III – AVALIAÇÃO TÉCNICO-JURÍDICA PARA A NÃO LAVRATURA DE UM AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE (PRERROGATIVA EXCLUSIVA DA AUTORIDADE POLICIAL)
Se para edificarmos o auto de prisão temos que fundamentá-lo, o que dirá para não fazê-lo.
A rigor, sempre se questionou sobre a possibilidade do Delegado de Polícia assim agir, principalmente em razão das várias denúncias feitas por promotores em desfavor de autoridades policiais que, mesmo fundamentando, foram indevidamente acusadas de prevaricação.
Bem, sem prejuízo da avaliação do estado de flagrante, deve ainda a autoridade policial atentar para a existência ou não da já estudada fundada suspeita. Sem ela, não há como ser a prisão em flagrante delito ultimada.
Um evento envolvendo um indivíduo sob o qual recai a suspeita de ser preso deve sempre ser apresentado à autoridade policial. Para a convalidação (ou não), recomendamos o seguinte trâmite:
Após a oitiva dos implicados, caso não fique latente a fundada suspeita exigida pela lei (art. 304, parágrafo 1º do Código de Processo Penal), deve a autoridade policial desprezar a elaboração do auto de prisão em flagrante.
Importante que, no auto de prisão, deve ficar latente a fundada suspeita exigida pela lei, sob pena de questionamento do auto, a saber:
Mera suspeita é o “talvez seja”. Suspeita é o que “parece ser”. Ambas são frágeis, indicam suposições ou simples desconfianças. De outra banda, a fundada suspeita (exigida pela nossa lei) é o “tudo leva a crer”. Assim, sem se houver apenas suspeita, entendemos não estar autorizada a lavratura do auto. Já a “fundada” baseia-se em elementos concretos e seguros, idôneos, não se confundindo, sequer em tese, com a simples suspeição (parece ser, acredito que seja, acho que seja etc).
A fundada suspeita necessária para a recolha à prisão é aquela justa, objetiva, razoável, galgada em bases sólidas e, sobretudo, muito bem fundamentadas. Ninguém pode ser preso em flagrante por mera dedução de cunho subjetivo, exigindo-se, até para que impere a segurança jurídica, que elementos de prova concretos, técnicos e jurídicos, existam. E essa é a função da autoridade policial nesse primeiro momento, ou seja, é dela o múnus de fazer essa avaliação e decidir, fundamentadamente, se o caso é ou não de encarceramento. Não se trata, frise-se, de bel prazer, mas sim, de exame das circunstâncias objetivas que fundem, de fato, essa suspeita.
O art. 4º da Lei Federal n° 4.898/65 diz ser crime ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder. Assim, é importante que a autoridade policial saiba que, nesse particular, essa dita “formalidade legal” exigida para a elevação do auto de prisão é a boa demonstração da fundada suspeita – exigida pelo art. 304, parágrafo 1º do Código de Processo Penal –, sob pena de, em isso não sendo feito (se prender por prender), emergir eventual abuso.
Deve ela, nas hipóteses da não convalidação da prisão, agir nos moldes da Recomendação DGP-01, de 13 de junho de 2005 (item XVI), ou seja, deverá registrar o fato em boletim de ocorrência, sem emitir o recibo de entrega de preso, em seguida adotando as providências de polícia judiciária cabíveis, inclusive para responsabilização criminal dos autores da detenção indevida, se for o caso.
Note-se que esse ato da Delegacia Geral, antes mesmo da nova Emenda Constitucional, já sugestionava que cabia exclusivamente a autoridade policial formar, soberanamente, sua convicção jurídica e, então, determinar, ou não, a lavratura do auto de prisão, inadmitido qualquer tipo de ingerência relativamente ao enquadramento típico e a existência de estado flagrancial (item I).
