face das normas morais ou religiosas, mesmo que estas sejam seguidas pela maioria.

Celso de Mello salienta, também, que um dos princípios dos quais se extrai o direito dos homossexuais de gozarem em condições de igualdade com os heterossexuais dos direitos fundamentais é o direito à busca da felicidade, o qual se trata de um princípio implícito que deriva do princípio e fundamento expresso da dignidade da pessoa humana. Ele ainda defende que o afeto é o novo paradigma acolhido pela Constituição Federal de 1998, de maneira que se traduz como o atual núcleo conformador do conceito de família, revogando, portanto, o paradigma antigo: o casamento entre pessoas de sexo opostos.

Por conseguinte, em virtude de que as relações homoafetivas também são marcadas pelas características do afeto (solidariedade, amor e projetos de vida em comum), merecem o mesmo tratamento jurídico dispensado às uniões estáveis heterossexuais.

O jurista conclui com a afirmação de que nenhuma família pode ser discriminada em virtude da orientação sexual de seus membros e com a ratificação de que cabe ao Poder Judiciário defender os direitos das minorias e de efetivar a força normativa das normas constitucionais.

4.9 O voto do Ministro: Cezar Peluso

O Ministro da Suprema Corte, Cezar Peluso, também julgou procedente a ação constitucional, a fim de que, com efeito vinculante, se declare a obrigatoriedade do reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar com os mesmos direitos e deveres das uniões afetivas entre pessoas de sexos opostos, desde que também os pares homoafetivos atendam aos mesmos requisitos exigidos para se consolidar a união estável entre homem e mulher.

Diante disso, analisa-se, doravante, a estrutura lógica dos principais raciocínios do jurista paulista, de modo a se aplicar novamente a técnica de se estabelecer a relação entre eles e as Escolas de Lógica Jurídica que os influenciaram.

O Ministro, talvez por ser o último a falar, faz um dos votos mais curtos do julgado. Começa o seu raciocínio alegando que aplicar a técnica hermenêutica de interpretação conforme a Constituição só é possível porque, na verdade, o art. 1.723 do Código Civil não é norma que reproduz estritamente o art. 226, § 3º, da Constituição Federal, uma vez que não há entre elas uma coincidência semântica. Em sua declaração:

Mas a diversidade de redação das normas permite, e acho que isto é, de modo muito consistente, a sua racionalidade, a decisão da Corte de conhecer das demandas, exatamente com base na não coincidência semântica entre as duas normas, de tal modo que é possível enxergar o disposto no artigo 1.723 como preceito susceptível de revisão à luz do artigo 226, § 3º, e de outras normas constitucionais, que constam, aliás, como causa de pedir de ambas as demandas. (PELUSO, 2011, p. 01).

Depois disso, Cezar Peluso diverge do Relator e dos outros ministros que o acompanharam na afirmação de que não existe lacuna normativa no ordenamento jurídico, uma vez que, a partir de uma interpretação sistemática das normas constitucionais, é possível verificar que, no que tange a disciplina da entidade familiar formada por união homoafetiva, há uma lacuna normativa que precisa ser preenchida.

Ao ter um zelo e uma transparência intelectual diante dos textos normativos da Constituição e ao recorrer à interpretação sistemática, o jurista paulista demonstra ser influenciado, por exemplo, pelas Escolas da “Exegese” e dos “Pandectistas”.

Além disso, ao elaborar sofisticados silogismos judiciários, sobretudo, quando se refere às consequências lógicas da relação entre os textos constitucionais e civis sobre o instituto genérico da entidade familiar, o jurista está influenciado, tacitamente, pela “Lógica Deôntica”.

O Ministro Peluso, então, encerra o seu voto concordando com os argumentos dos demais representantes do STF que defenderam que a sociedade de fato é instituto insuficiente para disciplinar as uniões homoafetivas, uma vez que estas não são movidas por um animus patrimonial, mas sim afetivo e, por isso, se enquadra melhor no direito de família do que no direito empresarial.

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Sobre o autor
Fábio Soares Rapôso

Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil Pela Universidade CEUMA - UniCEUMA. Licenciado em Filosofia pelo Instituto de Estudos Superiores do Maranhão - IESMA. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Advogado militante e professor de Filosofia do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão - IEMA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAPÔSO, Fábio Soares. As lógicas do discurso jurídico e aplicações práticas nos julgados do STF na ADI nº 4.277/DF e na ADPF nº 132/RJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5011, 21 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56502. Acesso em: 8 mai. 2024.

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