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Machismo mata?

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Agenda 17/11/2017 às 12:00

Breve análise dos últimos indicadores de violência em Alagoas (um dos Estados onde mais se mata mulheres no Brasil) sob o arcabouço teórico produzido pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, especialmente a obra "A Dominação Masculina" (1999).

Uma célebre frase do sociólogo francês Pierre Bourdieu (França, 1930-2002), ostentava que a “sociologia é um esporte de combate”.[1] Com esta metáfora Bourdieu ressaltava o papel de militância da sociologia no sentido de desnaturalizar mecanismos de dominação que se consumam por meio da introjeção do denominado habitus.

Pierre Bourdieu deu notoriedade ao seu conceito de habitus a partir de suas diversas publicações, porém, tal palavra fora cunhada por eminentes figuras da história a exemplo de Aristóteles e Émile Durkheim. Neste último, por exemplo, o habitus corresponderia à situação de internato, uma instituição social total no sentido de Goffman (Lahire, 1999).

Já para ELIAS (1994), o habitus pôde ser entendido como uma segunda natureza ou mesmo um automatismo humano que se desenvolve nas relações sociais estabelecidas entre indivíduos interdependentes, de uma mesma configuração social, desde a infância, atrelando-o com o longo processo de internalização de práticas sociais culturalmente constituídas.

Para além destas definições Bourdieu desenvolveu seu conceito de habitus frente a necessidade de “apreender as relações de afinidade entre o comportamento dos agentes e as estruturas e condicionantes sociais” (Setton, 2002, p. 62). Refere-se precisamente às disposições encarnadas pelos sujeitos sociais ao longo de seu processo de socialização; agregando experiências anteriores, atuando como uma matriz de percepções, de apreciações, de ações. Tal “matriz”, ou conjunto de disposições, nos fornece os esquemas necessários para a nossa intervenção na vida diária. Aduz que: 

Habitus é um operador, uma matriz de percepção e não uma identidade ou uma subjetividade fixa. Sendo produto da história, habitus é um sistema de disposições aberto, permanentemente afrontado a experiências novas e permanentemente afetado por elas. Ele é durável, mas não imutável (Bourdieu, 2002, p. 83).

Setton (2002), ainda, concebe que:

O conceito de habitus como um instrumento conceptual que me auxilia pensar a relação, a mediação entre os condicionamentos sociais exteriores, e a subjetividade dos sujeitos. Trata-se de um conceito que, embora seja visto como um sistema engendrado no passado e orientando para uma ação no presente, ainda é um sistema em constante reformulação. Habitus não é destino. Habitus é uma noção que me auxilia a pensar as características de uma identidade social, de uma experiência biográfica, um sistema de orientação ora consciente ora inconsciente. Habitus como uma matriz cultural que predispõe os indivíduos a fazerem suas escolhas. Embora controvertida, creio que a teoria do habitus me habilita a pensar o processo de constituição das identidades sociais no mundo contemporâneo. (Setton, 2002, p. 61).

Em suma, para Bourdieu, o conceito de habitus está atrelado às experiências passadas dos indivíduos enquanto matriz de percepção e oriundo de trajetórias anteriores. No entanto, em outro texto assinala que: “habitus é também adaptação, ele realiza sem cessar um ajustamento ao mundo que só excepcionalmente assume a forma de uma conversão radical” (1983, p. 106).

Nota-se que a noção de habitus contrai uma abrangência universal vez que permite analisar a coerência das propriedades mais distintas de indivíduos arranjados em iguais condições de existência (Pinto, 2000).

Não é forçoso perceber a perfeita adequação do conceito de habitus a diversas realidades, a exemplo do que se denominou de habitus patriarcal que, por sua vez, salta aos olhos em quase a totalidade de sociedades e que tem como decorrência diversos contextos de dominação que se convertem, muitas vezes, em violência de gênero.

Já sob este paradigma, Bourdieu em seu livro intitulado “A Dominação Masculina” (1999), concebe a relação entre os gêneros como uma relação que se dá a nível simbólico, em que prevalece a ordem masculina de ver as coisas, e para tanto utiliza-se da violência simbólica, reproduzindo o habitus do patriarcado, em que homens e mulheres assimilam tal habitus como uma forma natural de conceber o mundo, reproduzindo a dominação masculina, que também se dá através da “manipulação inconsciente do corpo”. Desta forma, as diferenças sexuais são percebidas como desigualdades sociais que implicam em dominação do homem sobre a mulher, ou seja, há “a socialização do biológico e de biologização do social” (BOURDIEU, 1999, p.9).

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Em praticamente todas as partes do mundo é possível se identificar a naturalização e reprodução da dominação masculina, não sendo diferente no estado de Alagoas, lugar marcado pela crescente violência viril, em especial contra as mulheres.[2]

Com o fim de estudar este habitus patriarcal, especialmente no estado de Alagoas, o presente artigo analisará obras literárias de Pierre Bourdieu e estatísticas de violência locais que tratam dos contextos de violência de gênero e que denotam a naturalização da dominação masculina no estado em consonância com a teses do sociólogo francês.


