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Medidas sanitárias, risco democrático, liberdade religiosa e jurisprudência da crise: uma crônica constitucional da pandemia

Agenda 29/05/2021 às 16:55

Vivemos tempos difíceis, com um vírus que se espalha pelo mundo, trazendo desespero e sofrimento. Nosso país está em triste lugar em relação ao número de mortos, com quase meio milhão de vítimas fatais. Por que chegamos a estes números?

I. Introdução

Vivemos tempos difíceis, com um vírus que se espalha pelo mundo, trazendo desespero e sofrimento. Nosso país está em triste lugar em relação ao número de mortos, com quase meio milhão de vítimas fatais.

Retornando da Ásia no início do ano passado, tendo passado pela Tailândia, e Singapura, vi nos países citados a execução de medidas de controle da pandemia, a começar pela instalação de barreiras sanitárias. Chegando ao Brasil estranhei a normalidade dos aeroportos. Sequer fui perguntado se estivera na China, epicentro da crise pandêmica naquele momento. Entre nós, o cuidado começou, oficialmente, no final de março de 2020. Sofremos com um presidente omisso e, mais do que isto, negacionista, que não acredita nas conquistas da ciência, mantendo-se apegado a um suposto medicamento milagroso para curar o que tem chamado de gripezinha. O curioso é que, contra todas as evidências, superadas todas as dúvidas que eventualmente poderiam existir nos primeiros meses do ano passado, o presidente continua firme, ainda agora, sabotando as medidas sanitárias, promovendo aglomerações, recusando-se a usar máscara e a adotar outras iniciativas de segurança, instando, ademais, as pessoas a saírem de casa. Recentemente, uma CPI foi instalada para investigar os fatos aqui relatados.  Espera-se que desnude a cadeia de atos comissivos e omissivos que facilitaram a extensão desta tragédia.

II – Crise pandêmica, democracia e defesa da Constituição.

Iniciada a pandemia, medidas urgentes precisariam ser tomadas e elas, certamente, implicariam restrição ao exercício da cidadania, da liberdade,  dos direitos de reunião e associação, de locomoção, enfim, de alguns dos mais caros direitos fundamentais. Nestes casos, a história constitucional adverte, a instância normativa precisa regular a realidade fática, a situação de necessidade, sob pena de os fatores reais do poder assumirem a condução do país usurpando a soberania, fomentando a tentação do autoritarismo e do estado de exceção. O momento era propício para isso e, em contexto de experiências iliberais no mundo, todo o cuidado é pouco.

Vive-se, além disso, o mito da bondade do regime centralizador, segundo o qual, com comando unificado, é mais eficaz a resposta à crise pandêmica. A China pode confirmar a tese, mas, a Nova Zelândia e o Canadá, democráticos e plurais, a desmentem. No caso brasileiro, entretanto, a luta pela centralização do comando não era para unificar e racionalizar as políticas sanitárias, mas antes, para evitá-las, para dar à pandemia o tratamento que o presidente sugere todos os dias quando se dirige ao público. Tratava-se, então, de uma espécie de autoritarismo operado, sobretudo, através da omissão e da indiferença.

O ensaio autoritário do governo foi contido, felizmente, diante da resistência da sociedade civil, da imprensa e do contrapoder exercido pelos órgãos constitucionais de controle horizontal. O polêmico, mas eficaz, inquérito das fake news e aquele instaurado pelo Supremo para investigar manifestações antidemocráticas (grupos extremistas pedindo AI 5, intervenção militar e fechamento do CN e do STF), ambos relatados pelo Ministro Alexandre de Moraes, surtiram algum efeito. O Chefe do Executivo parece ter, ultimamente, adotado caminho distinto da colisão frontal com os demais poderes. Digo parece, porque o caminhar do presidente não é linear, claro, mas recheado de idas e vindas, de avanços e recuos.  De qualquer modo, a lenta erosão da democracia e o aparelhamento dos órgãos do Estado podem constituir estratégia associada momentânea, depois da formação, a preço de ouro, de uma instável base de apoio liderada pelo Centrão no Congresso Nacional.

Pesquisa realizada por Tom Ginsburg e Mila Versteeg, publicado no Harvard Law Review Blog, em 17 de abril do ano passado, demonstra que, no direito comparado, há basicamente três tipos de experiência de enfrentamento da pandemia.

