4.ALGUNS ASPECTOS DE DECISÕES DO STF SOBRE O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS
Daniel Wang e Fernanda Terrazas analisaram decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da matéria e criticaram a falta de critérios claros e uniformes nos julgados [37][38].
A crítica nos parece procedente. Mas tão somente como advertência para que haja um aprofundamento sobre o tema. Não como desmerecimento ao trabalho do STF.
O meio jurídico é fascinado pela busca de soluções apriorísticas para todas as situações. Mas nem sempre é possível estabelecer soluções a priori para todas as questões. E quase nunca o é para as mais complexas. Como adverte Luis Roberto Barroso, "não há solução juridicamente fácil nem moralmente simples nessa questão" [39]. Toda e qualquer tentativa de se estabelecer soluções a priori no tema ora discutido é perigosa e pode conduzir a grandes desastres humanitários! É preciso reconhecer que nosso sistema constitucional não aponta soluções a priori para esses casos. O que ele contém são valores positivados e que devem ser ponderados caso a caso. Nesse sentido, lúcida a advertência da Ministra Ellen Gracie.
Nas suspensões de segurança 3205, 3158, 3183 e 3231 a Ministra Ellen Gracie mostrou preocupação com "a interpretação ampliativa que vem sendo dada às decisões desta Presidência em relação às demandas por fornecimento de medicamentos pelos Estados". Isso porque, segundo a própria Ministra, os pedidos devem ser analisados "caso a caso, de forma concreta, e não de forma abstrata e genérica (...) não se estendendo os seus efeitos e as suas razões a outros casos, por se tratar de medida tópica, pontual". [40]
Não obstante essa advertência, parece-nos que as decisões do Supremo já permitem vislumbrar quais as circunstâncias a serem ponderadas diante do caso concreto. A regra geral que se pode extrair da jurisprudência do Tribunal é a de que, em situações ordinárias, o cidadão não tem direito subjetivo individual constitucional ao fornecimento de medicamentos pelo Estado. E que o direito constitucional à saúde não se efetiva de forma individual, mas através de políticas públicas. E que, por conseqüência, só haveria direito subjetivo individual ao fornecimento de medicamentos quando assim fosse estabelecido por essas mesmas políticas públicas [41]. Ou seja, pelas normas infraconstitucionais.
Porém, o STF contempla circunstâncias que afastariam a aplicação dessa regra geral. Situações configurariam um verdadeiro estado de necessidade, funcionando de forma análoga às causas de exclusão da ilicitude.
Os julgados da corte vêm considerando (i) a gravidade da doença; (ii) a condição econômica do interessado; (iii) o custo do tratamento e (iv) a comprovação da eficácia do tratamento pretendido. E vêm entendendo que, não obstante os reflexos sobre o erário, o tratamento deve ser fornecido quando não puder ser arcado pelo próprio interessado; for comprovadamente eficiente; e efetivamente necessário para salvar a vida do paciente [42].
Assim, no presente caso, atendo-me à hipossuficiência econômica da impetrante, à enfermidade em questão, à ineficácia de outros tratamentos já ministrados, à urgência na utilização do medicamento FORTÉO (teriparatida), devidamente registrado junto à ANVISA, entendo que, em face dos pressupostos contidos no art. 4º da Lei 4.348/64, a ausência do medicamento solicitado poderá ocasionar graves e irreparáveis danos à saúde e à vida da paciente, ocorrendo, pois, o denominado perigo de dano inverso, o que demonstra, em princípio, a plausibilidade jurídica da pretensão liminar deduzida na ação mandamental [43]
Dentro dessa lógica, o STF determinou o fornecimento de medicamento de alto custo para o tratamento de paciente que sofria de câncer, de comprovada hipossuficiência econômica [44]. E o negou para o tratamento de infertilidade feminina [45]. Ou seja, entendeu que o alto custo do tratamento não é impeditivo quando está em jogo a própria vida do paciente. Mas que o é quando está em jogo, por exemplo, uma questão de infertilidade feminina.
Em julgamento monocrático do Agravo de Instrumento (AI) 588169, a Ministra Carmem Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, determinou o fornecimento de fraldas descartáveis a uma pessoa que sofria de hidrocefalia com descontrole de esfíncter. Há quem entenda que essa decisão se afastaria da orientação acima exposta, pois não estaria em jogo a vida do paciente [46]. Não nos parece ser esse o caso. A decisão é totalmente coerente com a ponderação entre a gravidade da doença e o custo do tratamento. Afinal, fraldas descartáveis não podem ser consideradas como de alto custo!
CONCLUSÃO
Repetindo Luis Roberto Barroso, "não há solução juridicamente fácil nem moralmente simples nessa questão" [47]. E não há solução uniforme e a priori para o tema do fornecimento de tratamentos de alto custo. Cada caso precisa ser analisado individualmente.
Mais importante do que o domínio de conceitos jurídicos complexos é o bom senso. A Constituição é muito clara: o direito à saúde deve ser realizado através de políticas públicas. E essas políticas públicas precisam ser preservadas. Não é razoável que, como no caso de São Paulo, 30% do orçamento da saúde esteja comprometido por decisões judiciais. Também não o é que os serviços públicos de saúde sejam abalados porque há notícia de que o tratamento no estrangeiro seja mais eficiente do que no território nacional. Ou porque o tratamento domiciliar se mostra mais confortável para o paciente [48].
