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STF e a nova “dogmática” (sic) do crime permanente

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Agenda 26/02/2021 às 11:40

O STF criou uma grande mixórdia quanto ao conceito de crime permanente em um caso concreto para justificar uma violação de residência por meio de um suposto estado flagrancial.

1-TEMPOS ESTRANHOS: SOBRE O QUE JÁ SE FALOU E NINGUÉM OUVIU

Desde a instauração dos famigerados inquéritos das “fake news” e dos “atos antidemocráticos” pelo STF, sob a presidência do Ministro Alexandre de Moraes, muito já se tem escrito e dito a respeito das inconstitucionalidades, ilegalidades, e até mesmo insanidades que informam tais procedimentos e seus desdobramentos. [1]

Assim sendo, não vamos nos alongar em questões como as seguintes:

- Magistrados atuando em fase investigativa direta;

- Violações da tripartição dos Poderes;

- Problemas de (im)parcialidade;

- Magistrados concedendo cautelares de ofício sem a provocação da Polícia ou do Ministério Público;

- Magistrado indicado Presidente do feito sem sorteio;

- Magistrados se manifestando sobre questões que irão posteriormente decidir e se tornando impedidos, mas ignorando esse empecilho;

- Magistrados que são, ao mesmo tempo, reconhecidamente (por eles mesmos), vítimas, investigadores, acusadores e juízes;

- Magistrados atuando contra pessoas que não se submetem à sua competência;

- Ordem de prisão em flagrante por escrito, servindo de uma espécie de “mandado”;

- Prisão de parlamentar em flagrante por crime afiançável, quando a CF somente o permite em crimes inafiançáveis (inafiançabilidade absoluta e não relativa);

- Invenção de uma situação flagrancial para justificar a entrada e a busca residencial durante a noite, violando de roldão o artigo 283, § 2º., CPP (respeito à inviolabilidade de domicílio); artigo 150, § 3º., III, CP (exigência de situação de flagrância para justificar a entrada em residência); artigo 22, § 1º., III da Lei 13.869/19, que estabelece como “Abuso de Autoridade” o ingresso irregular em residência em horário noturno e, finalmente, o artigo 5º., XI, CF.

Cremos ser o suficiente citar esses “pequenos” pontos sombrios de absoluta violação legal e constitucional no bojo desses inquéritos espúrios e seus atos subsequentes que se vão acumulando. Mas, o que são ilegalidades e inconstitucionalidades se são praticadas pelo órgão que deveria ser o principal defensor da Constituição e das Leis? Nada, não é mesmo? Porque se forem alguma coisa serão algo hediondo, praticamente indescritível.

Ademais, a moda já pegou. Agora também o Superior Tribunal de Justiça (STJ), por seu Presidente Ministro Humberto Martins, criou o seu próprio “inquérito teratológico”, mediante a Portaria STJ/GP 58 de 19 de fevereiro 2021, nos mesmos termos do “Inquérito do Fim do Mundo” do STF. [2] Aberto está o caminho para os Presidentes dos demais Tribunais Superiores, Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais e até mesmo Juízes de Comarcas ou Varas instaurarem inquéritos e investigarem à vontade, depois julgarem e executarem. Se alguém disser que não tem previsão em algum regimento interno, é só criar alguma coisa via Resolução ou mesmo acrescer algo aos respectivos regimentos e que se exploda a Constituição Federal e o Código de Processo Penal.


2-A NOVA “DOGMÁTICA” (SIC) DO STF A RESPEITO DO CRIME PERMANENTE

Diante do quadro acima descrito, que já foi devidamente submetido à critica, é perceptível que o STF faz ouvidos moucos para a razão e o razoável, de modo que a exposição e indicação das irregularidades já incansavelmente apontadas se faz tão somente como dever moral, sem a menor esperança de resultado prático.