Em razão disso, a autoridade policial, hoje, tem absoluta liberdade para avaliar se o caso apresentado é ou não caracterizador de flagrante e, caso seja ela inadvertidamente admoestada em razão disso, cremos ser cabido o regresso, correcional inclusive, a fim de que o algoz seja instado a justificar:
a) Os motivos que o levaram a ignorar a Constituição do Estado, que dá ao Delegado de Polícia, de forma clara e objetiva, independência funcional;
b) Os motivos de desmerecimento ao Código de Processo Penal, que dá ao Delegado de Polícia o mister de avaliar se, contra o detido, emerge ou não fundada suspeita, e;
c) Os motivos de desprezo aos termos da Recomendação DGP- 01/05, que dá a autoridade policial o dever de, em lugar do auto constritivo, registrar os fatos em boletim de ocorrência, sendo estabelecido, inclusive, a absoluta impossibilidade de ingerência no que tange ao enquadramento típico penal e ao estado de flagrância (aplicável, “in casu”, a correção interna).
Para tanto, ou seja, para ter a guarida desse manto, deverá o Delegado de Polícia paulista agir em extrema consonância com o regramento imposto, a fim de, justificadamente, ter direito ao manto de proteção que a própria lei lhe estende, a saber:
a) Justificar toda e qualquer decisão de polícia judiciária, item a item, pautando os fundamentos técnicos e jurídicos que deram base a sua decisão e;
b) Demonstrar, sempre, a existência ou não de fundada suspeita contra um conduzido, pois, se assim não agir, poderá incorrer em eventual abuso, por ter deixado de observar formalidade legal (art. 304, parágrafo 1º do Código de Processo Penal).
Vejamos um exemplo em que o Delegado de Polícia, de forma motivada, deixa de lavrar um auto de prisão em flagrante e, de maneira técnica e juridicamente fundada, motiva a sua decisão num boletim de ocorrência.
Adotando as cautelas doravante sugeridas, cremos ser impraticável, sob o ponto de vista correcional, um questionamento por quem quer que seja e, ainda que ele exista, deverá ser de pronto espancado em razão dos itens acima descritos.
“Segundo consta, a guarnição (...), da (...), em ação de polícia de preservação da ordem, localizou, em busca pessoal a (...), um cartucho de arma de fogo similar ao calibre 38, o qual se encontrava em sua esfera de custódia, ou seja, numa pochete que portava.
Instado, (...) afirmou que se trata de um objeto dotado de valor meramente emocional, outrora titulado ao seu finado pai, sendo que, em verdade, ele, abordado, não possui ou sequer possuiu arma de fogo. Asseverou, ainda desconhecer o poder vulnerante, se é que ele existe, do citado objeto, o qual, há anos, carrega apenas em decorrência da alegada razão.
Conforme os membros da guarnição, a busca se deu em razão de mera rotina, em razão de objetivado acesso a praça desportiva ora sob policiamento estadual.
Estes os fatos trazidos a coleção da autoridade policial de serviço nesta circunscrição, a qual:
Considerando, que o estado de flagrância não comporta, dentro da relatividade dos juízos humanos, dúvidas quanto a autoria, sugerindo, sempre, a evidência clara e absoluta de um fato conhecido e prova e que, por força disso, a mínima certeza argüida desautoriza a lavratura do auto constritivo;
Considerando, que todo preceito que fere ou atinge a liberdade individual de alguém, deve ser interpretado de maneira mais restrita possível e que, se do teor das versões inicialmente ofertadas aos órgãos da Polícia Judiciária, emergirem fatos que denotem dúvidas e, por força disso, exijam maiores esclarecimento e investigações outras, em seara apropriada;
Considerando, que para recolha à prisão, exige a Lei que, sobre o conduzido, resulte efetivamente demonstrada uma suspeita fundada, a qual deve convergir para um conjunto de provas e evidências cabais que o apontem, de forma clara, idônea e induvidosa, como o potencial autor de uma infração penal, não bastando, para tanto, a mera suspeição e a vaga conjectura, sob pena de não se fazerem cumprir, para tanto, as formalidades legais e, em tese, emergir eventual abuso punido pelo art. 4º, “a”, da Lei nº 4.898/65;
