3 Fiscalização das cooperativas
A lei que define a Política Nacional de Cooperativismo, institui o regime jurídico das sociedades cooperativas, e dá outras providências está em vigor desde 1971. Ela determinou a criação de uma estrutura centralizadora que permitisse a um guardião torná-la eficaz. Como já visto acima, este texto legal foi fruto de muita negociação dos diretores da OCB com o Congresso Nacional. E assim dispôs:
Art. 105. A representação do Sistema Cooperativista nacional cabe à Organização das Cooperativas Brasileiras - OCB, sociedade civil, com sede na Capital Federal, órgão técnico-consultivo do Governo, estruturada nos termos desta Lei, sem finalidade lucrativa, competindo-lhe precipuamente:
(...)
b) integrar todos os ramos das atividades cooperativistas;
c) manter registro de todas as sociedades cooperativas que, para todos os efeitos, integram a Organização das Cooperativas Brasileiras - OCB;
Obviamente, uma missão como essa só seria possível com a instrumentalização cogente que evitasse a fuga de sociedades que pretendiam, justamente, funcionar formalmente como cooperativas, mas à margem de sua doutrina e da fiscalização estatal. Assim se embasa o regime do registro obrigatório, fixado na mesma lei:
Da Autorização de Funcionamento
Art. 17. A cooperativa constituída na forma da legislação vigente apresentará ao respectivo órgão executivo federal de controle, no Distrito Federal, Estados ou Territórios, ou ao órgão local para isso credenciado, dentro de 30 (trinta) dias da data da constituição, para fins de autorização, requerimento acompanhado de 4 (quatro) vias do ato constitutivo, estatuto e lista nominativa, além de outros documentos considerados necessários.
Art. 18. Verificada, no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, a contar da data de entrada em seu protocolo, pelo respectivo órgão executivo federal de controle ou órgão local para isso credenciado, a existência de condições de funcionamento da cooperativa em constituição, bem como a regularidade da documentação apresentada, o órgão controlador devolverá, devidamente autenticadas, 2 (duas) vias à cooperativa, acompanhadas de documento dirigido à Junta Comercial do Estado, onde a entidade estiver sediada, comunicando a aprovação do ato constitutivo da requerente.
§ 1° Dentro desse prazo, o órgão controlador, quando julgar conveniente, no interesse do fortalecimento do sistema, poderá ouvir o Conselho Nacional de Cooperativismo, caso em que não se verificará a aprovação automática prevista no parágrafo seguinte.
(...)
§ 3º Se qualquer das condições citadas neste artigo não for atendida satisfatoriamente, o órgão ao qual compete conceder a autorização dará ciência ao requerente, indicando as exigências a serem cumpridas no prazo de 60 (sessenta) dias, findos os quais, se não atendidas, o pedido será automaticamente arquivado.
(...)
§ 5º Cumpridas as exigências, deverá o despacho do deferimento ou indeferimento da autorização ser exarado dentro de 60 (sessenta) dias, findos os quais, na ausência de decisão, o requerimento será considerado deferido. Quando a autorização depender de dois ou mais órgãos do Poder Público, cada um deles terá o prazo de 60 (sessenta) dias para se manifestar.
§ 6º Arquivados os documentos na Junta Comercial e feita a respectiva publicação, a cooperativa adquire personalidade jurídica, tornando-se apta a funcionar.
(...)
§ 8º Cancelada a autorização, o órgão de controle expedirá comunicação à respectiva Junta Comercial, que dará baixa nos documentos arquivados.
Até agora, colocou-se apenas a questão do controle prévio das cooperativas, na ação fiscalizatória quando da sua constituição. Porém, já foi dito anteriormente (no item 2.3) da competência do INCRA como órgão executivo federal de controle, delegada num outro momento à própria OCB. E ela incluía a supervisão permanente das atividades das cooperativas, ou seja, o fiel cumprimento da lei estudada.
Apenas em 1999, portanto, após a promulgação da atual Constituição da República, é que se atribuiu expressa e diretamente competência ao Sistema Cooperativista para aquele monitoramento. Foi com a edição do decreto que aprovou o Regimento Interno do SESCOOP, regulamentando a Medida Provisória que o criou. Como será visto mais adiante, a norma foi quase totalmente inócua.
3.1.1 Revogação pela Constituição
Pelas linhas iniciais deste trabalho, demonstrou-se o que vem a ser a liberdade negativa de associação. Ficou claro que o Estado retirou de si mesmo a faculdade de exigir autorização para o funcionamento de associações e cooperativas (art. 5º, XVIII da CF).
