3. DA IMPROPRIEDADE DA IDENTIFICAÇÃO ENTRE A RESERVA DO POSSÍVEL E A DIMENSÃO DOS CUSTOS DOS DIREITOS
Com efeito, a tese aqui defendida sustenta que a reserva do possível, a fim de que assuma seu devido lócus na dogmática dos direitos fundamentais, deve necessariamente ser objeto de uma releitura normativa, a partir da qual a vazia e simbólica pré-compreensão de uma imposição do fático se converta em um espaço categorial constitucionalmente fundamentado. É dizer, entendido o Direito como portador de um discurso que se configura como um caso especial do discurso prático geral, inadmite-se que um elemento da realidade, desamparado de fundamento no jus positum, imponha-se imediatamente como restritivo ou configurador do âmbito normativo de direitos fundamentais de estatura constitucional, sob pena da perda da normatividade do direito e da abertura escancarada ao decisionismo.
Ora, considerado o discurso jurídico como um caso especial do discurso prático geral, singularizado por sua vinculação ao direito positivo, conforme leciona Alexy[20], verifica-se que a dimensão dos custos não pode, per si, dar azo à limitação de direitos fundamentais sociais. Faz-se necessário, pois, que encontre supedâneo em normas de idêntica estatura constitucional, premissa conducente a uma redefinição dos contornos da reserva do possível, de modo a enquadrá-la honestamente na moldura da positividade jurídica.
A diferenciação da argumentação jurídica em face da argumentação moral, da qual é espécie, reside na vinculação formal e material daquela com o direito positivo, apenas afastável nos casos em que a observância da positividade jurídica conduza a uma decisão portadora de injustiça extrema. Deste modo, as restrições acaso impostas às normas definidoras de direitos prestacionais constitucionais, para que sejam discursivamente justificáveis em suas pretensões de correção, não hão de encontrar suporte único e imediato em um elemento da realidade, desgarrado de fundamento constitucional.
Semelhante imposição do fático sobre o jurídico instauraria, de pouco em pouco, perigoso fractal na normatividade constitucional, rompendo com a “vontade de constituição”, de que nos fala Hesse, corporificada em um propósito compartilhado pela consciência coletiva que, fulcrado em um consenso sobre o valor de uma ordem normativa inquebrantável, está a exigir concretização e respeito diuturnos de toda a coletividade.
Lado outro, a caracterização da reserva do possível como um limite imanente aos direitos fundamentais sociais é refratária ao princípio democrático, porquanto obstaculiza que as pré-compreensões do intérprete sobre a extensão do âmbito de proteção dessas normas seja submetida ao crivo do discurso racional, favorecendo a sub-reptícia imposição autoritativa de uma ideologia orientada à perpetuação inefetividade dos direitos de segunda dimensão. É dizer, ao não entender a discussão sobre a determinação da regra de direito fundamental aplicável ao caso como uma colisão entre princípios, mas sim como o desenho solipsista daquilo que é definitivamente protegido por uma norma de suporte fático restrito, impede que todas as razões pertinentes à decisão venham à fala e imuniza as intervenções ancoradas em supostas limitações orçamentárias ao controle de sua constitucionalidade.
A breve exposição acima encartada aponta para a imprescindibilidade de um remanejamento teórico que harmonize a cláusula da reserva da possível com a máxima efetividade dos direitos fundamentais, impondo suficientes ônus argumentativos àquele que pretender aventá-la como impeditivo à verificação in concreto de um direito fundamental social. Nesse sentido, a Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy oferece uma proposta consistente e adequada à luz do projeto insculpido na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, uma vez que concilia de forma ótima a proteção aos direitos sociais com a consideração dos demais princípios constitucionais posto em jogo, em razão, por exemplo, do suporte fático amplo das normas-princípio e da regra da proporcionalidade, preenchida por sua teoria da argumentação jurídica.[21]
4. A RESERVA DO POSSÍVEL SOB A ÓTICA DA TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE ROBERT ALEXY
Os direitos fundamentais são concebidos, na esteira do pensamento de Robert Alexy, como dotados, em sua maioria, da estrutura de normas-princípios, mandamentos de otimização que ordenam que algo se realize na maior medida possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas evocadas pelo caso concreto. Distingue-se sua formulação da teoria interna, anteriormente exposta, por compreender limitações e direitos fundamentais como entes diversos. Dito de modo analítico: afasta-se a imanência dos limites para compreendê-los como genuínas restrições que, resultantes das permanentes colisões entre as normas definidoras direitos fundamentais, devem encontrar fundamento constitucional para que prosperem no caso concreto.