  1. No primeiro grupo residem os países que apelam para uma espécie de estado de emergência, quando previsto em suas Constituições, com a consequente suspensão do exercício de direitos e concessão de poderes extraordinários ao governo para cuidar da questão por meio de decretos e outras medidas administrativas. É o caso da França e da Espanha, por exemplo, mas sempre com prazos definidos e controles parlamentar e jurisdicional sobre as medidas tomadas.
  2. No segundo grupo, encontram-se os países que fazem uso de legislação já vigente que, eventualmente, em casos como este, permitem a delegação da autoridade normativa e, para o combate da pandemia e a proteção final dos direitos fundamentais, autoriza a sua restrição. Não são exercidos propriamente poderes de exceção, mas atuação extraordinária diante das circunstâncias e do reconhecimento do estado de necessidade, de que a norma deve ser lida em seu contexto e que os direitos fundamentais não são absolutos, podendo sofrer restrição nas situações de colisão com outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos do indivíduo, dos grupos ou da comunidade. Assim atuaram, por exemplo, os Estados Unidos, o Japão, a Itália e a Bélgica.
  3. Há, por fim, um último grupo que precisou e aprovou com urgência legislação nova, no campo constitucional ou infraconstitucional, permitindo as medidas extraordinárias que não devem configurar, porém, medidas próprias de um estado de exceção. Trata-se, portanto, como lembra Pedro Serrano, de legalidade extraordinária e não de estado de exceção. É o caso da Hungria, Noruega e Gana. Na Hungria, como todos sabem, com nefastas consequências, por conta das iniciativas suspeitas de Victor Orbán orientadas, sem êxito felizmente, para transformar em permanentes medidas aprovadas para o período de enfrentamento da pandemia.

O Brasil adotou um modelo próprio, embora análogo ao último citado, fazendo uso da legislação vigente (artigos 131 e 268 do CP), da interpretação conforme de dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal com decisão cautelar deferida pelo Supremo Tribunal Federal em processo de controle abstrato de normas (que, depois, perdeu objeto diante da atuação do Legislativo), com a decretação de calamidade pública para autorizar os gastos imprevistos contra a pandemia, nos termos da lei de responsabilidade fiscal, e a aprovação de leis, inclusive complementares, e de emendas constitucionais voltadas ao referido combate.

A decretação de Estado de Emergência ou de Estado de Sítio, previstos na Constituição Federal (artigos 136, 137 a 139), ou de intervenção federal (art. 84, X), não seria nem necessária nem cabível para a luta contra a pandemia.

O Presidente da República, aproveitando-se da delicada situação, pretendeu, como antes referido, fazer a gestão unilateral, sobretudo por meio de decretos, das providências contra a crise, no que foi impedido por acertada decisão, prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, reconhecendo as competências constitucionais comum e concorrente na matéria. A crônica dos acontecimentos demonstra a orientação correta do aresto. Com erros e acertos, com cautela extremada ou ações exageradas no início, foram sobretudo os Estados e Municípios que tomaram as medidas indispensáveis, que se colocaram na linha de frente da luta, que conferiram algum relevo à proteção da saúde pública. No plano federal, sobretudo a partir da conduta do presidente, entre a omissão e a cloroquina, entre a troca de ministros e o incentivo à violação das regras de anteparo, vimos um país claudicante, sofrendo a explosão do número de vitimados pela pandemia.

Sim, temos falhado muito. Poderíamos ter feito muito mais. A questão da vacina, dependente da atuação do Ministério da Saúde, talvez seja a mais grave delas. Com o país, através do SUS, ostentando rara capacidade instalada para a promoção de campanhas de vacinação em massa, poderíamos ter atendido cerca de dois milhões de pessoas por dia. Estaríamos, agora, em condição bastante mais confortável. Curiosamente, do ponto de vista do direito as críticas devem ser menos duras. Conseguimos, por enquanto, superar a armadilha fatal do autoritarismo ou do aproveitamento da crise para o incremento da autoridade centralizadora do presidente. Sim, talvez fosse pensável, num futuro distante, quando a convocação do constituinte reformador não puser em risco as conquistas democráticas, uma emenda constitucional para inscrever no texto normativo da Lei Fundamental, ao lado dos estados de defesa e de sítio, a regulação de outro tipo de legalidade extraordinária, uma espécie de estado de emergência sanitária, como na França, para disciplinar o modo como o poder público reage em circunstâncias anormais de aperto pandêmico. Penso, todavia, que a iniciativa, como ficou provado até aqui, porque arriscada, é dispensável no momento.

