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Investigação criminal nos crimes sexuais do art. 217-A do Código Penal, a produção de provas e o depoimento sem dano

Agenda 01/09/2021 às 09:35

Abordamos questões relacionadas aos crimes sexuais do art. 217-A do CP, quando não deixam vestígios físicos, relacionando alguns desafios que as autoridades enfrentam no momento da produção de provas.

Resumo: O presente artigo aborda questões relacionadas aos crimes sexuais do art. 217-A do CP, quando não deixam vestígios físicos, relacionando alguns desafios que as Autoridades enfrentam no momento da produção de provas. O objetivo do trabalho foi abordar os meios de provas disponíveis para estes delitos, pois na grande maioria dos casos, não há uma confissão do acusado e, tampouco, há testemunhas do fato. A palavra da vítima, portanto é a principal ferramenta probatória a ser explorada em tais casos. Para tanto, o depoimento especial foi analisado, trazendo-se a dinâmica de tal procedimento. A partir do depoimento especial, surge a Lei da escuta especializada e o depoimento especial, Lei nº 13.431/17, a qual entrou em vigor em abril de 2018. Além disso, a dinâmica da avaliação psicológica também foi apresentada no referido trabalho, devido à importância de todo procedimento investigatório. Também, buscou-se demonstrar por estudo de caso, pontuando os principais desafios na produção de prova no inquérito policial. Além disso, foi analisada jurisprudência sobre as implicações da nova lei de depoimento e escuta especial.

Palavras-chave: Avaliação Psíquica. Depoimento sem Dano. Estupro de Vulnerável. Investigação Criminal. Lei de Depoimento Especial.


1 INTRODUÇÃO

A Lei nº 12.015/2009 incluiu no Código Penal Brasileiro o art. 217-A, prevendo o crime específico de Estupro de Vulnerável, quando o agente tem conjunção carnal com menor de 14 anos, ou pessoa com enfermidade ou deficiência mental (e que, por consequência, não tenha o necessário discernimento para a prática do ato) ou, por qualquer causa, não possa oferecer resistência.

O presente artigo aborda a impossibilidade de realização de perícia psíquica nas vítimas menores de 4 anos, conforme orientação do Instituto Geral de Perícias do Rio Grande do Sul (IGP/RS) trazendo o questionamento se esta falta de perícia traz ou não prejuízo para a investigação de tal delito.

Nesse sentido, como hipóteses para solução do problema, a oitiva da vítima nos termos propostos pela Lei nº. 13431/17, art. 4º, inc. IV, visando evitar a revitimização da criança ou adolescente, ao mesmo tempo em que, se busca provar o fato e apurar a autoria.

Outra hipótese seria a participação de um psicólogo, cedido/conveniado pelas Prefeituras Municipais, para aplicação de métodos lúdicos, e comunicação adequada com as vítimas de estupro de vulnerável, que tenham menos de 4 anos, buscando um indício a fim de apurar se o infante sofreu abuso sexual, possivelmente poderia suprir a prova que não é produzida pelo IGP.

A referida pesquisa se torna de extrema importância, já que há pouco referencial teórico específico sobre o tema. O que é relevante para a Autoridade e o Agente Policial, principalmente para quem tem pouca experiência na área.  Faz-se necessária a pesquisa para facilitar o trabalho investigativo, a fim de qualificar ainda mais o trabalho policial.

Ressalta-se que a investigação criminal concernente à comprovação desse crime nem sempre deixa marcas físicas. Diante disso, na maioria destes casos pode ocorrer o não indiciamento do acusado por falta de provas, pois a única ferramenta a ser avaliada seria a palavra da vítima, que sem a oportunidade de fazer avaliação psicológica pode ocasionar no envio do procedimento policial sem indiciamento.

Por isso é importante acrescentarmos a imprescindibilidade do depoimento sem dano, que traz a questão de como deve ser o depoimento dos menores que sofrem ou testemunham alguma situação de abuso sexual. “Em síntese, o depoimento especial nada mais é do que minimizar os danos psicológicos e não revitimizar a vítima de violência sexual”. Com vistas para “um depoimento técnico em ambiente menos hostil que uma sala de audiências, por exemplo. Ademais, busca evitar o contato da vítima com o abusador” (CEZAR, 2007, p. 62).

O objetivo principal da sala de depoimento sem dano, conforme preceitua o autor, além de o depoimento se dar em ambiente mais adequado, com intervenção de técnicos especializados, é evitar “perguntas inapropriadas, impertinentes, agressivas e desconectadas não só do objeto do processo, mas principalmente das condições pessoais do depoente” (CEZAR, 2007, p. 62).

Já no tocante a Lei nº 13.431/17 de escuta e depoimento especial, importante ressaltar que deixa claro a ‘última ratio’ de possibilidade do depoimento especial ainda em sede administrativa. No que se refere à escuta especializada, a lei estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera, por conseguinte, a Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). O título III da referida Lei traz regras e procedimentos “Da escuta especializada e do depoimento especial”. As referências deste título vão do art. 7º ao 12º e conceituam escuta especializada e depoimento especial, além de estabelecer uma série de direitos e deveres para tais procedimentos (BRASIL, 1990).  

Este artigo traz ainda, estudo de caso, pontuando as principais dificuldades que se têm nestes delitos, quando não deixam vestígios clínicos, mas apenas psicológicos. Nesse ínterim, analisando em procedimento policial os impedimentos de prova e, como consequência, o não indiciamento do acusado, partindo-se do pressuposto que, na grande maioria dos casos, não há uma confissão do investigado para o delito em questão, nem testemunhas.  Com isso, a palavra da vítima é a principal ferramenta de prova que se tem, diante disso, se faz necessário que o depoimento da vítima ou testemunha seja colhido de forma mais técnica possível, sendo destacada a importância do encaminhamento da vítima para avaliação psíquica sempre que possível.

