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Coronavírus e a recusa vacinal:

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Agenda 29/05/2020 às 16:00

Reflete-se sobre os impactos causados pelo movimento antivacinação na sociedade, a partir de breve estudo acerca da colisão havida entre os direitos fundamentais que envolvem o tema.

QUESTÕES FÁTICAS QUE ENVOLVEM O TEMA.

A vacina pode ser, vulgarmente, definida como o processo pelo qual ocorre a inoculação de um agente no corpo, seja um microrganismo ou uma substância, que produz imunidade para uma determinada doença[1]. Em 1796, foi criada a primeira vacina pelo médico inglês Edward Jenner, de forma a prevenir a varíola. Em 1804, por iniciativa do Barão de Barbacena, a vacina contra a varíola chega ao Brasil.

Desde o seu surgimento, sempre existiu a desconfiança sobre a utilidade e segurança das vacinas, ou seja, a recusa vacinal é um fenômeno histórico que colide com as estratégias governamentais de proteção à saúde da população.

Para exemplificarmos, após a vacinação antivariólica se tornar compulsória, na Inglaterra e no País de Gales (1853), ocorreram grandes manifestações populares com cerca de 20 mil pessoas em protestos contra a vacinação (1865). Os protestos ocorreram em vários outros lugares, inclusive, no Brasil, em 1904, na chamada Revolta da Vacina. Todavia, tais manifestações ocorriam mais em razão da repulsa da população contra a violência na implantação do programa do que contra a vacina em si. Dessa forma, tais manifestos não possuíam cunho religioso, mas político e social (LEVI, 2013, p. 19-20).

Atualmente, estima-se que 2,5 milhões de mortes anuais, entre crianças e adultos, sejam evitadas com as vacinas do calendário básico de vacinação em todo mundo (ARRUDA, 2014). Existem pessoas, nascidas a partir de 1990, que podem nunca ter tido contato com pessoas com sarampo ou rubéola e, principalmente, poliomielite (fora de circulação desde 1990)[2].

Nesse aspecto, o Brasil possui um dos melhores sistemas públicos de vacinação do mundo (Programa Nacional de Imunizações – PNI), que conta com a credibilidade da comunidade científica[3]. Todavia, a baixa vacinação na década de 2010 trouxe de volta doenças até então erradicadas, como o sarampo.

A queda possui vários motivos, dentre eles: a falsa sensação de segurança da população devido à ausência de circulação de algumas doenças, a deficiência de informações e o próprio movimento antivacinação. O último é tão sério que a Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu o movimento em seu relatório que elencou as dez principais ameaças para a saúde em 2019[4].  

Para ter uma noção quantitativa do que isso representa, “todos os anos, 1,5 milhões de crianças em todo mundo morrem de doenças que podem ser evitadas com vacinas – e os chamados “anti-vaxxers” contribuem para isso” (SBMT, 2019).

Importante destacar que, em 2019, o país, pela primeira vez desde 1994 (primeiro ano da coleta de dados), não atingiu a meta de vacinar 95% do público-alvo em nenhuma das 15 vacinas do calendário público (MADEIRO, 2020).

Para Guido Carlos Levi, atualmente, os movimentos antivacinacionistas perderam muito da sua base religiosa e tornaram-se, predominantemente, um fenômeno de classe sociais mais altas e de certos grupos intelectuais (LEVI, 2013, p. 20).

Além disso, em tempos de pandemia da doença do COVID-19 (Coronavírus - SARS-CoV-2), a criação de uma vacina representa a única esperança de uma saída eficaz para a situação posta, possibilitando o retorno das atividades e a recuperação econômica do país.

Apesar de a melhor previsão estabelecer o prazo de 12 a 18 meses para criação de uma vacina[5], a questão a ser enfrentada será a da recusa a tomar a vacina e a medida estatal que deverá ser adotada nesses casos.

O indivíduo pode recusar em se submeter a esse tratamento médico? Pode impedir que seus filhos tomem a vacina ante a uma convicção ideológica ou religiosa? As instituições (escolas, universidades, entes públicos, etc.) podem proibir a frequências de cidadãos não vacinados?

Óbvio que o ato da vacinação consiste não apenas em direito individual, mas em direito coletivo, uma vez que visa a resguardar a saúde de toda a coletividade. Contudo, cada caso deve ser analisado de forma específica e o aplicador da norma deve realizar o diálogo das fontes normativas para alcançar a melhor medida que refletirá a justiça para o caso em concreto, tendo como parâmetro não só os aspectos legais, mas, também, os fáticos que envolvem a matéria.


