6. A MULTIPLICAÇÃO DOS PROCESSOS JUDICIAIS PARA SATISFAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE
Diante das políticas públicas de saúde que não abrangem todos os tipos de tratamento e que se tornam cada vez mais omissas aos casos mais urgentes, em muitos casos o cidadão não vê outra saída a não ser a via judicial. Não apenas os usuários do Sistema Único de Saúde estão fadados a tal sorte; mesmo um usuário de Planos de Saúde pode se deparar com a necessidade de utilização de um medicamento de alto custo e não ter qualquer possibilidade financeira de adquiri-lo.
Dessa forma, a cada ano, os valores financeiros gastos pelos entes federativos por força de determinações judiciais que reconhecem a urgência dos casos de saúde e, principalmente, os direitos garantidos constitucionalmente, vêm aumentando de forma considerável.
Nos gráficos a seguir percebe-se claramente a tendência de aumento da quantidade de ações e, consequentemente, dos valores gastos pela União a partir do ano de 2005.
Os dados apresentados referem-se unicamente às ações em que a União constava no pólo passivo e que os gastos saíram dos cofres federais. São informações controladas e cedidas pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, conforme planilha a seguir:
Os dados com número de ações de 2005 a 2007 foram complementados utilizando como fonte a Revista Época em sua Edição de 16/05/2009 que, por sua vez, também utilizou informações do Ministério da Saúde [14].
Ao serem comparados os números de 2008 e 2009, houve aumento de 82% nos valores desembolsados.
Outra comparação, mais atualizada a ser vista, são os gastos da União no período de janeiro a agosto de 2010 em relação ao mesmo período de 2009. Neste mesmo período, houve aumento de 67% nos valores da União para cumprimento dos mandados judiciais.
Há de se destacar que as informações referem-se apenas à compra de medicamentos e não a outros tipos de despesas como tratamentos, internações, etc. Não há no levantamento dados de gastos do Distrito Federal, Estados e Municípios, o que leva a crer, logicamente, que os valores totais, de todos os entes federativos juntos são muito maiores.
7. A RESERVA DO POSSÍVEL COMO MEIO DE DEFESA DOS ENTES FEDERATIVOS NAS AÇÕES JUDICIAIS
Em meio a todos os fatores apresentados até aqui neste estudo, surge a Reserva do Possível. Cabe, inicialmente, a verificação do que venha ser este princípio, conforme muito bem Ana Paula Barcellos o explica:
A expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre infinitas a serem por eles supridas. [...] para além das discussões jurídicas sobre o que se pode exigir judicialmente do Estado – e em última análise da sociedade, já que é esta que o sustenta –, é importante lembrar que há um limite de possibilidades materiais para esses direitos [15].
Na doutrina, a Reserva do Possível assume duas formas: a fática e a jurídica, apresentadas por Salazar e Grou:
O condicionamento da efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais à dependência de recursos econômicos é que recebe a denominação de Reserva do Possível. Tem-se falado em duas espécies de reserva do possível, a fática e a jurídica. A reserva do possível fática, como sugere a denominação, diz respeito à inexistência fática de recursos, ou seja, o vazio dos cofres públicos. A jurídica, por sua vez, corresponde à ausência de autorização orçamentária para determinado gasto ser levado a cabo [16].
Pois bem, segundo o Princípio da Reserva do Possível, deve existir sempre uma reserva orçamentária para a garantia das necessidades públicas básicas e esta reserva não pode ser afetada para custeio de despesas distintas deste ou daquele cidadão. Encaixando a Reserva do Possível ao tema estudado, pode-se dizer que não poderia ser afetado o orçamento, já deficitário, em razão do fornecimento de um medicamento de alto custo (geralmente fora da Relação Nacional de Medicamentos) para uma única pessoa.
É com base no argumento, de que não há recursos suficientes para o custeio da determinada despesa descrita na ação, que os entes federativos (quando acionados) apegam-se como meio de defesa. Para eles, caso forneçam o determinado medicamento, tratamento ou qualquer outra forma de despesa, estarão impedindo que o restante da população tenha acesso a pelo menos os serviços básicos necessários.
Como já visto em diversas decisões acima, o argumento não é geralmente aceito pelos juízes das ações. Mas, há juristas que defendem o fortalecimento da Reserva do Possível como forma de moralização da administração pública e do fornecimento básico de serviços essenciais de saúde.
Contra tal corrente, Paulo Henrique Portela cita com muita propriedade o jurista Kildare Carvalho:
É preciso ponderar, no entanto, que o princípio da reserva do possível não se reveste do caráter absoluto que alguns juristas pretendem atribuir-lhe, à consideração principal de que, sendo a saúde um direito que se relaciona com a garantia da vida e da dignidade humana, pertence ao Judiciário, no âmbito do controle do devido processo legal, de cunho substantivo, impedir que seja violado por meio de qualquer processo, por mais razoável que seja, e que fique à mercê dos poderes Legislativo e Executivo. Caso contrário, a reserva do possível significaria: a) a total desvinculação jurídica do legislador quanto à dinamização dos direitos sociais constitucionalmente consagrados; b) a ‘tendência para o zero’ da eficácia jurídica das normas constitucionais consagradoras dos direitos sociais; c) a gradualidade com dimensão lógica e necessária da concretização dos direitos sociais, tendo sobretudo em conta os limites financeiros; d) a insindicabilidade jurisdicional das opções legislativas quanto à densificação legislativa das normas constitucionais reconhecedoras de direitos sociais [17].