III – O Congresso Nacional e a pandemia.

É verdade que, nos dias que correm, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal estão sendo avaliados pela sociedade brasileira a partir de severos escrutínios. Importa reconhecer, todavia, que os trabalhos da Corte e do Congresso foram fundamentais para a defesa da normatividade constitucional neste período particularmente crítico. Vejamos primeiro o papel funcional do Poder Legislativo. Ele aprovou: (i) a Lei 13.979/2020 que dispõe sobre o enfrentamento da pandemia, autorizando medidas sanitárias para a proteção emergencial do direito à saúde previsto do artigo 196 da CF; (ii) a Lei 14.010, a partir de anteprojeto elaborado por comissão sob a presidência do Ministro Toffoli e seguindo os exemplos dos EUA, Alemanha e Reino Unido, para tratar das relações privadas sob a pandemia; (iii) a Emenda Constitucional 106/2020 disciplinando o orçamento de guerra; (iv) a Emenda Constitucional 107/2020, autorizando o adiamento das eleições municipais (para os dias 15 e 29 de novembro), iniciativa negociada com o Tribunal Superior Eleitoral, partidos políticos e a sociedade civil e (v) a Lei Complementar 173, de 27 de maio de 2020, criando o programa federativo de enfrentamento ao novo coronavirus, alterando a Lei Complementar 101/2000 e contemplando recursos para os Estados, o Distrito Federal e para os Municípios, além de outras medidas. 

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O Poder Legislativo, entre nós, é complicado, claudicante, não suficientemente transparente, movendo-se com imensa dificuldade e alto custo político, o que compromete a sua credibilidade, mas ninguém pode negar que, no contexto em comento, ele trabalhou com a responsabilidade e velocidade que a gravidade do caso impõe. O Congresso Nacional, além disso, introduziu na ordem jurídica outras providências e figurou como uma caixa de ressonância dos interesses da sociedade na defesa da democracia, da segurança e da saúde pública. Cumpre lembrar, nesta altura, que as medidas mais generosas de apoio à sociedade civil partiram do Congresso Nacional e não do Executivo Federal. Claro, tudo isso, ainda antes das novas presidências alinhadas ao Centrão.

IV– O Supremo e a Jurisprudência da Crise

O Supremo Tribunal Federal, por seu turno, esteve consciente da gravidade da situação pela qual o país passa. Vê-se, inclusive, que nos períodos mais sensíveis, a conhecida divisão da Corte deu origem, neste ponto, a uma atuação concertada dos ministros. Em relação ao tema, um novo Supremo Tribunal Federal, mais unido e convergente, apareceu durante a pandemia.

Os manuais de direito constitucional apontam, entre nós, com esta ou aquela diferença, as funções básicas da jurisdição constitucional. Para simplificar o debate, cabe apontar as seguintes: (i) proteger o pacto federativo, (ii) garantir a efetividade da normatividade constitucional e dos pressupostos da democracia e (iii) atuar como instância contramajoritária. Ora, o Supremo, sensível às exigências do momento, tem, de modo sensato, exercido as três funções. Para confirmar a tese, calha recordar alguns casos implicando a construção da assim chamada jurisprudência da crise:  

  1. ACO 3.363/2020 – Autor Estado de São Paulo. A decisão beneficiou, depois, outros Estados. Foi concedida liminar permitindo o não pagamento das parcelas da dívida com a União e utilização dos recursos para o combate à pandemia. A ação perdeu objeto diante a aprovação da EC 106/2020 cuidando do orçamento de guerra.
  2. ADI 6357 – DF, rel. Alex. Moraes. Autorizando o poder público, a partir de uma inédita interpretação conforme de dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal, a fazer gastos não previstos no orçamento.
  3. ADPF 672, aforada pela OAB, rel. Min. Alexandre de Morais. Reconheceu a competência concorrente para a edição das iniciativas necessárias para o combate à pandemia, retirando, assim, o papel centralizador da União. Esta medida foi responsável pelo salvamento de muitas vidas, considerando o modo como o governo federal tem enfrentado a pandemia.
  4. ADI 6351, rel. Min. Alexandre de Morais. Decisão suspendeu a eficácia de dispositivos da lei de acesso à informação que contrariavam as exigências constitucionais relativas à publicidade e transparência.
  5. ADPF 635, rel. Min. Fachin. Foi deferida liminar proibindo as operações da polícia militar em favelas do Rio de Janeiro, preservando muitas vidas, particularmente de pessoas jovens, pobres e negras.
  6. ADPF 669 aforada pela REDE (e 668 pela CNTM). Concedida liminar pelo Ministro Barroso proibindo a campanha publicitária “O Brasil não pode parar”, por levar mensagem não condizente com a gravidade da pandemia. Esta decisão, também, salvou muitas vidas.
  7. ADPF 709, aforada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e cinco partidos políticos (PSB, PCdoB, PSOL, PT e PDT) para impedir o genocídio dos povos indígenas. Cautelar concedida pelo Ministro Barroso determinando a colocação de barreiras nos acessos às terras indígenas e uma sala de situação para acompanhar a evolução dos programas de proteção às populações originárias.