II. DA COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E DA OBRIGATORIEDADE DA VACINAÇÃO.

Se, por um lado, a Constituição Federal (CF) assegura o princípio da legalidade, estabelecendo que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, salvo em virtude de lei (art. 5ª, inc. II da CF), bem como resguarda os direitos da personalidade (art. 5, inc. II da CF), liberdade religiosa (art. 5º, inc. VI, VII, VIII da CF) e a livre manifestação do pensamento (art. 5º, inc. IV, art. 220, §2º da CF). Por outro, nossa Carta Magna estabelece como um dos direitos sociais à saúde (art. 6º da CF), ou seja, preconiza que a saúde é direito de todos, constituindo como dever do Estado assegurá-la, de forma a resguardar o valor maior: a vida.

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Dessa forma, quando estamos diante de um caso em que se discute o direito de se negar a receber o tratamento vacinal, verificamos uma colisão de direitos fundamentais. Segundo Marcelo Novelino, “a colisão de direitos ocorre quando dois ou mais direitos abstratamente válidos entram em conflito diante de um caso em concreto, hipótese na qual as soluções serão divergentes de acordo com o direito aplicado” (NOVELINO, 2013, p. 420).

Quando isso ocorre, deve-se aplicar o princípio da proporcionalidade como um “postulado” (estrutura complexa de raciocínio jurídico), e de suas três sub-regras (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) como forma de solução do conflito. Assim, em tese, “o aplicador do direito diante de um caso em concreto, seria, supostamente, capaz de atingir uma justificativa racional quanto à aplicação de um direito fundamental em precedência a outro também previsto constitucionalmente” (FERNANDES, 2017, p. 363).   

Nesse aspecto, dentre os direitos fundamentais previstos na nossa Carta Magna, o direito à vida destaca-se como o mais valioso, uma vez que a conservação da vida humana precede o próprio Estado Democrático de Direito, sendo a base de todo o ordenamento jurídico, condição básica para o exercício de todos os direitos fundamentais, pois sem ela não há personalidade, e sem esta não há como se cogitar o direito individual.

Dessa forma, não precisa de muito esforço para concluir que, em regra[6], toda conduta de um indivíduo, independentemente de estar agindo com base em um direito constitucional, deve ser suprimida caso sua conduta traga ameaça à integridade física de outrem, prevalecendo, portanto, o direito fundamental à vida.

Posto isto, Cezar Roberto Bitencourt destaca que “não há direito sobre a vida, ou seja, um direito de dispor, validamente, da própria vida. Em outros termos, a vida é um bem jurídico indisponível, porque constitui elemento necessário de todos os demais direitos! A vida não é um bem que se aceite ou se recuse simplesmente. Só se pode renunciar o que se possui, e não o que se é” (BITENCOURT, 2015, p. 53).   

Não é por outra razão que o constituinte inseriu no art. 6ª da CF, à saúde como direito social (segunda dimensão dos direitos fundamentais), que encontra fundamento vital no direito fundamental à vida. Nesse aspecto, Pedro Lenza destaca a dupla vertente dos direitos sociais, especialmente no tocante à saúde: a) natureza negativa: o Estado, ou terceiro, devem abster-se de praticar atos que prejudiquem terceiros; b) natureza positiva: fomenta-se um Estado prestacionista para implementar o direito social. (LENZA, 2010, p. 839).

Assim, por ser a saúde um direito de todos e um dever do Estado[7] (art. 196, CF), garantido mediante políticas sociais e econômicas que visam a redução do risco de doenças bem como a sua promoção, proteção e recuperação. Na década de 70 foi formulado o Programa Nacional de Imunizações – PNI (Lei nº 6.259/75, regulamentada pelo Decreto nº 78.231/76), que teve como objetivo coordenar as ações de imunizações, tornando obrigatória as vacinações em todo território nacional, conforme descrito no art. 27 do Decreto “serão obrigatórias, em todo o território nacional, as vacinações como tal definidas pelo Ministério da Saúde, contra as doenças controláveis por essa técnica de prevenção, consideradas relevantes no quadro nosológico nacional”.

Além disso, o art. 29 dispõe que “é dever de todo cidadão submeter-se e os menores dos quais tenha a guarda ou responsabilidade, à vacinação obrigatória”, só sendo dispensada da vacinação obrigatória, a pessoa que apresentar Atestado Médico de contraindicação explícita da aplicação da vacina.

Com intuito de reforçar as disposições citadas, a CF de 1988 em seu art. 227, estabelece como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida e à saúde. Dever reforçado posteriormente pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), que estabeleceu como “obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias” (art. 14 do ECA).