A judicialização da saúde é um tema recorrente, importante e que provavelmente sempre existirá. Somente o judiciário é quem pode decidir sobre quais direitos poderão ser sopesados: o direito à saúde (e à vida) ou os parâmetros orçamentários, sejam eles da União, Estados ou Municípios.
Não pode existir na Reserva do Possível uma forma de tornar legítima a negligência do poder público para o que ocorre rotineiramente em casos especiais. Quando a pessoa necessitada procura os órgãos de saúde em busca de auxílio para custeio de despesas de alto custo, sejam elas para compra de medicamentos, tratamentos e internações, geralmente há a negativa com base na falta de recursos. Mesmo que não saibam, administrativamente, o princípio da Reserva do Possível está sendo aplicada pelos administradores dos órgãos de saúde.
8. A RESERVA DO POSSÍVEL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Os direitos fundamentais são divididos em cinco grupos distintos (art. 5º ao 17) da Constituição Federal: direitos individuais e coletivos, direitos sociais, direitos de nacionalidade, direitos políticos e direitos relacionados à existência, organização e participação em partidos políticos [18].
Dentre os direitos sociais está o Direito à Saúde, previsto no artigo 6º da Constituição Federal. Dentre os direitos individuais estão, como por exemplo, o Direito à Vida (art. 5º, caput), à Liberdade (art. 5º, caput) e à Dignidade (art. 1º, III).
Surge na doutrina atual a necessidade de instituição de um "mínimo existencial", que seria um elemento constitucional essencial pelo qual deve ser garantido um conjunto de necessidades básicas do indivíduo. Certamente, o acesso à saúde de forma digna está inserido no mínimo existencial, o que deve ser garantido pelo Estado.
Em colisão com os direitos fundamentais, mais precisamente os direitos sociais e individuais, está o Princípio da Reserva do Possível. Este princípio, ao levar em consideração as diretrizes orçamentárias para atendimento das políticas básicas já orçadas, não leva em consideração o direito individual à saúde, garantido como direito social fundamental. Não leva em consideração a dignidade da pessoa, garantida como direito individual fundamental.
Para Andreas J. Krell, a teoria que defende a aplicação da Reserva do Possível sobre os direitos sociais, representa uma adaptação de criação da jurisprudência constitucional alemã, que vem sustentando que os direitos subjetivos à prestação material de serviços públicos pelo Estado estão condicionados à disponibilidade de recursos financeiros e que, por sua vez, as decisões acerca desta disponibilidade ficam a cargo dos governos e parlamentos [19].
E, ainda, Krell complementa que é preciso tomar cuidado com os conceitos constitucionais transplantados. O Brasil faz parte de contexto socioeconômico e cultural completamente diferente do europeu. A transferência mal conduzida do conceito de Reserva do Possível implicaria a adoção de solução estrangeira que não guarda coerência com a realidade e as necessidades da sociedade brasileira [20].
Por sua vez, Américo Bedê Freire Júnior destaca:
Será que é possível falar em falta de recursos para a saúde quando existem, no mesmo orçamento, recursos com propaganda do governo? Antes de os finitos recursos do Estado se esgotarem para os direitos fundamentais, precisam estar esgotados em áreas não prioritárias do ponto de vista constitucional e não do detentor do poder [21].
Como já verificado no decorrer do estudo, a tendência do judiciário brasileiro é de reconhecimento dos direitos fundamentais estampados na Constituição e nas leis infraconstitucionais que regulam a saúde. Há, sim, a necessidade de estudo de cada caso concreto.
O Ministro Celso de Melo se pronunciou da seguinte forma sobre a utilização da Reserva do Possível frente aos direitos fundamentais:
[...] não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa, criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições mínimas de existência [...] a cláusula da reserva do possível, ressalvada a ocorrência de justo motivo, não poderá ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.
(ADPF 45/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Informativo nº 345, 2004, vide também o RE 436996/SP).
É certo de que deve haver sempre um estudo do caso concreto, pois se tornaria impossível o fornecimento de tratamentos de alto custo a todo e qualquer cidadão brasileiro que necessite de um tratamento diferenciado. O que não se pode deixar é de analisar os casos fáticos, até mesmo administrativamente.
A Constituição impõe como obrigação do Estado o reconhecimento dos direitos fundamentais em forma de políticas públicas voltadas ao bem estar da pessoa.