O artigo foi estruturado da seguinte forma: Introdução, Depoimento sem Dano e o acolhimento das vítimas nas Delegacias de Polícia, bem como as implicações da Lei de Escuta Protegida. Trazendo-se ainda, a dinâmica da Avaliação Psíquica e análise jurisprudencial sobre Depoimento Especial e Considerações Finais.

2 DEPOIMENTO SEM DANO, ACOLHIMENTO DAS VÍTIMAS NAS DPs E AS IMPLICAÇÕES DA LEI DE ESCUTA E DEPOIMENTO ESPECIAL Nº 13.431/17

O crime de abuso sexual contra crianças e adolescentes não é um produto apenas de nossa época. Vai muito além das fronteiras culturais conhecidas e suas raízes se localizam no início da humanidade das civilizações.

Apesar dos progressos em várias áreas de conhecimento e na maneira que se dão as relações entre as pessoas o crime ainda ocorre “de forma mascarada e encoberta, permanece no seio social o grave problema de crianças e adolescentes” que permanecem “sendo alvos de abuso sexual praticados por adultos (estes geralmente integrantes do contexto familiar ou que a ele têm acesso – vizinhos, amigos, etc)” (CEZAR, 2007, p. 17).

O problema é minimizado na medida em que as pessoas em situação de risco são orientadas a respeito dos serviços que o Estado presta, bem como os deveres que o mesmo lhes impõe. A conscientização da população sobre a oferta de serviços públicos e privados sobre saúde física e psíquica são fatores que diminuem a adversidade do abuso sexual praticado contra crianças e adolescentes.

Saindo um pouco do aspecto social e preventivo do delito, se faz necessário analisarmos a dinâmica do depoimento especial, que cabe referir, vai muito além da estrutura física diferenciada, (sala onde ficam o entrevistador e o menor, com vídeo e áudio, interligados à sala onde fica o juiz, promotor, advogado, réu, servidor).

 Nesse contexto, importante destacar o papel exercido pelo técnico durante o depoimento, que será um assistente social ou psicólogo que facilite o depoimento da criança. Este técnico precisa conhecer a dinâmica do abuso sofrido pelo entrevistado.

Além disso, é considerável que tenha experiência em perícias, assim como possua um pensamento articulado e hábil para que possa facilitar a interação de todos que participarão do ato judicial. Quanto à dinâmica do depoimento, primeiramente terá o acolhimento inicial que durará entre quinze e trinta minutos. Será realizada a intimação do responsável pelo menor para o comparecimento na audiência, com antecedência de trinta minutos ao início da audiência, evitando assim, que a vítima encontre o acusado.

O depoimento, ou inquirição durará em torno de trinta minutos de gravação sem interrupções. O juiz dará início e ordenará os atos, conforme determina a lei. Já o técnico facilitará o depoimento da criança/adolescente. O Código de Processo Penal traz em seus artigos 201 e 203 que a testemunha ou vítima, apresentará seus dados pessoais, quando possível, responda sobre as circunstâncias do delito, colhendo-se por termo suas declarações.

As perguntas serão realizadas pelo juiz, após para aquele que postulou a inquirição do depoente, acusação ou defesa, para finalizar com a parte que não postulou a ouvida. Finalizado o depoimento pelo projeto ‘Depoimento sem dano’, será realizada a degravação do que constar no arquivo de som e imagem.

Com base em depoimentos realizados no Juizado da Infância e Juventude, foi possível sistematizar alguns tópicos que são analisados pelo técnico no momento da entrevista com o menor. É preciso compreensão da dinâmica do abuso sexual, passando a ideia de que a responsabilidade pelo fato é do adulto, fazendo com que a criança não se sinta culpada pelo ocorrido.

O entrevistador precisa fazer com que a criança se sinta confortável, buscando técnicas de apoio e compreensão. Sendo sensível à emoção da criança, ao choro, não afastando suas emoções e experiências. Buscar saber o perfil do abusador, bem como o contexto familiar em que o menor está inserido. O técnico precisa ter familiaridade com as normas legais que regulam as questões sobre abuso sexual.

Averiguar informações sobre o tempo em que o abuso se deu e o momento do depoimento. Além de conhecer as políticas públicas de atendimento ao menor, bem como as formas de encaminhá-lo. Dialogando com o menor de uma forma que este possa compreender o que está sendo questionado. O técnico precisa fazer estudo prévio do processo, a fim de alinhar todas as questões pertinentes com o juiz, antes do início da entrevista. Interagindo brevemente como o mesmo durante a entrevista.

Na análise do técnico entrevistador existem questões como estágios cognitivos, emocional, social e físico, remete o mesmo para o acolhimento final, no sentido de orientar a pessoa de confiança da criança, caso necessário, a buscar auxílio na rede de acolhimento. As perguntas, segundo Furniss (1993 apud CEZAR, 2007, p. 75) “são de quatro tipos a serem utilizadas no depoimento sem dano. As abertas, que preferencialmente devem ser a regra a ser utilizada para os menores, pois deixam o relato da vítima de acordo com sua visão sobre os fatos”.

Segundo Cezar (2007, p. 75) os questionamentos fechados, por exemplo, “João beijou você na boca?” precisam ser evitados, já que sugerem uma prática proibida e condenada, que como resposta teria um sim ou não. As perguntas de escolha, como “João a beijou na boca ou no pescoço?”, igualmente, forma um questionamento fechado, sugestionando algo proibido e condenado, portanto deve ser intercalado com outros métodos de inquirição.