Considerando, que a partir do advento da Lei nº 11.113, de 13 de maio de 2005, a Delegacia Geral de Polícia do Estado de São Paulo, passou a recomendar às suas autoridades policiais que, em decidindo estas pela inexistência de situação jurídica caracterizadora de flagrante, deverão as mesmas registrar o fato em Boletim de Ocorrência (RDO), sem emitir recibo de entrega de preso, em seguida adotando as medidas de polícia judiciária cabíveis (item XVI, da Recomendação DGP-001/05);
Considerando, que as Recomendações são instrumentos hábeis à consecução das finalidades institucionais, que estabelecem condutas a serem adotadas pelo Poder Público com o escopo de evitar a ocorrência de danos futuros, possibilitando, assim, resguardar a correta aplicação dos atos da administração e, ainda, estimular os atos discricionários dos agentes públicos que se encontram tendentes a realizá-los;
Considerando, por fim, que se às autoridades policiais é dada independência funcional para decidir sobre essas exigências legais, não lhe é lícito, por outro lado, agir sem se justificar, nos termos dos arts. 111 e 140, parágrafo 3º da Constituição do Estado de São Paulo;
Decidiu pelo registro do presente Boletim de Ocorrência, objetivando, assim, uma melhor individualização de condutas, a fim de que a autoria e a materialidade, estas sim, restem bem delineadas e desprovidas de dúvidas, a fim de que possa o Poder Judiciário declarar ou não a existência de responsabilidade criminal e impor eventual sanção penal, nos termos seguintes:
A munição, a bem da verdade, se constitui em parte funcional da arma de fogo, tanto que, sem ela, um revólver ou uma pistola tornar-se-iam apenas uma ferramenta metálica, sem qualquer aplicação ofensiva.
Em termos técnicos, a munição é composta de quatro partes distintas, quais sejam, o estojo (constituído de latão), o projétil (em liga de chumbo), a espoleta (mistura iniciadora) e a pólvora (a base nitrocelulósica), sendo que, na falta de um deles, o cartucho, conseqüentemente, perde a sua idoneidade vulnerante. E tanto isso é verdade, que o Decreto Federal n°3.665/2000 (ainda em vigor até a edição de norma que o substitua, cf. art. 49, parágrafo único do Decreto Federal n° 5.123/04), define “munição” como um “artefato COMPLETO, PRONTO para ENCARREGAMENTO e DISPARO de uma arma” (art. 3o, LXIV).
Assim, caso a munição não esteja apta ao imediato “encarregamento” e “disparo”, não podemos considerá-la – ante a manifesta falta da presunção de periculosidade abstrata –, apta a materializar qualquer um dos crimes previstos pelo novo Estatuto do Desarmamento. Ademais, é certo que tal Diploma, ao tratar da munição, deixou de dar-lhe escorreita definição, cabendo ao intérprete socorrer-se do Regulamento no 105 (Decreto Federal no 3.665/2000), já mencionado.
Quanto à dinâmica dos fatos, é certo que o cartucho ora exibido fora encontrado em circunstâncias atípicas, desprovido de qualquer tipo de acondicionamento apropriado (v.g., caixas ou embalagens herméticas), o que, em princípio, poderia lhe dar um caráter de suposta efetividade para pronto encarregamento e disparo, haja vista a presunção de que os mesmos, naquelas condições fáticas, estariam aptos ao pronto emprego exigido pelo ainda vigente Decreto n° 3.665/2000, o qual, ao seu turno, completa (integra) as normas incriminadoras da Lei 10.826/03.
Destarte, em virtude das circunstâncias em que foi arrecadado, não pode esta autoridade policial, através de mero exame visual, constatar se os cartuchos em tela detém, formalmente, todos os componentes que o estruturam, principalmente a base nitrocelulósica interna, sem a qual, por certo, o mesmo a nada se prestaria.