Além das decisões acima referidas, o Supremo Tribunal Federal alterou o Regimento Interno para autorizar a sua atuação colegiada por meio remoto (Plenário Virtual), permitindo presteza e celeridade na apreciação dos temas que vão sendo levados a julgamento.

Como se vê, criticadas algumas vezes com razão, outras tantas injustamente por grupos radicais de direita refratários ao compromisso democrático, no período, com exceção do Executivo, os demais órgãos constitucionais têm demonstrado sensibilidade para o enfrentamento da tragédia causada pela propagação do novo coronavírus.

V – O uso abusivo da Lei de Segurança Nacional durante a pandemia.

O Brasil passou depois de meados dos anos oitenta e, particularmente, após a promulgação da Constituição por um lento processo de reconstrução das instituições democráticas. Embora o país tenha experimentado vicissitudes que colocaram à prova a robustez da nossa democracia, caso do impeachment de dois presidentes por exemplo, o percurso foi relativamente exitoso. Os movimentos de junho de 2013, as eleições presidenciais de 2014, a Lava Jato, o impeachment da presidenta Dilma, a polarização política e o jogo partidário duro, implacável, operaram a divisão radical da sociedade, esgarçando a confiança na capacidade do país erigir um arranjo institucional adequado e duradouro. Isso ficou mais evidente com o presidente Bolsonaro, eleito manobrando um discurso populista de extrema-direita supostamente regenerador. Hoje a normativa constitucional, os direitos fundamentais, a imprensa, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal sofrem ataques periódicos, sendo testados quanto às respectivas capacidades de resiliência. Além da corrosão continuada dos alicerces democráticos do país, por duas vezes, pelo menos, o presidente namorou com a possibilidade de golpe no sentido clássico, tristemente conhecido pela nossa história. É nesse contexto que emerge a preocupação com o legalismo autoritário, com a defesa das instituições por meio da assim chamada democracia militante e com o combate às práticas iliberais ou ao constitucionalismo abusivo.

O uso das redes sociais para a disseminação de fake news, as práticas digitais protofascistas, as ameaças aos grupos discordantes, à oposição, aos advogados e jornalistas não tem, entretanto, sido suficientes. Cuida-se, também, além da captura das agências de controle horizontal, da cooptação de dirigentes de órgãos constitucionais ou do desmonte de políticas públicas concretizadoras de direitos fundamentais, da utilização dos instrumentos legais, particularmente daquele entulho autoritário que sobreviveu ao processo de redemocratização, para atacar, punir ou intimidar quem ousa manifestar crítica contra o presidente ou seu governo. A estratégia é bem conhecida. Trata-se de esfriar e comprimir a livre circulação de ideias, de intimidar determinados nomes como medida exemplar para desestimular o avanço da crítica, erodindo, assim, não apenas as virtudes cívicas e a vitalidade do mercado de ideias, mas um dos pilares da república consistente no princípio de que nenhum ocupante de cargo público deve ficar imune ao escrutínio, ainda que duro e injusto, dos cidadãos ocupando o espaço público.