O que causa perplexidade é que, diante da vontade de encarcerar um parlamentar que teria supostamente perpetrado ofensas à Corte e seus integrantes, bem como apologia a atos contra o Estado Democrático de Direito, o Ministro Alexandre de Moraes, para determinar a entrada em sua casa durante a noite, se preocupou em fundamentar sua ordem em uma situação de flagrância. O fato dos supostos crimes serem, na realidade, afiançáveis, não causou preocupação, assim como nenhuma outra irregularidade inerente ao próprio inquérito que preside.

Mas o Ministro se preocupou imensamente com a inviolabilidade de domicílio em horário noturno, usando da exceção do flagrante. Realmente, as preocupações com a legalidade e constitucionalidade de atos são imperscrutáveis quando se tratam de decisões tomadas no seio desses inquéritos ilegais. Não é possível compreender por que emerge em dado momento uma preocupação e, ao mesmo tempo, não há preocupação com absolutamente nada além daquele ponto específico.

Fato é que, para justificar o ingresso na residência do Deputado, alegou o Ministro que os supostos crimes perpetrados estariam com a consumação sendo protraída no tempo, vez que seriam “crimes permanentes” devido a estarem em vídeo exposto na internet. Sim, porque somente assim sendo seria possível sustentar o ingresso noturno para prender um Deputado por crime afiançável. Ao menos “meia legalidade” estaria fundamentada.

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Certamente faltou ao Ministro a noção de que “meia legalidade” é ilegalidade inteira, tal qual “meia verdade” é uma mentira completa. Mas, deixemos essa questão de lado e partamos para a análise dessa nova “dogmática” (sic) do STF sobre a questão do crime permanente. Note-se que é uma “dogmática” do STF e não do Ministro Alexandre de Moraes, já que foi corroborada pelos outros dez ministros, embora mediante um singelo “acompanho o relator”. Afinal, um mero “acompanho o relator” é suficiente num caso tão complexo, não é mesmo? Para que se preocupar com filigranas ou besteiras como o Princípio da Fundamentação das Decisões que está no texto constitucional? Bobagem!

Tendo em vista a imposição insopitável, irreformável e quiçá irretorquível ou daqui a pouco não sujeita sequer à crítica científica sob pena de prisão, das decisões proferidas pelo Pretório Excelso, certamente haverá de se reformular os compêndios doutrinários de Direito Penal sobre a temática do “Crime Permanente”, a fim de ajustar os entendimentos às diretrizes irrefutáveis da Corte Suprema.  

Entretanto, enquanto nos é dado a manifestação científica na área das ciências normativas, não é possível corroborar a tese produzida “ad hoc” pelo Ministro Alexandre de Moraes e confirmada por toda a Corte para tapar com uma peneira as luzes da ilegalidade. Ou seriam as trevas?

 Sobre o crime permanente ensina Dotti:

Crime permanente é aquele em que a consumação se protrai no tempo. Em tal situação, remanesce a ofensa ao bem jurídico protegido, como ocorre com o sequestro ou o cárcere privado (CP, art. 148). A perda da liberdade (bem tutelado) persiste enquanto a vítima continua em mãos dos delinquentes ou no cativeiro.

Nas infrações de caráter permanente, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência (CPP, art. 303) e a prescrição da ação penal (prescrição da pretensão punitiva) somente começa a correr do dia em que cessou a permanência (CP, art. 111, III)”. [3]

O texto doutrinal acima deixa entrever a razão (ou desrazão) pela qual o Ministro e seus pares precisavam sustentar a tese de crime permanente, qual seja, para legitimar o estado de flagrância e o ingresso domiciliar.

Também, ao lembrar os efeitos da permanência sobre a contagem dos prazos prescricionais, nos esclarece sobre a absurdidade de considerar um crime que seria por natureza instantâneo como permanente, somente levando em conta, não a permanência da conduta do infrator, mas o meio físico ou virtual pelo qual tal conduta é divulgada. Ora, se no crime permanente a prescrição somente começa a correr a partir da cessação da permanência, então estaria o nosso Pretório Excelso criando uma miríade de crimes imprescritíveis em frontal violação à Constituição Federal que somente prevê dois casos nos estritos termos do seu artigo 5º., XLII e XLIV.