Mas, ao mesmo tempo, não se pode deixar um ser humano morrer a míngua simplesmente porque não tem dinheiro para arcar com o tratamento. O interesse público deve sim prevalecer sobre os interesses particulares. Mas não sobre os seus direitos mínimos, que são a própria razão da existência de uma sociedade.
Portanto, diante de cada caso concreto, na linha que vem sendo adotada pelo STF, há que se ponderar (i) a gravidade da doença; (ii) a condição econômica do interessado; (iii) o custo do tratamento e (iv) a comprovação da eficácia do tratamento pretendido. E, ainda que haja grande comprometimento de recursos públicos, o tratamento deverá ser fornecido quando não puder ser arcado pelo próprio interessado; for comprovadamente eficiente; e efetivamente necessário para salvar a vida ou preservar as condições mínimas de saúde do paciente. Mas não quando o interessado puder custeá-lo. Ou quando não houver comprovação da eficiência do tratamento. Ou quando não se mostrar absolutamente necessário.
Notas
- Agravo de Instrumento (AI) nº 547758
- BARROSO, Luis Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Disponível em: http://www.lrbarrosoassociados.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf
- Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
- BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.
- CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. Ed. Coimbra: Almedina, 2000.
- SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. Ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
- MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 7. Ed. São Paulo: Atlas, 2007.
- Ibid., pag. 1280.
- CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional. 13. Ed. Belo Horizonte: DeI Rey, 2007, p.1167.
- ARAÚJO, Luiz Alberto David. Curso de direito constitucional. 12. Ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.486.
- MORAES, Ibid, p.2084-5.
- SILVA, p.308-9.
- CF, art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição
- MIRANDA, Henrique Savonitti. Curso de direito constitucional. 3. Ed. Brasília: Senado Federal, 2005, p.184.
- SILVA, p.309.
- LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.127.
- SOUZA, Motauri Ciocchetti de. Ação civil pública e inquérito civil. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p.5.
- Idem, Ibidem, p.6.
- MIRANDA, 2005, p.185.
- ARAÚJO, 2008, p.486.
- A título de exemplo dessa excessiva complexidade, citamos o seguinte excerto: "Atenuar o distanciamento entre os vetores axiológico e real exige seja densificada a plasticidade retórico-semântica - da já referida perspectiva idealístico-formal dos direitos humanos - e despertada sua eficácia transformadora, permitindo aproximá-la da concretude inerente à perspectiva material" in GARCIA, Emerson. Dignidade da pessoa humana: referenciais metodológicos e regime jurídico. Disponível em <http://jus.com.br/artigos/6910>. Acesso em 11 set. 2008.
- MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 8. Ed. São Paulo: Atlas, 2007, p.46.
- COELHO, Helena Beatriz Cesarino Mendes. Direitos Fundamentais Sociais: Reserva do possível e controle jurisdicional. Disponível em: <http://www.pge.rs.gov.br>. Acesso em 31 mar.2008. Para localizar o texto, após acessar o site, clicar em: REVISTAS PGE – Revista da Procuradoria-Geral do Estado n.63 – Pg.121-138.
- MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. GONET, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p.1.301.
- STF, ADPF nº 45 MC/DF, Relator Ministro Celso de Mello
- COELHO, ibid..
- MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15. Ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
- CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional. 13. Ed. Belo Horizonte: DeI Rey, 2007, p.1.170.
- COELHO, ibid.
- BARROSO, ibid.
- BARROSO, ibid.
- COELHO, ibid.
- MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15. Ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p.398.
- BARROSO, ibid.
- KOLB Neto, Kunibert. A noção de tempo não linear no raciocínio jurídico. In: Revista da Procuradoria Geral do Estado de Sergipe, v.III, 2003, p.95.
- Na mesma linha ora defendida: COELHO, ibid.
- WANG, Daniel; TERRAZAS, Fernanda. Decisões da Ministra Ellen Gracie sobre medicamentos. Disponível em: <http://www.sbdp.org.br/revista_ver.php?id_re=66 > Acesso em 25 mar. 2008.
-
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Para localizar a tabela, após acessar o site, clicar em: Artigos e Pesquisas – Artigos – Direito Constitucional. - BARROSO, ibid.
- COELHO, Ibid.
- Suspensão de Tutela Antecipada (STA) nº 91; Suspensão de Segurança (SS) nº 3073;
- SS nº 3193, STA 138, Suspensão de Liminar (SL) nº 166.
- SS nº 3345.
- SS nº 3193.
- SS 3274, SS 3350, SS 3274, SS 3263.
- CASTELO BRANCO, Luciana Temer. Abrangência do Direito à Saúde: Fornecimento de medicamentos especiais é dever do Estado? Disponível em: <http://www.cepam.sp.gov.br>. Acesso em 31 mar.2008. Para localizar o texto, após acessar o site, clicar em: Artigos/ Outubro 2007.
- BARROSO, ibid.
-
APPIO, Eduardo. O Direito e a indústria. Não cabe ao juiz determinar política pública de saúde. Disponível em: <http://conjur.estadao.com.br/static/text/39665?>. Acesso em 31 mar.2008.
REFERÊNCIAS:
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