Os questionamentos hipotéticos, como: “Se um tio grande tivesse beijado a sua sobrinha na boca, deveria ela contar isso para o seu papai?” (CEZAR, 2007, p. 76). Nesse tipo de pergunta é possível que o técnico consiga abrir espaços para novas perguntas, sendo viável que a criança consiga, ainda que de modo raso, relatar seu entendimento sobre o que estão investigando.

A inquirição de crianças e adolescentes em sede de produção antecipada de prova, é uma alternativa a ser implementada. “Não há argumentos que se justifiquem, que crianças com 5 ou 6 anos de idade, vítimas de abuso sexual, só fossem inquiridas em juízo no momento em que observados o contraditório e a ampla defesa” (CEZAR, 2007, p. 102).

Segundo estatísticas, cinquenta e oito por cento das vítimas (58%) só eram ouvidas após um ano da ocorrência delituosa. Decorrido esse tempo, suas memórias não guardam mais os mesmos detalhes. Diante disso, o projeto de Lei nº 7.524/2006, foi apresentado na Câmara dos Deputados, pela deputada gaúcha Maria do Rosário.

Frente a esta dificuldade analisada na pesquisa, desenvolveu-se o Depoimento Especial que foi pensado como a melhor alternativa para o problema. Porém é importante verificar como está o acolhimento das vítimas nas Delegacias de Polícia.

A aplicação do Depoimento sem Dano na esfera policial iniciou na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) da cidade de Santa Cruz do Sul/RS. “A Delegada de Polícia Lisandra de Castro de Carvalho, em diversas ocasiões, discorreu sobre o tema. Segundo ela, as crianças conversavam com profissionais da Psicologia e com uma Escrivã de Polícia ou com a própria Delegada” (MATTOS, 2015, p. 104).

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Para realização do depoimento a equipe utilizava brinquedos no ambiente mais lúdico, buscando conquistar os pequenos depoentes, deixando os mesmos mais à vontade, nas palavras da própria Delegada, “além de quebrar o gelo, tentamos evitar que a criança se sinta revivendo a violência sofrida” (MATTOS, 2015, p. 104). A sala onde as crianças são ouvidas possui decoração com temas infantis, brinquedos, quadro-negro, bonecas anatômicas, jogos, bichos de pelúcia, casa de boneca, equipada com espelho unidirecional e filmadora.

Após o acompanhamento psicológico inicial, na DPCA, Delegacia de Proteção da Criança e Adolescente, as vítimas são encaminhadas para redes de atendimento e acompanhamento. Ao término da entrevista, a psicóloga elabora um parecer psicológico com as suas considerações sobre o que foi narrado. Tal parecer integra o Inquérito Policial no qual também é incluído um CD com filmagem, além do termo de declarações. (MATTOS, 2015, p. 104).

Segundo Mattos (2015), a DPCA de Santa Cruz do Sul, há anos utiliza técnicas de entrevista, baseadas no guia escola denominado Métodos para Identificação de Sinais de Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, elaborado pelo Ministério da Educação em 2003. Tais são os métodos observados:

Busca de um ambiente apropriado, que proporcione maior tranquilidade para o menor; oitiva atenta e exclusiva do menor; levar a sério tudo que for dito; ficar calmo e evitar rodeios; controlar a ansiedade aguardando o desenvolvimento dos relatos e não apurando com perguntas diretas; confirmar se o que o menor está dizendo está sendo entendido pelo técnico; proteger o menor e reiterar que o mesmo não tem culpa pelo que aconteceu; lembrar que é preciso coragem e determinação para que o menor conte a um adulto o que aconteceu; contato físico para expressar solidariedade e apoio, se houver abertura do menor para isso; anotar o que foi dito, se não for gravado; explicar o que irá acontecer em seguida; proteger a identidade do menor (MATTOS, 2015, p. 96-97).

O acolhimento dos menores, vítimas de abuso sexual, nas Delegacias de Polícia, precisa ser feito com cuidado e qualidade, “requerendo as perícias de forma ágil e buscando a maior quantidade de elementos que possam reforçar o contexto probatório [...]” (SOUZA, 2013, p.16).

A Polícia Civil precisa de um canal para comunicação com a equipe multidisciplinar, a fim de abordar não apenas as questões de cunho criminal, mas também médicas, psicológicas e sociais. Inclusive já há um trabalho na Secretaria de Segurança Pública, para preparar os órgãos de segurança pública no tocante ao acolhimento das vítimas de violência. Ressalta-se o Decreto Presidencial 7.958/13, que estabelece diretrizes na área de saúde para as vítimas de violência sexual, fazendo referência aos profissionais de segurança pública, inclusive nos que atuam nas delegacias de polícia especializada no atendimento à mulher.

No tocante ao acolhimento nas Delegacias de Polícia, conforme explanado durante breve análise é importante que sejam adotadas medidas, junto às comunidades locais, tornem o ambiente mais acolhedor e diferenciado, e que haja um preparo dos profissionais de segurança pública para atenderem com presteza e sem pré-julgamentos as vítimas de violência sexual, que já chegam muito vulnerabilizadas para expor sua intimidade e contar a violência a que foram expostas (SOUZA, 2013, p. 29).

O artigo 2º Decreto Presidencial 7.958/13 traz a questão do atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança, fazendo referência ao atendimento humanizado, com ambiente adequado e escuta qualificada e com privacidade. Inclusive disponibilizando transporte à vítima até os serviços de referência.