Em virtude disso, deliberou-se pela inicial apreensão do mesmo, para que seja ele submetido à escorreita perícia técnica, a fim de que nos seja revelado, de maneira precisa, se o cartucho ora apresentado se enquadra no conceito trazido pelo Decreto Federal n° 3.665/2000 (com perigo de lesão ao bem jurídico), principalmente no quesito “artefato COMPLETO, pronto para ENCARREGAMENTO e DISPARO de uma arma”, sob pena de, em caso negativo, nos depararmos com a hipótese fática descrita no art.17 do Código Penal (CRIME IMPOSSÍVEL).
Outra hipótese é a alusiva ao instituto da apresentação espontânea. Bem sabemos que, com a recente reforma operada no Código de Processo Penal, essa figura deixou de ter previsão expressa. Entretanto, cremos que a autoridade policial está, ainda, habilitada a analisar tal situação, desde que de forma motivada.
A redação do art. 304 do Código de Processo Penal, sem prejuízo da revogação dos artigos 317 e 318, esclarece que “apresentado o preso a autoridade competente...”. Ou seja, “apresentado o preso” dá uma idéia de que fora ele levado, contra sua vontade, à presença da autoridade policial, ou seja, “apresentado” é uma coisa, “apresentar-se”, outra. E, em razão disso, entendemos que, se a pessoa apresentar-se a Delegacia de Polícia (ou à Polícia, de uma forma geral, está o Delegado de Polícia licenciado a deixar de prendê-la e investigar os fatos, de forma pormenorizada, em inquérito policial.
“Diante do caso presente, considerou o signatário não o pretenso estado de flagrância, mas sim, a espontaneidade da apresentação, a qual, em sendo verificada, fulmina, com base direta no art. 304 do Código de Processo Penal, eventual medida constritiva em desfavor do imputado.
Essa aferição – qual seja, a da espontaneidade – não detém regras fixas, tais como as das ciências exatas, tudo dependendo da análise do caso “in concreto”. Aludem as nossas fontes de Direito que o que veda a lavratura do auto de prisão não é a inexistência de uma das situações previstas no art. 304 do CPP, mas o interesse político criminal do Estado em não retirar o valor de todos os gestos do imputado, principalmente os de relevância moral e jurídica. Seria, conforme já se disse, ilógico que a legislação tratasse com similar rigor tanto aquele que, com odioso ardil, escapa e busca dificultar o mister dos órgãos de persecução, quanto aquele que, modo próprio, se apresenta e contribui para o esclarecimento dos fatos.
Assim, se a apresentação se der sem que coação estranha existia, não surdem motivos para deixarmos de reconhecer a espontaneidade.
Convém lembrarmos que, nos dias de hoje, o termo “apresentação espontânea” deve ser interpretado de forma progressiva, com lógica razoável diante das novas concepções ora ditadas pelas transformações científicas e tecnológicas, como o são as telecomunicações.
Nesse passo, o ato daquele que, ainda que por via indireta, se dirige ao Estado com o escopo de lhe dar conta de um evento danoso que deu causa e, na mesma oportunidade, dele ainda roga a presença no sítio dos acontecimentos, deve ser, por via teológica, entendido como livre e espontâneo.
Por derradeiro, o ato daquele que provoca ou aguarda a chegada do Estado e/ou de seus agentes no local dos fatos, equivale, destarte, a “apresentação espontânea” estatuída, “contrariu sensu”, no art. 304 do CPP, cuja regra, com fulcro nos fundamentos de fato e de direito acima lançados, ora esposamos. Essa ação, de imediata ciência, faz com que se repudiem as hipóteses da própria lei, quando esta usa as expressões “encontrado” ou “surpreendido” e que fazem sentir a involuntaridade da prisão.
Em tempo, considerando-se que a restrição a liberdade é exceção em nosso regime e, ante a ausência, S.M.J., de imprescindível “periculum in mora” no caso em tela, deixamos, por ora, de representar pela custódia preventiva do imputado”.