Konrad Hesse ao defender a força normativa da Constituição expressa que:
Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida [...] [22].
No atual ordenamento jurídico brasileiro, o fato de haver uma Constituição que zela pelos direitos fundamentais do cidadão, não há de prevalecer o princípio econômico sobre o social, mesmo que este princípio social (de Direito à Saúde) seja invocado em uma ação judicial para proteção do direito de uma única pessoa que necessita do apoio do Estado.
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assunto extremamente complexo por envolver direitos fundamentais como o direito à vida e o direito à dignidade humana, a busca forçada do cidadão pelo acesso à saúde assume contornos sempre preocupantes e é cada vez mais discutido pelos meios de comunicação.
A ineficiência das políticas públicas voltadas para o atendimento do direito social à saúde se torna evidente quando são apresentados os números de ações judiciais, cada vez mais crescentes e, claro, as condições precárias do atendimento nos hospitais públicos.
Segundo informações do "Relatório de Financiamento de Sistemas de Saúde: O Caminho para Cobertura Universal", da Organização Mundial de Saúde (OMS), entre 20% e 40% dos investimentos em saúde em todo o mundo são desperdiçados [23].
O estudo da atuação do judiciário na efetivação do direito à saúde traz à tona, além da comprovação da ineficácia das políticas públicas para atender os direitos constitucionalmente protegidos, preocupações de cunho técnico e econômico.
Deve haver a possibilidade de se estudar cada caso com sua particularidade para que não se condene à morte as pessoas que realmente necessitam de tratamento diferenciado dos demais e não podem arcar com os altos custos.
Ao mesmo tempo, os juízes responsáveis pelos casos relacionados à saúde devem ter o mínimo de apoio técnico possível. Seja por meio de comitês técnicos de apoio, formados por médicos especialistas, farmacêuticos entre outros profissionais, ou até mesmo por opiniões individuais de especialistas que devem estudar as evidências e provas carreadas ao processo e apresentarem seus pareceres. Somente assim o juiz julgará com maior certeza e convicção de que está tomando a melhor decisão.
Com o aumento das ações judiciais deve-se tomar o cuidado para que não se banalize o acesso ao judiciário sob o risco de haver, por exemplo, ações judiciais que serão utilizadas para desrespeitar as filas de transplantes sem critérios de riscos iminentes ou para receberem medicamentos e tratamentos de alto custo sem a real necessidade demonstrada. Novas posturas no judiciário para dificultar as decisões favoráveis aos pedidos feitos nestas ações podem ocorrer como forma justamente de impedir que tal banalização possa acontecer.
As considerações retiradas de decisões judiciais, inclusive do STF, de que o direito à saúde integral é subjetivo público, corroboram para o fato de que não há, pelo menos em uma visão próxima de futuro, um caminho diferenciado para a obtenção desse direito em casos especiais. Ou seja, o judiciário continuará a analisar os casos individualmente, uma vez que os orçamentos para a saúde são escassos, não havendo a possibilidade de atender a todos de forma integral e com despesas elevadas.
Há de se pensar futuramente, talvez, em critérios distributivos para os recursos à saúde. Critérios estes que permitiriam a disponibilização de valores variáveis de acordo com as necessidades de cada cidadão. Esta seria uma forma de atender, com maior agilidade, a quem do contrário teria somente o judiciário como forma de apoio.
É em meio a tantos fatores de análises a serem realizadas, de princípios constitucionais e infraconstitucionais expostos no presente estudo, é que se vê o quão importante é tal discussão. As políticas públicas de saúde são cada vez mais questionadas e a vontade política não se mostra a favor de mudar o cenário atual.
No sentido oposto ao reconhecimento dos direitos fundamentais garantidos na Constituição Federal está o princípio da Reserva do Possível. A Reserva do Possível determina a observância dos fatores orçamentários para garantia de políticas públicas e que a retirada de determinado valor para pagamento de despesas de uma única pessoa compromete o orçamento já limitado, deixando, assim, de atender à coletividade.
Com a argumentação orçamentária, a Reserva do Possível se colide diretamente com o direito à vida, com o direito social de integralidade do acesso à saúde e com o direito individual de dignidade da pessoa humana. Tal argumentação, geralmente, não é reconhecida como legítima pelo judiciário.
As dúvidas principais ainda perduram e devem ser amplamente debatidas. Não se pode deixar de analisar que a efetivação do direito à saúde é dependente dos recursos econômicos, o que leva a uma consideração importante: para se privilegiar o custeio dos remédios e tratamentos de alguns, serão utilizadas verbas de uma coletividade.
Finaliza-se o estudo com a convicção de que algo deve ser feito urgentemente, pois até mesmo as ações judiciais tornam-se insuficientes para o atendimento de forma rápida ao cidadão que necessita de atendimentos e medicamentos especiais. As garantias constitucionais devem ser confirmadas pelo Estado e o direito social à saúde, que é uma forma direta de cuidar do bem maior que é a vida, deve ser efetivamente disponibilizado à população.