Ainda sobre acolhimento às vítimas nas Delegacias, foi inaugurada a sala de Depoimento Especial na Delegacia Especializada no atendimento à Mulher (DEAM) em Viamão/RS no ano de 2018. O projeto da sala foi financiado pelo Ministério Público e doado à Polícia Civil. A partir daí foi possível criar a sala de Depoimento Especial que tem estrutura de acordo com o que determina a nova Lei de Escuta e Depoimento Especial.

No momento em que a vítima de abuso chega à Delegacia da Mulher de Viamão, é realizado o acolhimento inicial por uma das Policiais Civis da referida Delegacia, que encaminha o menor para a Sala de Depoimento Especial. Conforme determinado pela Autoridade Policial, é dado início à realização do depoimento especial, dentro dos padrões exigidos por Lei. A vítima fica na sala com a entrevistadora, que é uma policial feminina, já a Autoridade Policial fica na outra sala, ouvindo e visualizando a entrevistadora e o entrevistado através das câmeras. A Autoridade então fará os questionamentos pertinentes aos fatos, os quais são adequados à linguagem do infante buscando conforto e evitando constrangimentos ao mesmo.

Em casos graves, depois de realizado o Depoimento Especial, como por exemplo, quando ficar claro no depoimento que o menor tem contato com o abusador, a Autoridade Policial poderá representar pela Prisão Preventiva do acusado.

Pontuada a questão do acolhimento e procedimento nas Delegacias de Polícias, é relevante analisar os procedimentos e atualizações trazidas pela Lei de Escuta e Depoimento Especial.

A escuta especializada e o depoimento especial são procedimentos trazidos pela Lei nº 13.431/17. Esta lei entrou vigor em abril de 2018. Representando um avanço para os procedimentos investigatórios e de proteção às vítimas e testemunhas de violência. Os artigos que trazem este tema estão inseridos no Título III da referida lei e vão do art. 7º ao art. 12.

O art. 7º traz o conceito de escuta especializada: “é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade”. Já o art. 8º conceitua depoimento especial, que significa o procedimento de oitiva do menor vítima ou testemunha de violência diante da autoridade policial ou judiciária (BRASIL, 2017).

A lei ainda busca a proteção ao menor, fazendo constar no artigo 9º que o mesmo não tenha contato com o acusado, mesmo que visual, evitando assim qualquer constrangimento, coação ou ameaça ao adolescente ou criança. No tocante ao artigo 10, há a figura da sala de depoimento especial e escuta especializada, pois consta no referido artigo que tais procedimentos devem acontecer em ambiente apropriado e acolhedor, com espaço físico e estrutura que garanta a privacidade dos menores vítimas ou testemunhas de violência (BRASIL, 2017).

O depoimento especial se dará, quando possível, em uma oportunidade, em sede de produção antecipada de prova judicial, garantindo-se a ampla defesa do investigado.  Seguindo-se o rito cautelar de antecipação de prova quando o menor tiver menos de 7 anos e em casos de violência sexual.

O depoimento especial não será repetido. O artigo 11, §1º, da Lei, traz algumas ressalvas, onde será permitido novo depoimento especial caso haja justificativa de sua imprescindibilidade pela autoridade competente, e quando houver concordância da vítima, testemunha ou de seu representante legal.

O menor será informado de seus direitos, bem como sobre os procedimentos do depoimento especial pelos profissionais especializados. Não sendo permitida a leitura da denúncia ou de outras peças processuais. Será assegurada, aos menores vítimas e testemunhas, a livre narrativa sobre situação de violência. Cabendo interferência do profissional especializado, quando necessário, sendo observadas técnicas que permitam a elucidação dos fatos.

O art. 12 prevê:

Art. 12, Inc. III - No curso do processo judicial, o depoimento especial será transmitido em tempo real para a sala de audiência, preservado o sigilo;

IV - findo o procedimento previsto no inciso II deste artigo, o juiz, após consultar o Ministério Público, o defensor e os assistentes técnicos, avaliará a pertinência de perguntas complementares, organizadas em bloco;

V - o profissional especializado poderá adaptar as perguntas à linguagem de melhor compreensão da criança ou do adolescente;

VI - o depoimento especial será gravado em áudio e vídeo (BRASIL, 2017).

O § 1º do art. 12, faz referência aos direitos dos menores de prestarem seu depoimento diretamente ao juiz, se quiserem, cabendo ao juiz preservar a intimidade e privacidade das vítimas e testemunhas. O profissional especializado fará a comunicação ao juiz sempre que a presença do autor da violência possa prejudicar o depoimento especial ou colocar o depoente em situação de risco, fazendo constar em termo e, neste caso, a autoridade permitirá o afastamento do imputado. Quando houver risco à vida ou à integridade física da vítima ou testemunha, o juiz tomará medida de proteção, restringindo, inclusive, o disposto nos incisos III e VI deste artigo (BRASIL, 2017).

O parágrafo 5º traz a exigência de regulamentação sobre as condições de preservação e de segurança da mídia relativa ao depoimento da criança ou do adolescente, visando à garantia do direito à intimidade e privacidade da vítima ou adolescente. E, por fim, a lei refere que o depoimento especial tramitará em segredo de justiça (BRASIL, 2017).

O Convênio nº 044/2018-DEC do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul através de Termo de Compromisso firmado entre o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Ministério Público do Rio Grande do Sul, Estado do Rio Grande do Sul, por intermédio da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul com interveniência da Polícia Civil visando fomentar a aplicação da Lei nº 13.431/17 em todas as Comarcas do Estado.

