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A inversão do encargo probatório e do ônus financeiro em demandas ambientais.

Análise crítica do acórdão proferido no REsp 972.902/RS

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6. Recurso Especial n° 972.902/RS: Análise Crítica

Origina-se o presente Especial de Ação Civil Pública proposta perante Juízo da Comarca de Sapucaia do Sul/RS, pelo Parquet Estadual do Rio Grande do Sul e pelaFundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul, contra a empresa Amapá do Sul S/A Artefatos de Borracha. Nessa demanda, a magistrada a quo deferiu o pedido de inversão do ônus da prova, impondo à ré o pagamento da importância necessária à realização da perícia.

Dessa decisão, houve a interposição, pelo demandado, de agravo de instrumento ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, afirmando que, para que se operasse a inversão do ônus da prova, a alegação do requerente deveria ser verossímil, ou ele deveria ser hipossuficiente, o que não seria o caso dos autos. Referiu ainda que, por outro lado, não se sustentaria, no caso em tela, a inversão do ônus de pagamento dos honorários periciais, pois o adiantamento de tal despesa caberia a quem a tivesse requerido, com fundamento nos arts. 19, §§ 1º e 2º, e 33, caput e parágrafo único, do Código de Processo Civil.

No julgamento do Agravo, a desembargadora relatora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entendeu que não existiria razão para a inversão do ônus da prova na espécie, não havendo relação entre tal instituto e a necessidade de pagamento adiantado de custas, não se podendo confundir a responsabilidade ambiental com o ônus processual de arcar com as despesas processuais.

Para ela, caberia ao Ministério Público proporcionar meios para comprovar a ocorrência do dano ambiental e a sua extensão, na qualidade de autor e de requerente da realização da perícia, juntamente com a Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul, acrescentando ainda que, no caso sob análise, não haveria hipossuficiência do Ministério Público em relação à empresa ré, ora agravante, não se estando, portanto, presentes os requisitos para inversão do ônus probatório.

Ressaltou ainda a desembargadora relatora, em seu voto, não ser possível determinar a inversão do ônus da prova como pretendido, isto é, com o argumento de que "[...] cabível é a inversão do custo da prova, em matéria ambiental, face à transferência do risco ao potencial poluidor [...]", pois a responsabilidade da empresa agravante era questão ainda não decidida que se perquiriria na demanda, não havendo relação de hipossuficiência entre a empresa agravante e o Ministério Público.

Com tais argumentos o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por unanimidade, deu provimento ao Agravo de Instrumento, reformando a decisão primária que inverteu o ônus da prova, assim como o ônus financeiro de custear a perícia.

Diante disso, o Ministério Público aviou Recurso Especial, sustentando que houve violação dos art. 6º, VIII, da Lei 8.078/1990 e dos arts. 18 e 21 da Lei 7.347/1985, pleiteando a reforma do acórdão recorrido, "para o fim de inverter o ônus probatório em desfavor do demandado e isentar o Ministério Público da antecipação dos honorários periciais".

Para a Ministra Eliana Calmon, relatora do Especial, a análise sobre o ônus da prova, em ação coletiva por dano ambiental, deve ser dirimida pela interpretação das leis aplicáveis ao mencionado instrumento processual à luz dos princípios norteadores do Direito Ambiental. Isso porque, em regra, a inversão do ônus probatório deve assentar-se exclusivamente em disposição expressa de lei. Mas, no presente caso, essa inversão encontraria fundamento também em princípios transversais ao ordenamento jurídico, quais sejam, os princípios ambientais.

Na apreciação do Recurso Especial, a Ministra Relatora registrou o seguinte:

"No caso das ações civis ambientais, entendo que o caráter público e coletivo do bem jurídico tutelado – e não a eventual hipossuficiência do autor da demanda em relação ao réu –, nos leva à conclusão de que alguns dos direitos do consumidor também devem ser estendidos ao autor daquelas ações, afinal essas buscam resguardar (e muitas vezes reparar!) o patrimônio público de uso coletivo, consubstanciado no meio ambiente.

A essas normas agrega-se o Princípio da Precaução. Esse preceitua que o meio ambiente deve ter em seu favor o benefício da dúvida no caso de incerteza (por falta de provas cientificamente relevantes) sobre o nexo causal entre determinada atividade e um efeito ambiental negativo.