Continuaram existindo diversos requisitos para se criar uma cooperativa, contudo, esse tratamento jurídico diferenciado não pode ser confundida com a exigência de outrora, condicionada que era à aprovação pela OCB – indiretamente no início e diretamente depois.
Muitos dirigentes de cooperativas, em todo o Brasil, comemoraram a inovação constitucional. Boa parte deles simplesmente não queria fazer parte de um sistema organizado. Outros muitos eram lideranças dissidentes das políticas adotadas pelos diretores da OCB, a nível nacional, e pelas OCEs, nos Estados federados.
Por muito tempo, o Sistema Cooperativista tentou defender um discurso de diferenciar os fenômenos de autorização, registro e filiação. O primeiro, abolido sem reservas pelo texto constitucional; o segundo, ainda obrigatório, por não haver outro órgão responsável pela manutenção dos dados do cooperativismo no Brasil ou com a necessária incumbência específica de fiscalizá-lo; o último, facultativo, em que se apresentava a proposta de participação da vida da OCB como associação representativa que lutava pelos interesses do setor, inclusive frente ao Estado.
Na prática, esta empreitada não vingou. Da parte dos órgãos públicos, aos poucos foram desaparecendo reservas a cooperativas não autorizadas/registradas/filiadas à OCB para que participassem de subvenções, auxílios e contratações.
Por mais que o argumento fosse nobre, farto de razões pela salvaguarda da lei do cooperativismo, o Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC) fulminou a pregação. A atualização do manual de registro de cooperativas [14], esmiuçando o procedimento, não mais fez qualquer referência ao Sistema Cooperativista. Não se menciona parecer prévio, homologação ou qualquer outro ato de concordância das organizações de cooperativas nos estados.
3.3 Os atos constitutivos e a omissão do Registro do Comércio
Conforme dito anteriormente, ao mesmo tempo em que determina seu apoio e estímulo, a Carta Magna veda expressamente a interferência do Estado no funcionamento das sociedades cooperativas. Assim, quando em outro dispositivo o legislador constituinte vincula sua criação à forma da lei, resta ao legislador ordinário fixar as condições para a constituição de cooperativas.
Não resta mais dúvida de que a existência da personalidade jurídica das cooperativas se dá pelo arquivamento dos atos constitutivos na respectiva Junta Comercial, pois o art. 45 do Código Civil de 2002 é claro e apenas reproduz a norma do Código anterior (vide item 1.3.2).
Como foi exposto, existe uma pretensão, pelo menos oficial, de que os órgãos de Registro do Comércio prezem pela legalidade das cooperativas no que concerne à sua constituição. É o que se percebe da leitura do manual de registro de cooperativas, de 33 páginas [15]. Sua redação é bastante detalhada, restando do seu estudo pouca ou nenhuma dúvida sobre os aspectos jurídicos e até sociais observáveis para esta forma empresarial sui generis.
Na prática, a defasagem da estrutura das Juntas Comerciais impede que haja uma análise eficiente dos inúmeros documentos requeridos para abrir uma cooperativa. A especificidade delas, quando comparadas com o formato das demais empresas, faz perceber que os conselhos da Juntas necessitariam mesmo de um suporte profissional voltado para essa árdua tarefa.
Poder-se ia criticar esse posicionamento com a constatação da enorme burocracia que já existe em quase todas as atividades desse setor da Administração Pública, tanto a nível federal como estadual. Contudo, a percepção mais acertada da proposta é reconhecer-se que a anterioridade dessa fiscalização impediria o nascimento viciado de verdadeiras sociedades criminosas, vocacionadas desde o início à burla do ordenamento jurídico.
A questão, porém, é delicada demais. É por isso que, tendo a autonomia das cooperativas se tornado matéria pacífica na Administração Pública, considera-se, no mínimo, inusitado o Projeto de Lei do Senado anteriormente mencionado.
Mesmo que se sugerisse a incumbência dessa fiscalização ao SESCOOP – ente paraestatal – dessa tarefa, apenas efetivando o que já prevê o Decreto 3.017, de 1999, [16] não se admitiria tal delegação do poder de controle, de polícia administrativa, por ser uma prerrogativa pública e necessariamente estatal.
Há, ainda, o óbice prático da questão: se o SESCOOP não possui o cadastro compulsório das cooperativas que preferiram simplesmente não afiliar-se ao Sistema Cooperativista, como ele poderá monitorar o que fazem essas sociedades?