O Convênio trouxe ajustes nos fluxos, reafirmando os procedimentos trazidos pela Lei de Escuta protegida, visando difundir aos membros dos convenentes a cooperação mútua no sentido de qualificar, através de cursos, os respectivos membros de acordo com a legislação vigente. Abordou, por fim, a possibilidade conjunta de que fosse desenvolvida estratégias para implementação e fortalecimento das redes de proteção à criança e ao adolescente em todo Estado (TJRS, 2018).   

2.1 A Avaliação Psíquica nos Crimes de Estupro de Vulnerável

A avaliação psicológica nada mais é que a coleta e análise de informações resultantes da aplicação de técnicas psicológicas, onde o procedimento pode se basear em aplicação de testes, entrevistas, questionários, observações, entre outras. Através da avaliação psicológica que se analisa diferentes áreas que compõem o psiquismo do indivíduo, quais sejam: “cognição, emoção e comportamento” (CAOINFÂNCIA, 2013, p. 6).

Segundo a Cartilha que se destina aos Membros do Ministério Público de Goiás, o psicólogo faz a análise integrada de dados colhidos, a partir daí haverá um posicionamento seguro do profissional, pois nenhum instrumento isolado poderá ser conclusivo. As técnicas utilizadas na avaliação são a de entrevista com a vítima, onde é possível coletar informações, ressaltando a idade do entrevistado, “desenvolvimento cognitivo, linguagem, memória, sofrimento psíquico associado ao evento” (CAOINFÂNCIA, 2013, p. 7).

Quando o entrevistado for criança, a utilização de brinquedos funciona como facilitador para que elas expressem sentimentos relacionados à família e sua rotina. É possível a utilização de testes psicológicos, que avaliam questões de cunho “psicológico como atenção, agressividade, memória, estresse, ansiedade, relações interpessoais, habilidades sociais e inteligência, bem como outros aspectos referentes ao desenvolvimento cognitivo, emocional e de personalidade”. Os testes têm caráter científico e objetivo e, por conseguinte, os resultados alcançados “são legitimados pelos fundamentos psicométricos” (CAOINFÂNCIA, 2013, p. 7).

Segundo a cartilha destinada aos Membros do Ministério Público do Estado de Goiás sobre avaliação psicológica:

Os fundamentos psicométricos dos instrumentos psicológicos correspondem a requisitos essenciais para legitimar sua utilização e garantir a qualidade dos resultados. Tais referências são construídas principalmente por meio de análises estatísticas e correspondem, sobretudo, à atenção sobre três parâmetros. A validade do instrumento oferece garantias de que ele avalia exatamente o traço psicológico a que se propôs; a fidedignidade comunica sobre a consistência do instrumento, condição que abrange tanto a unicidade dos itens quanto a estabilidade dos resultados em avaliações realizadas em diferentes ocasiões. A padronização define a forma de aplicação do instrumento e as referências de comparação dos resultados do indivíduo com o grupo no qual ele está inserido (CAOINFÂNCIA, 2013, p. 7).

Além disso, observação direta das pessoas envolvidas e de seus diferentes contextos de inserção social; coleta de informações e entrevistas com pais, professores, médicos, vizinhos, conselheiros tutelares e profissionais de outros órgãos; análise de documentos e avaliação psicológica do suposto agressor, quando viável, são técnicas também utilizadas para fins de avaliação.

Na entrevista com os menores, vítimas de violência sexual, é importante que se tenha um ambiente físico adequado e acolhedor para os menores. Onde o profissional que irá realizar entrevista tenha empatia e preocupação com o bem-estar da criança, buscando estabelecer confiança a fim de que o infante se sinta à vontade para se comunicar.

É necessário explicar os motivos da entrevista e como a mesma será realizada, facilitando a interação entre entrevistador e entrevistado. Buscar o relato livre da criança, evitando interrompê-la. Quando necessário, esclarecer as lacunas através de perguntas abertas e, em último caso, com perguntas fechadas.

A perícia psicológica de menores vítimas de abuso sexual tem diferentes vieses. Se por um lado o juiz, que analisa um dossiê, com objetivo de decisão, tem necessidade de fatos, por outro lado, os adultos, família ou instituição educativa, preocupam-se com a reparação, em geral pelo silêncio dos próprios fatos, esperam a confirmação de que o menor vai bem ou esqueceu os fatos (GABEL, 1997).

A perícia, que muitas vezes leva um ou dois anos para ser realizada, é percebida como uma investigação que ultrapassa o silêncio, podendo gerar sofrimento ao menor.

Ao perito que examina a vítima, de um ponto de vista psicológico, não está vinculado à constatação dos fatos, nem no processo de responsabilidade. Solicitam-lhe que diga se a criança vítima ‘tem tendência para a fabulação’ ou ‘se algumas de suas declarações devem ser ouvidas com prudência’ (grifo nosso).

A perícia tem por objetivo descrever (‘descrever a personalidade X..’), fazer uma espécie de balanço (‘a repercussão que os fatos puderam acarretar no que se refere ao psiquismos de...’), ajudar a compreender (‘mencionar todos os dados úteis à compreensão dos fatos’). Se a primeira parte da missão é estritamente da ordem do exame clássico, as outras duas supõem que seja feita uma análise do que se passou desde os fatos ou durante eles (caso e trate de um incesto por vários anos), bem como das relações que a criança teve e ainda tem com aqueles que a cercam, com o agressor etc. (GABEL, 1997, p. 123).

Segundo Gabel (1997), no tocante à metodologia da avaliação psicológica, cabe referir que a mesma não tem a pretensão de ser uma psicoterapia, nos movimentos do inconsciente, pois esboça um retrato psicológico da criança, indicando sua evolução, traçando as vias de explicação de comportamentos manifestos e interiores e suas relações como o abuso sexual. “O assentimento dos pais ou suas evasivas, assim como o projeto educativo diante do ocorrido, são, por isso, partes integrantes da análise e da conclusão da perícia” (GABEL, 1997, p. 129).