Incentiva-se, assim, a antecipação de ação preventiva, ainda que não se tenha certeza sobre a sua necessidade e, por outro lado, proíbe-se as atuações potencialmente lesivas, mesmo que essa potencialidade não seja cientificamente indubitável.

Além desse conteúdo substantivo, entendo que o Princípio da Precaução tem ainda uma importante concretização adjetiva: a inversão do ônus da prova".

Portanto, a partir da interpretação do art. 6º, VIII, da Lei 8.078/1990 c/c o art. 21 da Lei 7.347/1985, conjugado ao Princípio da Precaução, a eminente Ministra Relatora entendeu justificável a inversão do ônus da prova, transferindo para o empreendedor da atividade potencialmente perigosa o ônus de demonstrar a inexistência da ocorrência de dano e ausência do nexo de causalidade entre conduta e o dano.

Apesar de concordarmos que o princípio da precaução, a priori, possa ser utilizado como fundamento principiológico para a inversão do ônus probatório, conjugamos do entendimento de que a técnica de inversão deve igualmente estar assentada em expressa disposição legal. Assim, o princípio da precaução somente pode ser aviado como fundamento da inversão quando restar caracterizada a hipossuficiência científica do autor coletivo em detrimento do empreendedor, como mesmo reconhece o jurista Marcelo Abelha [25]:

"Conquanto o mecanismo acima [princípio da precaução] fique restrito aos casos de hipossuficiência científica, é certo que a técnica de inversão do ônus da prova, no curso do processo, a critério do juiz, pode ser aplicada em qualquer ação de responsabilidade civil ambiental".

Cumpre reforçar que o direito ambiental vale-se do princípio da precaução apenas quando houver absoluta incerteza científica sobre as eventuais conseqüências da implantação de determinado empreendimento. Quando já se conhece as conseqüências, os prejuízos e eventuais danos que a atividade pode causar, não se está diante de incerteza científica. Nesse caso, impera o princípio da prevenção, admitindo-se a operação da atividade, mediante mitigações e compensações ambientais em prol do próprio desenvolvimento sustentável, princípio vetor do direito ambiental brasileiro.

Ou seja, em não se tratando de incerteza científica, não há, por conseguinte, hipossuficiência científica, não cabendo igualmente falar-se em inversão do ônus probatório com fundamento no princípio da precaução.

Insta esclarecer que não há como se confundir a transferência do risco da atividade ao empreendedor com a inversão do ônus probatório. Aquela diz respeito à responsabilidade objetiva ambiental, que elimina o elemento subjetivo (culpa ou dolo) na aferição do dano ambiental, permanecendo, contudo, a cada uma das partes, a incumbência de comprovar os fatos constitutivos (no caso do autor), impeditivos, modificativos e extintivos (por parte do réu) relativos à existência do próprio dano e ao nexo de causalidade entre a conduta e o dano, assim como a própria extensão do dano ou prejuízo. Sendo certo, entretanto, que o princípio da precaução funcionaria, aqui, como mitigador do liame causal.

A técnica de inversão do ônus probatório, por sua vez, não prescinde da demonstração dos seus requisitos legais autorizadores (verossimilhança e/ou hipossuficiência). Assim, numa demanda ambiental, presentes os requisitos, e deferindo-se a inversão do ônus da prova, caberia ao empreendedor comprovar a inexistência do dano ou mesmo ausência do liame causal; não se invertendo o encargo probatório, permanece o ônus de cada parte em comprovar as suas alegações, que, no caso da responsabilidade ambiental objetiva, se cinge à demonstração da ocorrência do dano e do nexo causal entre dano e conduta.

Assim, entendemos que, a princípio, no caso sob análise, somente poderia ser invocado o princípio da precaução como suporte legal à inversão do ônus da prova se houvesse, de fato, hipossuficiência científica da parte autora, ou seja, se não fosse possível à parte autora comprovar suas alegações, em razão da absoluta incerteza científica que pairaria sobre a própria atividade realizada pelo empreendedor, o que não nos parece seja o caso, já que, segundo se apreende dos julgamentos ocorridos no TJRS e no STJ, o dano já seria certo e conhecido, carecendo apenas de demonstração do nexo causal entre a conduta do réu e o prejuízo ocorrido, além da própria extensão desse dano, que seria apurado conforme perícia já requerida pela parte autora.