A Lei de Segurança Nacional (Lei. 7.170/83), tem sido manejada como arma poderosa para as finalidades aludidas. Promulgada em 1983, durante o governo Figueiredo, já no contexto da “abertura lenta, gradual e segura”, menos dura, portanto, do que as pretéritas e análogas normativas editadas durante a ditadura militar, ainda assim ostenta uma filosofia violadora das diretrizes democráticas e pluralistas introduzidas pela Constituição de 1988. A frequência com a qual tem sido manejada, ultimamente, é preocupante. O governo, claro, não gosta de ver a sua imagem associada ao protofascismo e ao genocídio. São dezenas de inquéritos instaurados, a maioria por iniciativa do ministro da justiça, os primeiros casos com Sérgio Moro, outros tantos com André Mendonça, pondo em risco direitos caros e, em especial, a livre expressão do pensamento, essenciais numa democracia constitucional robusta. Bem por isso, há vários projetos de lei tramitando no Congresso Nacional com o propósito de substituir a Lei de Segurança Nacional, muito focada na defesa do Estado compreendido a partir da velha ótica do regime militar, por um instrumento normativo de defesa das instituições democráticas da sociedade pluralista e inclusiva que a Lei Fundamental pretendeu instituir. Uma frente de trabalho valiosa, portanto, para aqueles comprometidos com a democracia, é a luta pela aprovação de nova lei compatível com a Constituição. Isto, entretanto, não é demais reconhecer, pode levar algum tempo.

Esta é a razão pela qual vários partidos políticos (PTB, PSB, PSDB e PT, PSOL e PCdoB) aforaram (quatro) Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs), mecanismo de controle concentrado da constitucionalidade, perante a Suprema Corte, para atacar a lei em questão e denunciar o seu indisputável contraste com a ordem constitucional. Há ADPFs que postulam, tal como ocorreu com a lei de imprensa, também obra da ditadura militar, a declaração de sua incompatibilidade integral (hipótese de revogação), situação por exemplo da apresentada pelo PSDB, e outra, manejada pelo PSB, que impugna os dispositivos mais graves, pede a interpretação conforme de outros, mantendo, enquanto nova lei não for introduzida pelo Legislativo, os artigos compatíveis com a Lei Fundamental, filtrados e relidos à luz desta, em particular para evitar a possibilidade de vácuo legislativo e permitir às instituições da república, como tem ocorrido com o Supremo Tribunal Federal, o combate às ações antidemocráticas dos grupos tomados pelo sectarismo e pela visão autoritária do mundo da vida. Isso já seria suficiente, neste momento grave pelo qual passa a nação, para, prevenindo o uso arbitrário, contínuo e intimidatório da lei pelos órgãos de repressão, reforçar a efetividade dos direitos e garantias, notadamente das liberdades de crítica e de oposição, gravemente feridos nos dias que correm.

O Congresso deve cumprir o seu papel. Uma nova lei é necessária para defender a democracia contra aqueles que usam as franquias da democracia com o propósito de erodir as suas virtudes, aniquilar os seus preceitos e desacreditar as instituições. Falo, aqui, do paradoxo da democracia nos termos da doutrina de Popper. A superação da ingenuidade é reclamada para a sobrevivência da civilização e da Constituição democrática. Mas enquanto o Congresso mantém-se inerte, importa esperar que a Suprema Corte reconheça a discrepância dos dispositivos violadores da Lei Fundamental, opere a releitura dos que, com algum esforço hermenêutico, podem ser temporariamente salvos e, prevenindo o vácuo normativo, resguarde, com a incidência de nova luz, os artigos indispensáveis para a sobrevivência das instituições. A simples e imediata decretação da integral incompatibilidade da Lei de Segurança Nacional com a normativa constitucional não parece constituir a solução mais adequada no momento que estamos a experimentar. Figurando como relator dos feitos apontados o Ministro Gilmar Mendes, cumpre esperar que o Supremo Tribunal Federal decida corretamente e com os olhos voltados para o melhor caminho.

O trágico período pandêmico se desenvolve em uma conjuntura política assombrosa alimentada pelo negacionismo, pela sabotagem das iniciativas de proteção à saúde pública, pelos ataques de extremistas às instituições democráticas e, igualmente, pelo manejo abusivo da Lei de Segurança Nacional com o fim de silenciar a voz dos críticos e adversários. Não é necessário dizer que o governo de extrema-direita conta, entre os seus apoiadores, com alguns setores religiosos. A realização física de cultos religiosos, portanto, reivindicada por eles, assume, na circunstância, uma delicada dimensão política.