DOS INDICADORES DE VIOLÊNCIA POR GÊNERO EM ALAGOAS 

321 mulheres foram assassinadas em Alagoas entre 2014 e 2016 segundo o banco de dados do Núcleo de Estatística e Análise Criminal (Neac)[3] da Secretaria de Estado da Segurança Pública de Alagoas. A distribuição destes assassinatos por ano é a seguinte:

Em termos percentuais, o quantitativo de assassinatos de mulheres em relação aos assassinatos masculinos é de 5,44% nos três anos analisados, porém, um dado que se extrai e que denota a peculiaridade dos assassinatos de mulheres é a relação entre as vítimas e os algozes.

Dos 321 assassinatos, 51 (equivalente a 15%) tiveram a relação entre vítima e assassino identificada, e, destes, apenas uma autora era do sexo feminino. Entre os demais, além destes pertencerem ao sexo masculino, todos mantinham alguma relação afetiva, destacando-se a prevalência dos relacionamentos amorosos/sexuais (36 do total), conforme relação abaixo:

Feminino

321

Amásio

1

Companheiro

3

Conhecido

1

Cunhado

2

Enteado

1

Esposo

17

Ex-Companheiro

1

Ex-esposo

5

Ex-Marido

3

Ex-Namorado

4

Filho

3

Irmão

2

Mãe

1

Namorado

2

Padrasto

1

Primo

1

Vizinho

3

(vazio)

270

Entre os homens, dos 5.568 assassinatos, apenas 146 (2%) tiveram a identificação dos algozes preenchida e, destes identificados, 16 eram do sexo feminino. Dessas, 9 mantinham ou mantiveram relacionamento amoroso com a vítima conforme detalhamento abaixo:

Masculino

5568

Afilhado

1

Amásia

1

Amigo

16

Amigo de Farra

2

Colega

2

Colega de Cela

1

Colega de Farra

1

Colega de Trabalho

3

Compadre

3

Companheira

1

Comparsa

2

Conhecido

18

Cunhado

12

Empregado

1

Enteado

10

Esposa

4

Ex-amante

1

Ex-companheira

2

Ex-companheiro da mãe

1

Ex-Cunhado

3

Ex-Esposa

1

Ex-sogro

1

Filho

3

Genro

1

Irmão

9

Mãe

3

Namorado

1

Padrasto

3

Padrasto e Mãe

1

Pai

3

Primo

2

Sobrinha

1

Sobrinho

4

Sócio

1

Sogro

2

Tio

5

Vizinho

20

(vazio)

5422

Destes dados é possível se extrair algumas inferências preliminares, quais sejam:

  1. O percentual de identificação de autoria é 13% maior entre as mulheres;
  2. Entre as autorias identificadas existe uma ampla preponderância do sexo masculino como algoz em ambos os gêneros, sendo de 1,9% o percentual de autoria feminina identificada entre os assassinatos de mulheres e 10,95% de autoria feminina identificada entre os assassinatos de homens;
  3. No detalhamento das relações mantidas entre autores e vítimas, observou-se que 70% mantinha ou manteve relacionamento amoroso com o algoz entre as vítimas mulheres, ao passo que entre os homens este percentual é de 6,1%;
  4. Entre todas as 197 autorias identificadas, 17 eram de mulheres e 180 eram de homens, ou seja, 91,4% dos assassinatos, cuja autoria fora identificada, foram cometidos por homens.

A partir desta breve análise dos dados coletados, o fato mais emblemático é a ampla preponderância masculina, seja entre algozes, seja entre vítimas. Porém, em que pese a aparente pouca participação feminina nos contextos de cometimento do crime, estas têm uma alta vitimização letal especialmente derivada do sexo masculino, sobretudo dentro de contextos domésticos e familiares.

O percentual de identificação de autoria, sobremaneira superior entre as vítimas mulheres, denotam a menor obscuridade das autorias e motivações, atrelada, talvez, a menor reprovação social desses assassinatos e possível proveniência dos denominados “ciclos de violência doméstica” ou “terrorismo patriarcal” (Johnson, 1999).

Entre os homens, o ínfimo percentual de identificação de autores (2%) pode revelar um certo padrão de cometimento de assassinatos por algozes desconhecidos ou que não guardam relações afetivas e anteriores.

Assim, observa-se, a partir das análises binária de vitimização que, em ambos, é possível a extração de inferências que revelam recorrências possivelmente atreladas a questão de gênero e do habitus patriarcal em Alagoas, conforme melhor se discorrerá nas linhas que seguem.

Sobre a autora
Anne Caroline Fidelis de Lima

Advogada, bacharela em Direito pela Universidade Federal de Alagoas, professora universitária, mestra em sociologia pela Universidade Federal de Alagoas, pós-graduada em direito civil, processo civil pela Escola Superior de Advocacia da OAB/AL e em gestão pública municipal pela Universidade Federal de Alagoas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Anne Caroline Fidelis. Machismo mata?: O habitus do patriarcado em Alagoas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5252, 17 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58899. Acesso em: 21 nov. 2024.

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