No Estado do Rio Grande do Sul os peritos fazem a avaliação psíquica junto ao Hospital Presidente Vargas na Cidade de Porto Alegre. A Avaliação Psíquica é realizada apenas em crianças de 4 anos em diante e, em adolescentes de até 18 anos incompletos. A entrevista é realizada por psicólogo, seguindo a metodologia acima referida, buscando evitar a revitimização dos menores. A entrevista é filmada, em seguida o perito elabora Laudo[1] de avaliação psíquica que acompanha CD com gravação da mesma e encaminha para Delegacia que solicitou a avaliação.

2.2 Estudo de Caso e Jurisprudência

O primeiro estudo de caso se trata de análise de Inquérito Policial para apurar delito de estupro de vulnerável, tipificado no artigo 217-A do Código Penal. A comunicante do delito foi a avó da vítima, que relatou que a mesma apresentava comportamento estranho, pois não deixava ninguém trocar sua fralda chorando em desespero.

A linha de investigações se deu nos encaminhamentos à vítima para exame de avaliação psíquica e verificação sexual. Além da colheita dos depoimentos de testemunhas, quais sejam, a avó e genitora da vítima. Ambas referiram que a vítima não deixava ninguém trocar suas fraldas, apenas a avó paterna o fazia, segundo relatos da genitora da vítima. O acusado não foi ouvido, pois se encontrava recolhido no presídio, sendo solicitada autorização ao Poder Judiciário, para que fosse possível realizar seu depoimento. O exame de verificação foi negativo, inclusive foi constatado ausência de espermatozoides na vagina e ânus da infante. A avaliação psíquica deixou de ser realizada, conforme orientação do Instituto Geral de Perícia (IGP), pois a vítima possuía na época dos fatos menos de 4 anos, restando prejudicado seu depoimento. Sendo assim, a prova restou prejudicada. O feito foi remetido ao Poder Judiciário sem indiciamento do acusado.

Já o segundo estudo de caso se trata de análise de Inquérito Policial para apurar delito de estupro de vulnerável, tipificado no artigo 217-A do Código Penal. O comunicante, Conselheiro Tutelar, foi informado pela vítima que a mesma foi abusada sexualmente pelo acusado, seu padrasto. Os fatos ocorrem desde os 11 anos da menor. A vítima relatou os fatos a avó materna e a genitora, mas as mesmas não fizeram nada.

Durante a investigação, além do depoimento do genitor da vítima, que ficou responsável pela mesma, após os fatos, foi colhido o depoimento especial da vítima.

O depoimento foi essencial para que fosse representado pela prisão do acusado. A vítima referiu no depoimento colhido na delegacia, em sala especializada para depoimento sem dano dos menores, que foi abusada sexualmente pelo padrasto quando o mesmo saía do banheiro pelado. Em seguida, o mesmo foi até o quarto da vítima, pegou a mão da mesma e tentou colocar no próprio pênis. O acusado ainda teria passado as mãos na vagina da vítima, por cima do biquíni, juntamente com o cunhado e irmão do acusado, quando brincavam dentro da lagoa. Relatou que tentou se matar fazendo uso de medicação. Além disso, o filho do padrasto, que a época tinha 10 anos, teria relações sexuais com a vítima, desde os 6 anos de idade da mesma. Referiu que sempre sofreu violência física por parte do padrasto. Cabe ressaltar que o procedimento ainda se encontra em andamento, aguardando laudos.

Analisando a jurisprudência sobre o depoimento sem dano, cabe referir que a mesma reafirma a validade e importância do ato, entendendo como prova válida e sólida para o processo, inclusive mantendo condenações.

Nesse sentido colaciono jurisprudência:

APELAÇÃO CRIME. CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. ARTIGO 217-A DO CP. CONTINUIDADE DELITIVA. PRELIMINAR DE NULIDADE. OITIVA DA VÍTIMA. DEPOIMENTO SEM DANO. POR SER ESTAR O MÉTODO DE OITIVA PERFEITAMENTE AJUSTADO À NORMATIVA VIGENTE, BEM COMO POR NÃO SE TER DEMONSTRADO PREJUÍZO AO RÉU PELO USO DA TÉCNICA, VAI RECHAÇADA A PRELIMINAR ARGUIDA, COM FUNDAMENTO NO ARTIGO 563 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. PROVA. CONDENAÇÃO MANTIDA. POSSIBILIDADE DE SE EXECUTAR PROVISORIAMENTE A PENA CONFIRMADA POR ESTA SEGUNDA INSTÂNCIA, SEM OFENSA AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA. (APELAÇÃO CRIME Nº 70055627244, OITAVA CÂMARA CRIMINAL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: JONI VICTORIA SIMÕES, JULGADO EM 28/11/2018).