Por isso que “quando os pais se recusam a aceitar uma conduta claramente benéfica para seus filhos, como as vacinas, por exemplo. Nessa circunstância, para o melhor interesse do menor (art. 3, 4 e 5 do ECA) deve prevalecer  a responsabilidade do médico e da instituição hospitalar que existe independente da dos pais. Portanto, havendo ou não culpa dos pais ou responsáveis, faz-se necessária a notificação e a tomada de decisão a favor da proteção desse menor (art. 245, ECA), que está sofrendo situação de desamparo” (PFEIFFER, HIRSCHHEIMER, 2011, p. 46).

Nessa linha, o Ministério Público é competente para atuar na defesa dos direitos individuais indisponíveis (art. 127 da CF), podendo sobrepor, tanto o interesse dos genitores (art. 201 do ECA), quanto a própria vontade do indivíduo na disposição da sua integridade física, sempre que o ato colocar em risco a sua vida e, principalmente, a vida de terceiros.

É certo que o direito à vida não é absoluto, como nos casos de pena de morte (art. 5º, inc. XLVII, “a” da CF), aborto autorizado (art. 128 do CP), excludentes de ilicitudes (art. 23, CP), entre outras exceções. Nessa concepção, alguns poderiam sustentar que como o conteúdo essencial de um direito é variável, o direito à vida deveria ser suprimido ante o direito de liberdade do indivíduo.

Ocorre que todos os direitos fundamentais ligados à autonomia do indivíduo[8] são condicionados à sua existência (direito à vida). Dessa forma, “a interpretação que se faz é que as normas de regência buscam garantir a saúde do indivíduo e, por consequência, de toda a população, sendo, portanto, algo acima da escolha pessoal, por envolver a diminuição da exposição ao risco e ao contágio de determinadas doenças e ainda evitar o reaparecimento de doenças consideradas erradicadas”[9], o que torna impossível a harmonização desses interesses, devendo o judiciário fazer prevalecer a obrigatoriedade da vacinação, tanto do indivíduo, quanto das crianças e dos adolescentes.

Apesar de o art. 31 do Código de Ética Médica (CRM – Res. 1931/09) dizer que é vedado ao médico “desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”, e o art. 77 do Código de Ética da Enfermagem conter previsão semelhante, os dispositivos não podem ser utilizados no caso da vacinação, uma vez que o ato implica não em uma escolha individual, mas coletiva, na medida que coloca em risco demais pessoas, trazendo impactos, inclusive, no sistema de saúde pública, o que impõe a constitucionalidade do art. 27 do Decreto nº 78.231/76, bem como o dever do profissional de saúde em notificar às autoridades, em especial, quando se tratar de criança e adolescente.


III. O PAPEL DAS EMPRESAS NESSE CENÁRIO.

Dentro desse quadro, com a possível criação de uma vacina que combata o coronavírus, haverá o retorno pleno das atividades, podendo surgir a questão da obrigatoriedade de o funcionário ter que tomar a vacina.

As consequências negativas da recusa vacinal são notórias, bem como os riscos que o fato gera para as demais pessoas, além do próprio prejuízo para a empresa que pode ter uma contaminação massiva dos seus funcionários, o que poderá afetar o desenvolvimento das suas atividades.

A empresa possui a obrigação de zelar pela saúde do trabalhador, uma vez que o artigo 7º e inciso XXXII da CF estabelece que: “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”.

Nessa medida, é responsabilidade da empresa informar aos funcionários os benefícios da vacinação, dentre elas, o de zelar pela saúde individual do empregado, quanto dos demais colaboradores, fazendo cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho, evitando uma contaminação em massa dentro de seu ambiente.

Por outro lado, cabe aos empregados observarem as normas de segurança e medicina do trabalho, colaborando com a empresa para a sua aplicação (art. 158 da CLT), constituindo como ato faltoso a recusa injustificada.

Apesar de, atualmente, inexistir vacina contra o coronavírus, o fato não permanecerá dessa forma no futuro e a discussão será posta, principalmente, porque a preservação da vida é de interesse dos próprios trabalhadores.

Assim, caberá a empresa realizar um diálogo contínuo com seus empregados e, em casos conflitantes, deverá acionar o seu departamento jurídico para as medidas legais, cabendo ao juiz nas eventuais ações acidentárias, analisar o cumprimento das obrigações de cada parte[10], repartindo o ônus da prova, uma vez que o combate à pandemia é uma responsabilidade de todos, não cabendo a imputação somente à empresa ou aos seus funcionários.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCAFF, João Henrique. Coronavírus e a recusa vacinal:: a questão da obrigatoriedade da vacinação e o papel das empresas na preservação da saúde de seus colaboradores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6176, 29 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82227. Acesso em: 23 dez. 2024.

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