VI - Jurisdição Constitucional, liberdade de culto religioso e pandemia

Decidindo a respeito da liberdade dos cultos religiosos durante a pandemia, a ADPF 811, aforada pelo PSD contra o Decreto n. 65.563/2021, do Estado de São Paulo, que vedou a realização de missas e demais atividades religiosas de caráter coletivo, foi julgada improcedente, por nove votos a dois, pelo Supremo Tribunal Federal. Como seria previsível, abriu divergência o Ministro Nunes Marques, nomeado pelo Presidente Bolsonaro, no que foi seguido pelo Ministro Toffoli. As manifestações dos ministros que, acompanhando o relator, Gilmar Mendes, formaram maioria foram bastante eloquentes. A ADPF seguiu o rito do art. 12 da Lei 9.868, de modo que envolveu, desde logo, solução de mérito que orientará as futuras decisões do Judiciário.

A grave situação sanitária pela qual passa o mundo e, particularmente, o Brasil foi a tônica dos votos. Ninguém desconhece que enfrentamos a pior crise de saúde dos últimos cem anos. E a crise de saúde reforça as de natureza política e econômica que acompanham o governo causador de instabilidade política continuada. Este é o contexto trágico no qual se desenhou o julgamento da ADPF.

A Suprema Corte vem construindo, no contexto do horizonte pandêmico, como temos dito, uma jurisprudência da crise, implicando a definição de parâmetros e balizas extraordinários que orientam a atividade dos agentes públicos e das coletividades políticas. A decisão prolatada nesta ADPF se soma a outras, antes citadas, robustecedoras da direção que demonstra alta sensibilidade na compreensão da radicalidade do momento. E isto assegurando a eficácia dos preceitos constitucionais implicados, embora interpretados à luz da circunstância, o que obviamente não se confunde com as projeções de um estado de exceção. A legalidade extraordinária, reitere-se, não se equipara à legalidade de exceção.

Embora todos os ministros formadores da maioria tenham agitado robustos argumentos, dignos de nota, a manifestação do Ministro Gilmar Mendes, relator do feito, merece consideração especial. Reconhece, e não poderia ser diferente, a importância da liberdade religiosa, a sua fundamentalidade inequívoca, o modo como foi proclamada por distintos documentos internacionais e pela Constituição Federal e o princípio da laicidade, também abrigado pela Lei Fundamental, a impor determinadas obrigações ao estado brasileiro e seus agentes, tendo como consequência, de outro lado, a emancipação da república em relação à esfera espiritual e às autoridades religiosas. O país é laico, enfatize-se. E disso é preciso tirar consequências.

Nenhuma interpretação, argumenta, ocorre no vazio, sendo importante ver, a um tempo, nos termos da lição de Müller, programa e âmbito normativos. Ora, o âmbito normativo, o recorte da realidade sobre o qual incide o programa, é chave para a correta leitura dos dispositivos constitucionais tratando da liberdade religiosa em momento pandêmico. Além disso, importa reconhecer a existência de distintas dimensões do direito em questão. A dimensão interna consiste na liberdade de crença presente no foro íntimo, a consciência espiritual, enquanto a dimensão externa diz respeito à liberdade de culto, realizando-se como fé publicamente vivida com as possibilidades, positivas e negativas, que as reuniões e ritos externos, no espaço público, podem desafiar.

Ora, a liberdade religiosa na dimensão interna é direito absoluto, enquanto na dimensão externa é limitado, ostentando natureza principiológica, como a maioria dos direitos contemplados no catálogo constitucional. Pode, portanto, sofrer restrição, observado o postulado da proporcionalidade, nas situações de colisão com outros direitos, princípios ou valores inscritos na Carta Maior da República. Na verdade, bem pensada a questão, não é o direito à liberdade religiosa que está sujeito a restrições, mas, antes, a forma como é praticado. E, neste ponto, não é admissível a criação de espaços de imunidade capazes de impedir ao poder público o lançar mão de medidas restritivas adequadas e necessárias para a satisfação do dever de agir inscrito no art. 196 da CF para a tutela da saúde, considerado o fato de que os direitos fundamentais não se apresentam apenas como proibições de intervenção, veiculando também ordens de proteção, decorrendo, por derivação, proibições de excesso, por um lado, e de proteção insuficiente, por outro.

