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Machismo mata?

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Agenda 17/11/2017 às 12:00

HABITUS PATRIARCAL E VIOLÊNCIA DE GÊNERO EM ALAGOAS

Em alinho com sua teoria, Bourdieu (1999) aborda o tema da dominação masculina especialmente a partir de uma perspectiva simbólica, aduzindo ser um poder que impõe significações, impondo-as como legítimas, de forma a dissimular as relações de força que sustentam a própria força:

O efeito da dominação simbólica (seja ela de etnia, de gênero, de cultura, de língua etc.) se exerce não na lógica pura das consciências cognoscentes, mas através dos esquemas de percepção, de avaliação e de ação que são constitutivos dos habitus e que fundamentam, aquém das decisões da consciência e dos controles da vontade, uma relação de conhecimento profundamente obscura a ela mesma. Assim, a lógica paradoxal da dominação masculina e da submissão feminina, que se pode dizer ser, ao mesmo tempo e sem contradição, espontânea e extorquida, só pode ser compreendida se nos mantivermos atentos aos efeitos duradouros que a ordem social exerce sobre as mulheres (e os homens), ou seja, às disposições espontaneamente harmonizadas com esta ordem que as impõe. (BOURDIEU, 1999, p. 49-50)

Bourdieu (1999) acrescenta ainda que o processo histórico em que se dá a reprodução da divisão de mundo androcêntrica se inicia na família, do ponto de vista da educação individual, mas não se limita a esta instituição social:

... se a unidade doméstica é um dos lugares em que a dominação masculina se manifesta de maneira mais indiscutível (e não só através do recurso à violência física), o princípio de perpetuação das relações de força materiais e simbólicas que aí se exercem se coloca essencialmente fora desta unidade, em instâncias como a Igreja, a Escola ou o Estado e em suas ações propriamente políticas, declaradas ou escondidas, oficiais ou oficiosas... (p. 138)

Neste cenário uma das organizações principais de reprodução da dominação masculina, segundo BOURDIEU (1999), é a instituição escolar, aduzindo que a cultura acadêmica tradicional veiculada pela escola é "um dos princípios mais decisivos da mudança nas relações entre os sexos, devido às contradições que nela ocorrem e às que ela própria introduz" (p. 105).

Entende-se, portanto, ser o ambiente escolar um excelente medidor do habitus patriarcal em uma dita sociedade. Por este viés, traz-se, a título de exemplo, um breve trecho de um periódico alagoano de 1927 no qual é possível se inferir o conturbado processo de feminização do magistério em Alagoas e a percepção social sobre este fato na época:

Moralmente, do ponto de vista doméstico, o magistério, para a professora casa, se tem de dar a sua aula fora de casa, torna-se até um suplício, que nem a continuidade dos anos de exercício tem o poder de suavizar. Diariamente, deserto o lar dos seus cuidados, durante cinco ou seis horas, com a obrigação de sair de casa às vezes em condições precárias de saúde, esse tempo escolar passa ser para ela um sacrifício inaudito pelas apreensões resultantes do abandono da casa, entregue, comumente, à gente mercenária destituída da mais elementar noção do dever. O instinto maternal leva-lhe, a cada momento, o coração e o cérebro para os filhinhos que focaram a esperá-la, órfãos dos desvelos que só as mães sabem prodigalizar, e, enquanto o espírito vagueia ao redor dos filhos na casa erma da sua solicitude, ela, mecanicamente, sem o menor entusiasmo, alheia em absoluto à grandeza da sua missão social, procura cumprir o seu dever, olhos fixos no relógio, que lhe parece parado – a classe, em franca indisciplina, as lições alinhavadas, o ensino à matróca, a educação em desordem todo o tempo consumido improficuamente, em pura perda dos fins tutelares do Estado (HERCULANO,2015, p. 42, apud COSTA, 1927, p. 58).[4]           