Acontece que se uma pessoa escrevesse um livro, por exemplo, e em seu texto fizesse apologia ao crime ou ao criminoso, tal infração se convolaria em permanente pelo só fato de que o livro (base física onde as palavras criminosas se fixaram) estaria nas prateleiras de alguma livraria ou biblioteca. Então o suposto criminoso poderia ser preso em flagrante a qualquer tempo, mesmo muitos e muitos anos depois. O mesmo vale para o caso de um vídeo, como o do Deputado. Estando a conduta ali gravada e postada em disponibilidade pública, mesmo que ninguém tomasse uma providência por, digamos, cinquenta anos, ainda poderia haver a responsabilização criminal, pois a prescrição não estaria correndo. E assim por diante, poderíamos ter crimes imprescritíveis de ameaça, difamação, injúria etc. Isso não somente é juridicamente indefensável, como é absurdo.

Toledo apresenta a seguinte lição:

São instantâneos os crimes que possuem como objeto jurídico bens destrutíveis; permanentes aqueles cuja consumação, pela natureza do bem jurídico ofendido, pode protrair-se no tempo, detendo o agente o poder de fazer cessar o estado antijurídico por ele realizado. Dentro dessa concepção, poder-se-á concluir que, no delito instantâneo (furto, injúria etc.), a consumação ocorre em um momento certo, definido; no permanente, o momento consumativo é uma situação duradoura, cujo início não coincide com o de sua cessação (sequestro, cárcere privado, usurpação de função pública etc.). [4]

Conclui-se, portanto, que quando o momento consumativo é certo, definido, não se protraindo ou prolongando no tempo, o crime é instantâneo, não permanente. Lembremos que a consumação se dá pela prática de ato executório idôneo a tanto pelo agente, não por algum elemento ou circunstância externo independente (vide artigo 14, I e II, CP). Como é notório, é ao agente que cabe a realização da conduta que completa os elementos do tipo penal e produz a sua consumação. Como aduz Bettiol:

A consumação do crime pressupõe, portanto, que no fato concreto realizado pelo sujeito agente se encontrem todos os requisitos ou elementos essenciais descritos no fato típico abstrato. Entende-se consumado pois o crime, quando fato concreto e fato abstrato coincidem, entre si, perfeitamente (grifo nosso). [5]

 Por isso, sendo a consumação necessariamente obra do agente, o crime será permanente quando este (agente) puder controlar a situação concreta, alongando, por vontade própria, a consumação no tempo. Tanto é fato que existe também o chamado crime “instantâneo de efeitos permanentes”, que se caracteriza por uma consumação instantânea e um efeito permanente que não depende (o efeito) da vontade do agente [6] (v.g. crime de homicídio – após consumada a morte, esta permanece por natureza própria e não por desígnio ou ação do sujeito ativo). [7]

Quando alguém escreve um livro, concede uma entrevista na TV, rádio, jornal ou revista, produz, redige ou participa de um documentário e nesse contexto comete algum crime (por exemplo, uma ameaça, um crime contra a honra etc.), o crime se consuma no momento exato de sua prática pelo sujeito. Essa consumação é instantânea e não tem permanência no tempo, embora as mídias citadas possam circular por anos a fio. Já não é mais o agente quem atua, mas apenas se encontra a conduta criminosa gravada em um suporte físico ou de telecomunicação com acesso a terceiros.

Nessa confusão seria possível defender então que, se gravada uma extorsão, mesmo muito tempo depois, simplesmente reproduzindo a gravação, como que por mágica, seria possível prender o suspeito em flagrante. Não é possível confundir o agente e sua conduta com um suporte ou meio de divulgação desta, a não ser por uma absoluta ignorância (voluntária ou involuntária) da devida separação de categorias como um pressuposto para qualquer exercício racional.