CORREIÇÃO PARCIAL. CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. OITIVA DE CRIANÇA VÍTIMA DE CRIME SEXUAL. DEPOIMENTO ESPECIAL EM SEDE DE PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS QUE É NECESSÁRIA DADA A DETERMINAÇÃO ESTABELECIDA PELA LEI DA ESCUTA PROTEGIDA (Nº 13.431/2017). A criança e o adolescente gozam dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhes asseguradas a proteção integral e as oportunidades e facilidades para viver sem violência e preservar sua saúde física e mental e seu desenvolvimento moral, intelectual e social, e gozam de direitos específicos à sua condição de vítima ou testemunha.  A Lei da Escuta Protegida, Lei nº 13.431/17, no seu Artigo 11 § 1º, dispõe que o depoimento especial, isto é, o procedimento de oitiva de criança e ou adolescente vítima ou testemunha de violência, seguirá o rito cautelar da produção antecipada de provas. Preceitua o Art. 156, inciso I, do Código de Processo Penal, é facultado ao juízo, de ofício, ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida. No caso dos autos a espécie fática amolda-se à previsão legal, pois que N. possui apenas 06 (seis) anos de idade atualmente, não foi ouvida na Delegacia de Polícia e foi vítima de violência sexual ocorrida dentro do ambiente familiar. A realização da oitiva da vítima N. através da produção antecipada de prova deve ser realizada a fim de que sejam asseguradas as garantias fundamentais da criança, dada a rede protetiva estabelecida por meio da Lei da Escuta Protegida (Lei nº 13.431/2017), observando-se a ampla defesa do réu. CORREIÇÃO PARCIAL JULGADA IMPROCEDENTE. (Correição Parcial Nº 70078863271, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Conrado Kurtz de Souza, Julgado em 08/11/2018).

CORREIÇÃO PARCIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. REALIZAÇÃO DE AUDIÊNCIA, EM CAUTELAR DE PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA, SEM A PRESENÇA DO RÉU E DA DEFENSORIA PÚBLICA. LEI DE ESCUTA PROTEGIDA. Depoimento especial de criança vítima de suposto abuso sexual. A Lei nº 13.431/2017 legislação editada para o fim de normatizar e organizar o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, bem como para criar mecanismos para prevenir e coibir a violência e estabelecer medidas de assistência e proteção à criança e ao adolescente em situação de violência (artigo 1º) - dispõe, em seu artigo 11, que o depoimento especial, seguirá o rito cautelar de antecipação de prova (§ 1º). NULIDADE ABSOLUTA INSANÁVEL. A todo acusado em processo penal é garantida a autodefesa, a qual se desdobra nos direitos de audiência, de presença e na capacidade postulatória autônoma. Ainda, sendo direito do réu acompanhar a coleta de provas quer seja em ação principal quer em ação cautelar preparatória, sua ausência na audiência só é justificada por opção pessoal ou nas restritas hipóteses legais, como quando sua presença gerar constrangimento à vítima e não for possível realizar a audiência por videoconferência. Logo, a ausência do acusado em razão da desídia estatal, aqui consubstanciada na não-condução do preso requisitado à SUSEPE, não é motivo idôneo para relativizar a garantia do acusado e configura nulidade insanável. CORREIÇÃO PARCIAL JULGADA PROCEDENTE. (Correição Parcial Nº 70080171796, Sexta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Vanderlei Teresinha Tremeia Kubiak, Julgado em 30/01/2019).

Conforme se depreende nesses julgados, os magistrados ressaltam a importância de se observar o contraditório e ampla defesa, inclusive realizando novo depoimento especial já realizado em sede de produção antecipada de provas, desta vez, com a presença do acusado no referido ato, de acordo com a estrutura de oitivas da Lei de Escuta Protegida.

No entanto, apesar de a decisão demonstrar tal proteção, na medida em que garantiu tal princípio defensivo, confirmou também a importância dos Direitos da Criança e do Adolescente guarnecendo os infantes, porque entende-se que, o fato de o menor ser ouvido em sede de antecipação de provas (antes do processo judicial), conforme a Lei de depoimento especial, não gera nulidade ao processo.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste trabalho foi discutir o procedimento na produção de provas, quando o crime de estupro de vulnerável não deixar vestígios físicos, ressaltando a questão da palavra da vítima como prova elementar para o Inquérito Policial, assim qualificando os elementos de prova para fins de indiciamento dos acusados e, no momento oportuno, oferecimento da denúncia.

A problemática do trabalho se deu na medida em que vítimas menores de 4 anos, conforme orientação do Instituto Geral de Perícias (IGP – Rotinas para realização de Perícias Psíquicas em Crianças e Adolescentes vítimas de violência), não são ouvidas, causando prejuízo na produção de provas, e por consequência, na grande maioria dos casos, Inquéritos Policiais são remetidos ao Poder Judiciário sem indiciamento por falta de provas.

Nesse sentido, cabe ressaltar a necessidade de um projeto visando parcerias com as Prefeituras, para que seja possível desenvolver, através dos psicólogos, um método lúdico e eficaz visando estabelecer uma comunicação com as vítimas de abuso sexual, menores de quatro anos. Assim, seria possível que tivéssemos um laudo psicológico que aponte se houve ou não abuso sexual. Por consequência, qualificando a prova no procedimento policial e evitando que delinquentes ‘saiam’ impunes por falta de provas, já que em diversos casos o único elemento probatório é a palavra da vítima.

Em sendo a palavra da vítima a principal ferramenta nesses delitos que não deixam vestígios físicos, cabe referir que a mesma é elementar para o contexto probatório. Se por um lado busca-se a verdades dos fatos, por outro, é necessário dar proteção aos infantes, com isso o depoimento sem dano, surge para proteger as vítimas e testemunhas desses e de outros delitos. O projeto Depoimento sem Dano, que teve início em 2003, visa adequar o ambiente e a forma como os infantes devem ser ouvidos. Como já referido no capítulo sobre Depoimento Especial, a ideia é que tenhamos uma sala adequada para que os menores se sintam acolhidos e confortáveis no momento de seu depoimento, evitando o encontro das vítimas e testemunhas menores com o réu.