Labora-se com a noção de suporte fático amplo, entendendo-se que tudo aquilo que possa se relacionar de algum modo com a esfera temática de um direito fundamental deve ser inicialmente albergado por seu âmbito de proteção e que toda ação refratária a essa posição há de ser reputada como intervenção que, diante das condições fáticas e jurídicas do caso, poderá ser constitucional ou inconstitucional. Os direitos subjetivos sociais passam, sob este prisma, a serem considerados direitos subjetivos prima facie, cuja transmutação em definitivos dependerá da ponderação com os demais princípios e direitos com eles colidentes, à vista das condicionantes do caso.
A partir da aplicação da regra da proporcionalidade, médium discursivo e corolário da caracterização de princípios como mandamentos de otimização, decide-se pela precedência condicionada do direito social subjetivamente pretendido ou do feixe de princípios com ele colidentes, formulando-se uma regra (direito definitivo) que imputa a aplicação da consequência jurídica prevista pelo(s) princípio(s) preeminente(s) in casu.
À luz da Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy, tem-se, assim, que a problemática da reserva do possível se resolve a partir das leis de colisão e sopesamento.[22] Os pleitos de prestações positivas originárias formulados perante o judiciário expressariam, nessa toada, uma colisão entre o princípio da liberdade em sua vertente material e os princípios da competência decisória do legislativo, da separação dos Poderes e outros princípios materiais atinentes aos direitos sociais da coletividade, cujo atendimento poderia, inicialmente, ser comprometido com a concessão do provimento almejado. A prevalência ou não da reserva do possível nos casos concretos seria resolvida a partir de uma relação de precedência condicionada entre esses princípios, mediada pelas três sub-regras da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito).
É nesse segundo passo, vale dizer, quando da argumentação travada no bojo da estrutura da ponderação, que a temática do custeio encontrará pertinência, como razão a suportar o grau de importância da preservação dos direitos sociais da coletividade e do princípio da competência decisória do legislador em detrimento do direito social individualmente pugnado.
Deveras, com espeque no princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, albergado pelo art. 5º, §1º, da CRFB, a adoção desta teoria é a opção que melhor se compatibiliza com o ordenamento jurídico brasileiro, haja vista que, por atribuir suporte fático amplo aos direitos fundamentais sociais, impede que pretensões individuais a prestações positivas sejam excluídas aprioristicamente, sob um místico e irrefletido emprego da reserva do possível. A esse respeito, esclarece Virgílio Afonso da Silva:
Como se perceberá, a forma de argumentação muda por completo se se parte do paradigma do suporte fático amplo. Mas essa mudança na argumentação não é um fim em si mesmo: como se pretende demonstrar, as exigências que o modelo do suporte fático amplo impõe à argumentação implicam um maior grau de proteção aos direitos fundamentais.[23]
Vê-se, para além disso, que a primazia da Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy reside não apenas no grau de proteção que resulta da atribuição de um suporte fático amplo aos direitos fundamentais sociais, fomentador da máxima efetividade dessas normas, senão também em sua superior compatibilidade com o princípio democrático, na medida em que, ao qualificar esses direitos como direitos prima facie e legar a apuração da posição definitivamente tutelada para momento ulterior ao arrazoado da ponderação, obsta que o decisionismo se instaure pela anteposição de uma pré-compreensão que, imune ao debate, convenientemente defina o âmbito normativo de um direito fundamental como arbitrariamente reduzido, em razão de uma pretensa e não-juridicamente refletida imposição imaginária da escassez de recursos.