A vedação de reuniões em templos religiosos ou de cultos com presença física constitui, portanto, medida (i) adequada nos termos dos conhecimentos até aqui oferecidos pelas autoridades científicas e partilhados pelo consenso médico e (ii) necessária quando inexistentes outras alternativas menos restritivas à disposição que possam entregar resultado análogo. Ora, este caminho foi seguido por inúmeros países exatamente para evitar o contágio e a transmissão do vírus que ocorrem nos momentos de aglomeração de pessoas. Por fim, a vedação passa incólume pelo teste da (iii) proporcionalidade em sentido estrito. Aqui, o grau de satisfação do fim alcançado (com a ponderação) não pode ser inferior à grandeza da restrição admitida. Pois o Ministro Gilmar Mendes, corretamente, no que foi seguido pelos seus pares, considerou ser possível “afirmar que há um razoável consenso na comunidade científica no sentido de que os riscos de contaminação decorrentes de atividades religiosas coletivas são superiores ao de outras atividades econômicas, mesmo aquelas realizadas em ambientes fechados”. E mais, que a edição do ato impugnado seguiu as recomendações da ciência, inclusive o inteiro teor de Nota Técnica do Centro de Contingência do Coronavírus de São Paulo que serviu de fundamento à sua edição. A Nota sugere, diante do número crescente de novos casos, a proibição irrestrita “da realização de atividade coletivas, como eventos esportivos, atividades religiosas e, ainda, reunião, concentração ou permanência de pessoas em espaços públicos como praias, praças e parques.”

Trata-se, portanto, de medida temporária, não discriminatória, geral e, mais do que isto, justificada pelo mais avançado conhecimento científico compartilhado no momento. É, então, materialmente constitucional. Uma condição que, aliás, sofre reforço quando são consideradas, segundo apontou o Ministro Barroso no seu voto, as capacidades institucionais. É claro que o Executivo Estadual, na hipótese, está melhor aparelhado para enfrentar a pandemia e dispor sobre as medidas indispensáveis ao seu enfrentamento do que o Poder Judiciário. Havendo dúvida, e na situação, à luz dos parâmetros oferecidos pela ciência, não há, deve prevalecer a decisão do primeiro e não do segundo. A proibição de cultos veiculada por decreto de coletividade federada também não viola a Constituição do ponto de vista formal. No julgamento da ADI 6341, a Suprema Corte, como antes referido, decidiu que os entes políticos, estaduais e locais, dispõem de competência para legislar e adotar medidas sanitárias voltadas ao enfrentamento da pandemia de Covid-19, nos termos do art. 23 da CF e da conformação do Sistema Único de Saúde (Lei 8.080, de 1990).

A Lei 13.979/2020, impugnada naquela ADI, previa no art. 3º. como possíveis alternativas a serem adotadas pelas autoridades, no âmbito de suas competências, as medidas de isolamento e de quarentena. Daí a razão pela qual cumpre considerar a legitimidade do ato normativo introduzido de acordo com o decidido naquela ação de controle abstrato. Aliás, há outros precedentes da Corte trilhando semelhante caminho e contribuindo para a formação da jurisprudência da crise.

Não custa lembrar que não são poucos os julgados de tribunais estrangeiros tratando do tema. É recomendável, na medida do possível, conhecê-los. Mas, admitindo ou inadmitindo a proibição geral, temporária e não discriminatória dos templos religiosos e rituais com a presença física dos fiéis, o direito comparado deve ser tomado com enorme dose de cautela. O âmbito normativo, o contexto, a situação fática, o espaço e o tempo, são determinantes da melhor solução. Daí a razão pela qual importa, sobretudo, considerar a jurisprudência da Corte brasileira e a coerência das decisões que toma sobre a pandemia com a gravidade com a qual esta se apresenta neste país. Essencial, pois, é levar a sério a jurisprudência da crise que vem sendo, paulatina e cuidadosamente, construída pelo Supremo.

VII – Concluindo

Fica, então, a pergunta. Por que, apesar da atuação dos Estados, Municípios, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, chegamos a estes números alarmantes de infectados e mortos?

A resposta é simples. Faltou gestão eficiente da situação, diante do aparelhamento e sucateamento do Ministério da Saúde e, sobretudo, em função da falta de uma liderança nacional confiável capaz de, presidindo a União, reunir, num gabinete de crise, as autoridades das unidades federadas para o acompanhamento do contexto trágico e adoção de iniciativas coordenadas (federalismo de cooperação e não de colisão) para o seu combate. O jogo do presidente é radical, oito ou oitenta. Queria o comando centralizado e exclusivo da crise para orientar uma política negacionista de retorno ao trabalho. E não admite críticas, contando com o os aparelhos repressivos do Estado para, fazendo uso abusivo da Lei de Segurança Nacional, combater os críticos, a academia, a imprensa livre e os adversários. Por outro lado, com a decisão judicial reconhecendo a competência compartilhada da União e entes federados em matéria sanitária, encontrou mais uma desculpa para não cooperar, para omitir-se de vez e culpar o STF, os Estados e os Municípios pelos números alarmantes de vitimados aos quais chegamos.