Traz-se, ainda, sobre a descrição da “postura feminina” em algumas cidades alagoanas, HERCULANO (2015, p. 43, apud MOURA, 1944, p.13 e 17) o seguinte relato:

As mulheres são em extremo recolhidas, e tímidas; trajão com gala e riqueza, porém não se deslumbrão com exageradas modas de especulação estrangeira por cujo ardil nos tem subtilmente aliviado do pelo do ouro com que se ativiavão as nossas belas. (...) mulheres piedosas cheias de zelo, que posto figurem de beatas não tem clauzlausuravoto explicito, e nem regras monásticas; cada huma, e quando muito duas, em suas cazas, nos seu trafico doméstico, só se reúnem no templo para orar ou em hum alegrete em que cultivão flores para ornar os altares.

Os trechos acima denotam traços de uma cultura patentemente patriarcal, cuja dominação masculina, tal qual descrita por Bourdieu, atravessa os muros dos espaços domésticos adentra no espaço público, configurando o que o sociólogo chamou de patriarcado público, aduzindo:

[Há ainda] ... o papel do Estado, que veio ratificar e reforçar as prescrições e as proscrições do patriarcado privado com as de um patriarcado público, inscrito em todas as instituições encarregadas de gerir e regulamentar a existência quotidiana da unidade doméstica.... [como] o direito de família ... sua estrutura mesma, com a oposição entre os ministérios financeiros e os ministérios de administração, entre sua mão direita, paternalista, familiarista e protetora, e sua mão esquerda, voltada para o social, [reproduzindo] a divisão arquetípica entre o masculino e o feminino, ficando as mulheres com a parte ligada ao Estado social, não só como responsáveis por, como enquanto destinatárias privilegiadas de seus cuidados e de seus serviços. (p. 105-106)... se a unidade doméstica é um dos lugares em que a dominação masculina se manifesta de maneira mais indiscutível (e não só através do recurso à violência física), o princípio de perpetuação das relações de força materiais e simbólicas que aí se exercem se coloca essencialmente fora desta unidade, em instâncias como a Igreja, a Escola ou o Estado e em suas ações propriamente políticas, declaradas ou escondidas, oficiais ou oficiosas...(p. 138) importantes [fatores de mudança] são os que estão relacionados com a transformação decisiva da função da instituição escolar na reprodução da diferença entre os gêneros, tais com o aumento do acesso das mulheres à instrução e, correlativamente, à independência econômica e à transformação das estruturas familiares" (p. 107)

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No esteio deste habitus patriarcal promovido pela dominação masculina, o que se eleva como consequência mais aguda, são os índices de violência contra as mulheres em Alagoas (indicado como um dos estados mais violentos do Brasil conforme alinhavado em linhas pretéritas), onde estas são assassinadas preponderantemente por homens e em contextos de exercício de virilidade, a exemplo dos diversos relatos de violência dispostos por SILVA (2015, p. 38 a 42, apud CHAUÍ, 1985), que, ao final, afirma:

Estes relatos apresentados são mínimos comparados aos vários casos de assassinatos de mulheres em Alagoas, ainda constantes nos jornais de época. As altas incidências de violência doméstica, maus tratos e pouca diligência da justiça para as resoluções dos casos também devem ser avaliados.

(...)

A família e a educação são entendidas como elementos regeneradores da ideologia masculina e suas formas de dominação, onde a mulher aparece como vítima e ao mesmo tempo como perpetuadora deste processo, sem se dar conta da realidade social e das formas culturais que se encontra.

Por esta interpretação justifica-se a situação de muitos casos típicos de mulheres que não acusam o marido agressor, entendendo que ela mesma não consegue perceber a dinâmica ideológica desta dominação, mas somente consegue sentir seu limite pela violência, quer seja pelo abuso físico, psicológico ou sexual.

O fato é que, neste processo de interação perene, os núcleos - privado e público - comungam neste cenário que denominamos sociedade, onde são praticadas as disposições patriarcais encarnadas pelos sujeitos sociais ao longo de seu processo de socialização.