Conforme salienta Virgílio Afonso da Silva[24], nas teorias internas dos direitos fundamentais, é a própria pré-compreensão do intérprete sobre o que significa um direito fundamental e seus limites imanentes que define o resultado; ao passo que, nas teorias externas, a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma medida alegadamente restritiva ou não-realizadora de um direito fundamental social não é definida por qualquer pré-compreensão, mas por argumentos que tem de ser elencados às claras e bem fundamentados.
Hans Georg-Gadamer, ao promover a reabilitação dos preconceitos, expostos em sua obra como condição de possibilidade de toda compreensão, adverte, porém, para a importante distinção entre pré-compreensões legítimas e ilegítimas. Os preconceitos ilegítimos qualificam-se como aqueles que permanecem na penumbra, isto é, que não assomam à consciência crítica do intérprete, corporificando um impeditivo à perfeição da fusão de horizontes e, por isso mesmo, de todo o processo compreensivo. A resultante de sua imposição seria o mal-entendido, que, é forçoso assentir, se estamparia em uma decisão judicial na qual a dimensão do custeio se apresentasse como limite a priori de um direito fundamental. Isso porque, como assevera Gadamer:
Todo o encontro com a tradição realizado com consciência histórica experimenta por si mesmo a relação de tensão entre texto e presente. A tarefa hermenêutica consiste em não ocultar esta tensão em uma assimilação ingênua, mas em desenvolvê-la conscientemente.[25]
A teoria do direito de Robert Alexy cuida, outrossim, de oferecer veios metodológicos para a reflexão racional dessas pré-compreensões. Frise-se que o método não é tratado pelo autor como fim em si mesmo, mas como redutor possível da discricionariedade judicial, hábil a propiciar um ambiente discursivo moralmente inclusivo em que prevaleça o melhor argumento ante a normatividade jurídica.
Feitas essas considerações, conclui-se, pois, que, em leitura alexyana, a reserva do possível expressa uma relação de precedência condicionada verificada nos casos concretos em que prevalentes os direitos sociais de toda a coletividade, ou os princípios da competência decisória do legislador e da separação de poderes, diante dos direitos subjetivos sociais reclamados, ao mesmo tempo em que se identifica com a estrutura principiológica destas normas, a reclamar submissão ao devido crivo das sub-regras da proporcionalidade para que o direito prima facie se repute definitivo no caso concreto. Rejeita-se, ainda, neste trabalho, a ideia de um mínimo existencial anterior à ponderação. Este qualifica-se, diversamente, como sua resultante, verificada nos casos em que o grau de importância da satisfação de um direito fundamental social é tão elevado que torna assaz reduzida sua derrotabilidade no teste de proporcionalidade.
Redefine-se a reserva do possível em dimensão bifronte, cindindo-se no que denominaremos de reserva do possível como ponto de partida e reserva do possível como ponto de chegada. Na primeira acepção, corresponde à exigência de que um direito subjetivo social prima facie seja ponderado para que dê suporte ao nascedouro de uma regra que imponha como consequência a concretização da prestação positiva pleiteada em juízo. Na segunda acepção, consistirá, precisamente, nas condições fáticas e jurídicas nas quais se verifica, como resultante da aplicação da estrutura racional da ponderação, a prevalência do feixe de princípios colidentes com o direito social subjetivamente pleiteado, a conferir suporte constitucional à omissão estatal.
Com efeito, uma tal reformulação, por vincular a reserva do possível às condicionantes do caso, determinando ônus argumentativos pujantes para a verificação de sua caracterização como ponto de chegada e forçando à abertura dialógica das pré-compreensões do intérprete, garante que a determinação das relações de precedência condicionada respeitantes ao processo concretizador dos direitos fundamentais sociais se faça da maneira mais democrática possível, porquanto obsta que uma ou outra ideologia subreptícia se firme apriorística e inadvertidamente sob o pálio de uma terminologia simbólica, que, por não adquirir consciência de si e do outro, ignora o pluralismo social e a normatividade jurídica, minando a força normativa da Constituição.