A entrevista realizada por profissional especializado vem ao encontro do projeto, pois tem o objetivo de evitar a chamada revitimização dos infantes, evitando-se perguntas inadequadas, impertinentes e agressivas. Cabe ressaltar que o contraditório e ampla defesa não restam prejudicados para a defesa do réu, pois a sala onde é realizado o depoimento sem dano é interligada, por vídeo e áudio, com a sala onde ficam os Advogados, Juiz, Réu, Promotor e Servidores, visando assim, uma entrevista indireta destes com o menor, que é realizada através do profissional especializado para tal ato, geralmente um Psicólogo ou Assistente Social.

A Lei nº 13.431/17, sobre Depoimento Especial e Escuta especializada, representa um avanço para a investigação e para os menores vítimas e testemunhas destes delitos. A legislação, que entrou em vigor em abril de 2018, regulamenta e complementa o projeto sobre Depoimento sem dano. Cabendo ressaltar que a Lei exige que os Órgãos observem e apliquem os procedimentos de oitivas das vítimas e testemunhas menores de idade. Evitando que as mesmas tenham que prestar diversas declarações em vários locais, quais sejam: Conselho Tutelar, Delegacia de Polícia, Perícia e Poder Judiciário. O objetivo é que o menor seja ouvido uma única vez, pensando em seu bem estar e evitando que reviva a violência sofrida.

A Lei de Depoimento Especial foi bem elaborada pelo legislador e foi ao encontro do Estatuto da Criança e do Adolescente, dando maior proteção aos infantes. Nesse sentido, o Convênio nº 044/2018-DEC reafirmou a aplicação da Lei, trazendo cláusulas cooperativas entre os convenentes visando ampla aplicação da Lei de Escuta Protegida.

Como garantia de que a Lei sobre Depoimento Especial se faça cumprir, surge a figura penal da Violência Institucional, constante no artigo 4º, inc. IV e alíneas. Tal tipificação representa a importância de se observar todos os procedimentos para a oitiva destes menores em situação ou que tenham presenciado violência sexual.

Mesmo com o depoimento especial, vale salientar a importância da avaliação psicológica da vítima de violência como um instrumento probatório robusto na instrução do Inquérito Policial.

A avaliação psíquica é o momento em que os peritos aplicam técnicas psicológicas visando avaliar questões como cognição, emoção e comportamento, também verificando questões sobre desenvolvimento mental do infante. Na avaliação ocorre a análise da veracidade e conexão em seu relato; se a vítima está em sofrimento psíquico em decorrência da violência sofrida, entre outros. Cabe referir que o Instituto-Geral de Perícias do Estado do Rio Grande do Sul realiza a Avaliação Psíquica apenas em crianças acima de quatro anos, não sendo possível realizar o exame em menores de quatro anos. Nesse viés, temos muitos Inquéritos Policiais remetidos sem indiciamento por falta de provas.

Conforme abordado nos dois estudos de caso, demonstrou-se a prática da Delegacia de Polícia, visando apontar as dificuldades de prova e o Depoimento especial, bem como suas implicações. No primeiro estudo de caso, a falta de avaliação psíquica prejudicou o indiciamento, o que não significa que o delito não tenha ocorrido, mas sim que não foi possível prová-lo. Já no segundo estudo de caso, foi possível perceber o avanço que o Depoimento Especial representa, já que foi fundamental para a representação por pedido de Prisão Preventiva de um dos acusados.

Por fim, restou demonstrada a importância da palavra da vítima nos crimes de Violência Sexual, cabendo referir que, mesmo com o avanço da Lei de Depoimento Especial, a avaliação psicológica também é de grande valia, aumentando a qualidade do Inquérito Policial e possibilitando, na maioria das vezes, o indiciamento do acusado.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Decreto Presidencial nº 7958, de 13 de Março de 2003. Estabelece diretrizes para o atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança pública e da rede de atendimento do Sistema Único de Saúde. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/decreto/d7958.httm>.Acesso em: 29 mai. 2019.

BRASIL. Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. Altera o Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do art. 5o da Constituição Federal e revoga a Lei no 2.252, de 1o de julho de 1954, que trata de corrupção de menores. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12015.htm>. Acesso em: 18 jun. 2018.

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BRASIL. Lei nº 13.431, de 04 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), Brasília, DF. 2017. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13431.htm>. Acesso em: 18 jun. 2018.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL – TJRS. Convênio nº 044/2018-DEC, FPE 087/2018. Termo de Compromisso que entre si celebram o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e o Estado do Rio Grande do Sul, por intermédio da Secretaria da Segurança Pública, com a interveniência da Polícia Civil – PCRS. Porto Alegre, 2018.

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[1] FONTE DE REFERÊNCIA NOS LAUDOS DO IGP/RS - A avaliação da Validade da Declaração (Statement Validity Assessment – SVA) é reconhecida como a técnica mais difundida no mundo para medir a veracidade de uma declaração verbal. Sua origem data de 1954, na Alemanha, e sua metodologia foi aperfeiçoada em 1989, por Steller e Kohnken. Na sua forma atual, é aceita como evidência em tribunais de alguns países da Europa. Para mais informações sobre este instrumento, ver: Vrij, A., & J. C. Kircher (Eds.), Credibility Assessment (pp. 301-374). San Diego, CA: Academic Press (Elsevier). ISBN 978012394433.

Sobre a autora
Bruna Fernandes

Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais - Direito. Pós-graduação em Investigação Criminal. Atualmente, Servidora Pública Estadual. Já Advogou.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDES, Bruna. Investigação criminal nos crimes sexuais do art. 217-A do Código Penal, a produção de provas e o depoimento sem dano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6636, 1 set. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/92584. Acesso em: 23 nov. 2024.

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