Assim, evidencia-se, em Alagoas, no passado e na atualidade, uma definição do lugar de mulher nos espaços sociais determinado pela lógica do patriarcalismo, ao passo em que “justamente o que caracteriza o lugar do indivíduo em sua sociedade é que a natureza e a extensão da margem de decisão que lhe é acessível dependem da estrutura e da constelação histórica da sociedade em que ele vive e age” (ELIAS, 1994).

Assim, é fato que o habitus patriarcal acaba por culminar em diversos contextos de desigualdade de gênero e de violência contra as mulheres que, por sua vez, alinham-se com o exercício da dominação viril.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste texto foi discutir, a partir da teoria de Bourdieu, os conceitos de hábitus, patriarcado e dominação masculina em contraponto ao contexto de subordinação e vitimização das mulheres em Alagoas.

A partir dos indicadores e algumas especificidades dos assassinatos das mulheres no estado alagoanos, procedeu-se uma breve análise deste cenário e sua aparente relação com os esquemas de dominação patriarcal que superam as barreiras dos espaços domésticos, adentrando na esfera pública.

Como gritante consequência desta dominação que subjulga um gênero, exsurgem os altos indicadores de violência letal contra as mulheres em Alagoas que se eternizam na medida em que se se perpetua o habitus patriarcal que, tal qual aludido por Bourdieu, não é imutável, mas se prolonga no tempo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 1999.

BOURDIEU, Pierre. Entrevistado por Maria Andréa de Loyola. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2002.

COSTA, João Craveiro. Deve a professora casar? Revista de ensino Orgao Official da Directoria Geral da Instrucção Publica. Maceió, AL, n. 5, ano 1, set./Out. 1927.

ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. p. 24ss

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Trad. Ruy Jungmann. 2. ed. Rio deJaneiro: Zahar, 1994.

HERCULANO, Edgleide de Oliveira. A Figura Socioeducativa da Mulher na História da Educação Alagoana – Séc. IIX e XX. Maceió: EDUFAL, 2015.

JOHNSON, M. Two types of violence against women in the american family: identifying patriarchal terrorism and common couple violence. In: Annual Meeting of the National Council on Family Relations, Irvine, CA, nov. 1999.

PINTO, Louis, (2000). Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social. Rio de Janeiro: Editora da FGV.

SETTON, Maria da Graça Jacintho Setton. A Teoria do Habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Revista Brasileira de Educação, nº 20, maio/jun/Jul/ago, 2002.

SILVA, Célia N. LUCENA, Eduardo A. D. SANTOS, Denisso S. Entre Lobos – Feminicídio e violência de gênero em Alagoas. Alagoas: Edufal, 2015.

WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil. Flasco. Brasília - DF, 2015.


Notas

[1] CARLES, Pierre. La sociologie est un sport de combat (2002).

[2] Alagoas é 4ª estado mais violento para mulheres no Brasil segundo Mapa da violência – homicídio de mulheres no Brasil (WAISELFISZ, 2015). 

[3] Frise-se que as informações coletadas e reunidas pelo NEAC são os dados preenchidos pelas polícias civis quando dos registros dos Boletins de Ocorrência dos crimes em Alagoas.

[4] Cravreiro Costa foi um importante escritor, servidor público e jornalista alagoano que chegou a trabalhar, também, como diretor e inspetor escolar.

Sobre a autora
Anne Caroline Fidelis de Lima

Advogada, bacharela em Direito pela Universidade Federal de Alagoas, professora universitária, mestra em sociologia pela Universidade Federal de Alagoas, pós-graduada em direito civil, processo civil pela Escola Superior de Advocacia da OAB/AL e em gestão pública municipal pela Universidade Federal de Alagoas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Anne Caroline Fidelis. Machismo mata?: O habitus do patriarcado em Alagoas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5252, 17 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58899. Acesso em: 5 nov. 2024.

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