A ironia é que com tanto sofrimento, com tantas famílias devastadas pelo infortúnio, do ponto de vista jurídico, fizemos e temos feito, na medida do possível, aos trancos e barrancos, o que precisa ser feito. Todavia, pela inexistência de coordenação, pela falta de cooperação do Executivo Federal, pela omissão ou mau exemplo da autoridade maior, pela timidez do Ministério da Saúde cujo titular foi trocado duas vezes durante os primeiros meses do período pandêmico e hoje conta com um quarto responsável, o povo padece, tendo o país, perplexo, chegado a uma situação mais grave do que a gravidade da pandemia poderia indicar.

Se temos sido relativamente exitosos na defesa da Constituição para, a duras penas, preservar as instituições democráticas, se combatemos o manejo despótico da lei de segurança nacional, se resguardamos a federação, se tomamos, no exercício da jurisdição constitucional, as medidas corretas para a circunstância, não temos conseguido efetivar material e integralmente o direito fundamental à saúde dos brasileiros (Art. 196 da CF).

O quadro normativo necessário para o combate à pandemia foi aprovado pelo Congresso Nacional dentro dos ditames constitucionais; o Supremo Tribunal Federal agiu sabiamente para dar, de acordo com as balizas jurídicas, a segurança necessária para os agentes e autoridades públicos e, também, para controlar a proporcionalidade e razoabilidade dos programas administrativos lançados. O problema, reitere-se, tem sido o Chefe do Executivo Federal que se omite, dá mau exemplo, cria instabilidade política e deixa de cumprir os papéis de liderança e coordenação reclamados para o mais eficaz enfrentamento da pandemia.

Talvez a imagem mais eloquente da calamidade pela qual passamos, com os seus esforços heroicos e lutas inglórias, de um lado, e insensibilidade e desídia, de outro, seja a de Pazuello, ex-Ministro da Saúde, acompanhando Bolsonaro, no Rio de Janeiro, numa jornada apocalíptica sobre duas rodas sem portar máscara e participando de temerária aglomeração de apoiadores incautos. O que fica na mente de todos é a figura do general, indiferente às leis da república, às normas disciplinares do Exército e à saúde pública, atuando como cúmplice do presidente e mensageiro da morte. Diante de tudo isso, aos brasileiros cumpre resistir. Resistiremos!

Sobre o autor
Clèmerson Merlin Clève

Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná. Professor Titular de Direito Constitucional do Centro Universitário Autônomo do Brasil - UniBrasil. Professor Visitante dos Programas Máster Universitario en Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo e Doctorado en Ciencias Jurídicas y Políticas da Universidad Pablo de Olavide, em Sevilha, Espanha. Pós-graduado em Direito Público pela Université Catholique de Louvain – Bélgica. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Líder do NINC – Núcleo de Investigações Constitucionais em Teorias da Justiça, Democracia e Intervenção da UFPR. Autor de diversas obras, entre as quais se destacam: Doutrinas Essenciais - Direito Constitucional, Vols. VII - XI, RT (2015); Doutrina, Processos e Procedimentos: Direito Constitucional, RT (Coord., 2015); Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional, RT (Co-coord., 2014) - Finalista do Prêmio Jabuti 2015; Direito Constitucional Brasileiro, RT (Coord., 3 volumes, 2014); Temas de Direito Constitucional, Fórum (2.ed., 2014); Fidelidade partidária, Juruá (2012); Para uma dogmática constitucional emancipatória, Fórum (2012); Atividade legislativa do poder executivo, RT (3. ed. 2011); Doutrinas essenciais – Direito Constitucional, RT (2011, com Luís Roberto Barroso, Coords.); O direito e os direitos, Fórum (3. ed. 2011); Medidas provisórias, RT (3. ed. 2010); A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, RT (2. ed. 2000). Foi Procurador do Estado do Paraná e Procurador da República. Advogado e Consultor na área de Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLÈVE, Clèmerson Merlin. Medidas sanitárias, risco democrático, liberdade religiosa e jurisprudência da crise: uma crônica constitucional da pandemia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6541, 29 mai. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90866. Acesso em: 24 nov. 2024.

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