Como alternativa a esta realidade, em alguns estados, parcerias firmadas entre as entidades de representação das cooperativas e os órgãos de Registro do Comércio diminuem a sensação de anomia, quando se trata de fiscalização prévia.
O Sindicato e Organização das Cooperativas do Estado do Piauí, por exemplo, mantém com a Junta Comercial do Estado um contrato em que se verifica a cooperação a favor da lei. O instrumento prevê que a JUCEPI fornecerá informações sobre todos os dados cadastrais das empresas cooperativas com registro no seu sistema, suas "condições, alterações e extinções, e também daquelas que desejarem registrar-se, sendo que, nesta situação, antes de ser efetivado o registro na Junta Comercial, será encaminhada à OCEPI uma consulta prévia para que tenha poder de avaliar a viabilidade ou não da sociedade em questão".
Para ser mais preciso, o que o acordo prevê é um parecer técnico-jurídico daquela OCE sobre a legalidade dos atos constitutivos ou alteradores do cadastro de cooperativas no Registro do Comércio, pelo qual seu conselho deliberativo fica amparado para deferir ou rejeitar tais demandas.
Aceitando um parecer desfavorável à constituição de uma cooperativa, abre-se outra discussão. A sociedade rechaçada sempre alegará que a motivação para a recusa é a proteção às cooperativas já em funcionamento e filiadas à OCB/SESCOOP, como forma de redução da concorrência. Acrescentará que o poder público não pode submeter-se às vontades dos particulares. Já que a lei não prevê o condicionamento a tal "autorização", permanece o entrave perturbador e cansativo.
Porém, sem força vinculativa, o parecer da OCE funciona juridicamente como mera sugestão ao órgão oficial, cujo poder decisório conferido por lei estadual não pode ser limitado por uma parceria com uma entidade privada, por mais que se lhe dê um fundo de interesse público.
Um dos pareceres emitidos pela OCE do Piauí [17] merece especial destaque. Numa análise dos atos constitutivos de uma cooperativa de plantadores de cana e fabricantes de rapadura, detectou-se diversos pontos objetivamente contrários às exigência das Lei 5.764/71 para o estatuto social. A constatação mais relevante, porém, vem ao final, in verbis:
"(...) dado nosso compromisso social institucional, propomos a V. Sª. um diálogo mais aprofundado sobre a constituição desta cooperativa, adiantando nosso posicionamento contrário a este ato que, a nosso ver, não se faz embasado no sentimento livre e autônomo desses plantadores de cana e fabricantes de rapadura. Nosso senso alerta para um induzimento por parte de alguém que não pretende empregar estes trabalhadores, o que seria, certamente, melhor para eles".
3.4 O papel do Ministério Público
Comenta o professor Alexandre de Moraes que a "Constituição Federal de 1998 ampliou sobremaneira as funções do Ministério Público, transformando-o em um verdadeiro defensor da sociedade".
Como guardião do ordenamento jurídico, especialmente quando se trata de interesses metaindividuais, o Parquet atrai para si a responsabilidade de acompanhar permanentemente as manifestações que ensejem desvio dos direitos individuais homogêneos, sociais, coletivos e difusos.
O cerne da problemática do funcionamento cooperativas é a latente possibilidade de burla aos direitos sociais (trabalhistas). Toda a preocupação da lei de cooperativas em formatar sua estrutura e estabelecer procedimentos obrigatórios visa simplesmente à garantia do seu objetivo maior: o desenvolvimento econômico-social dos seus sócios.
Merece lembrar a Constituição, ao estabelecer que são funções institucionais do Ministério Público:
Art. 129. (...)
II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;
Essa instituição, destarte, lida cotidianamente com flagrantes desrespeitos aos princípios cooperativistas e à proteção da primazia da realidade para reconhecimento de vínculos empregatícios. Chegam-lhe, nos balcões, tristes denúncias de abusos cometidos, engodos de grandes proporções.
O Ministério Público do Trabalho lamenta mais ainda não poder prever tantas atrocidades. Vê-se limitado a: 1) tentar acordos com diretores de cooperativas para que reconheçam e registrem os cooperados como empregados, ou mesmo desconstituam a sociedade quando toda ela estiver inquinada; 2) firmar compromissos com tomadores de serviço – inclusive a Administração Pública – no sentido de abster-se de contratar mão de obra terceirizada irregular para desenvolvimento de atividades-fim, ou com subordinação em atividades-meio através de cooperativas; 3) ajuizar ações que revertam as ilegalidades já perpetradas, o que sempre prolonga seu desfazimento.