Em latim, “Kategoria” tem o significado de “caráter ou espécie”. Para Aristóteles, “categorias ou predicamentos” são as diversas formas de afirmar algo de um sujeito. O estagirita distinguiu dez categorias lógicas e metafísicas: o ”sujeito (substância ou essência), a quantidade, a qualidade, a relação, o tempo, o lugar, a situação, a ação, a paixão e a possessão”. [8] Quando se confunde o agente e sua conduta com o suporte ou meio de divulgação, claramente há uma violação de uma regra básica da expressão racional e lógica. No mínimo há confusão entre sujeito e ação com circunstâncias de tempo, lugar e situação.

Observe-se, ainda, que “essas categorias não são espécies do gênero ser, mas gêneros supremos ou primeiros do ser”. Ou seja, podem coexistir, mas não se confundir entre si. Na atualidade, a palavra “categoria” é usada como sinônimo de “noção ou de conceito”, designando “a unidade de significação de um discurso epistemológico”. [9] Novamente, é evidente que não é possível obter unidade de significação ou sequer coerência num discurso que faça confusão entre o sujeito e sua ação e o suporte e meio de divulgação dessa ação do sujeito. A incapacidade (voluntária ou involuntária) de fazer essas distinções e evitar confusões de categorias somente pode levar a conclusões diabolicamente absurdas.

Talvez a mais clara expressão doutrinária seja a exposta por Mirabete e Fabbrini:

“Crime permanente existe quando a consumação se prolonga no tempo, dependente da ação do sujeito ativo”. [10]

É a “ação”, ou, mais genericamente, a “conduta” do sujeito ativo que sustenta a permanência do crime, não qualquer circunstância externa a isso.

Dessa maneira, quando alguém faz uma postagem em rede social ou qualquer veículo de internet, cujo conteúdo possa ser considerado criminoso, o mero suporte que mantém o registro da conduta ou da ação não é capaz de tornar o crime permanente. Isso porque não se trata mais da ação ou conduta do sujeito ativo da infração, mas da natureza própria do suporte de divulgação. Nem mesmo a alegação de que a qualquer momento o autor poderia retirar a postagem pode convencer.

A ação ou a conduta já foi perpetrada e se completou instantaneamente e sua “permanência” (usada aqui a palavra num sentido lato e não técnico) se dá por força da forma de funcionamento do suporte, o que também seria similar no que se refere a outras publicações, como livros, revistas, jornais, documentários etc. O autor do suposto crime não prossegue em sua conduta, apenas esta acaba ficando registrada em um suporte que permite o acesso. Esse suporte pode, obviamente, ser um meio de prova da conduta, mas não se confunde com ela. Confundir o meio de prova de uma conduta com a própria conduta é, novamente, uma incapacidade de concatenar ordenadamente o pensamento, distinguindo categorias.

A internet até pode nos incitar a pensar em novos conceitos e, muitas vezes, algumas revisões são necessárias no campo jurídico. Não obstante, no caso dos crimes permanentes, isso não ocorre, a não ser, como já dito, se permitirmos uma gigantesca e evidente confusão entre sujeito/conduta e suporte/meio de divulgação, ou mesmo entre a conduta em si e o meio de prova da conduta.

Enfim, pode-se afirmar que voluntária ou involuntariamente, o STF criou uma grande mixórdia quanto ao conceito de crime permanente em um caso concreto para justificar uma violação de residência por meio de um suposto estado flagrancial.

Esperemos que a doutrina pátria saiba não se deixar levar por esse tipo de “dogmática” (sic) “ad hoc” e que essa espécie de conduta tenha um dia seu fim, sob pena de tornar o mundo jurídico brasileiro um emaranhado de conceitos elaborados não com base no estudo da ciência normativa do Direito, mas sim com motivação em decisionismos, voluntarismos e interesses de momento. A ciência do Direito ou qualquer ciência jamais pode se estruturar de forma minimamente aceitável e, até mesmo, cognoscível em tais termos e condições.

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. STF e a nova “dogmática” (sic) do crime permanente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6449, 26 fev. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88736. Acesso em: 24 nov. 2024.

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