Seguindo o julgamento, agora tratando da inversão do ônus financeiro, a Exma. Ministra Relatora, apesar de julgar prejudicado esse pedido em razão de o juízo de 1º grau ter tornado sem efeito a decisão que determinou a perícia, assim se manifestou sobre a matéria:

"Por ocasião desse julgado, vários ministros tiveram a chance de proferir voto-vista, sendo que o Ministro Teori Zavascki, não obstante tenha ficado vencido na conclusão de seu voto, teceu importantes considerações sobre a distinção entre ônus da prova e ônus financeiro de adiantar as despesas decorrentes da realização de atos processuais.

Considerando que tais ponderações também são pertinentes à análise da hipótese em comento, transcrevo trecho do referido voto:

‘Por outro lado, não se pode confundir inversão do ônus da prova ( = ônus processual de demonstrar a existência de um fato), com inversão do ônus financeiro de adiantar as despesas decorrentes da realização de atos processuais. Quando a lei atribui a uma das partes o ônus da prova (ou permite a sua inversão), certamente não está determinando que, além desse ônus processual próprio, a parte contrária fique obrigada também a suportar as despesas de realização da prova requerida pela parte adversa (que, se a requereu, é porque tinha o ônus processual de produzi-la).

(...) Ora, não se pode confundir ônus da prova com obrigação pelo pagamento ou adiantamento das despesas do processo. A questão do ônus da prova diz respeito ao julgamento da causa quando os fatos não restaram provados. Todavia, independentemente de quem tenha o ônus de provar este ou aquele fato, a lei processual determina, que "salvo as disposições concernentes à justiça gratuita, cabe às partes prover as despesas dos atos que realizam ou requerem no processo, antecipando-lhes o pagamento desde o início até a sentença final; e bem ainda na execução, até a plena satisfação do direito declarado na sentença" (CPC, art. 19). Determina, outrossim, que "compete ao autor adiantar as despesas relativas a atos cuja realização o juiz determinar de ofício ou a requerimento do Ministério Público" (CPC, art. 19, § 2º). Bem se vê, portanto, que o regime estabelecido no Código é de que o réu somente está obrigado a adiantar as despesas concernentes a atos que ele próprio requerer. Quanto aos demais, mesmo que tenha ou venha a ter o ônus probatório respectivo, o encargo será do autor’.

O eminente Ministro Teori Zavascki deixou claro que o ônus probatório não se confunde com o dever de o Ministério Público arcar com os honorários periciais nas provas por ele requeridas, em ação civil pública. São questões distintas e juridicamente independentes".

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A inversão do ônus financeiro em demandas ambientais como já discorrido anteriormente ainda causa controvérsias e fortes debates.

Apesar de entendermos, de fato, tratarem-se de questões distintas, acreditamos que a inversão do ônus da prova e a inversão do ônus financeiro são matérias que merecem apreciação conjunta.

Segundo o jurista Luiz Antonio Rizzatto Nunes, de todo o conjunto principiológico que rege os direitos transindividuais, dentre os quais se pode destacar o acesso à justiça, a vulnerabilidade e a facilitação de sua defesa em juízo, tem-se que a inversão do ônus da prova deve importar em automática inversão do ônus financeiro: "uma vez determinada a inversão, o ônus da produção da prova tem de ser da parte sobre a qual recai o ônus processual. Caso contrário, estar-se-ia dando com uma mão e tirando com a outra" [26].

Comentando a posição contrária adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, Rizzatto Nunes assim se pronunciou: "Se assim não fosse, instaurar-se-ia uma incrível contradição: o ônus da prova seria do réu, e o ônus econômico seria do autor (consumidor). Como esse não tem poder econômico, não poderia produzir a prova. Nesse caso, sobre qual parte recairia o ônus da não-produção da prova?"

De fato, o impasse é grande. A inversão do ônus probatório sem a inversão do ônus financeiro, em muitos casos, inviabiliza a própria produção da prova, gerando um problema para o juiz no momento da prolação de sua decisão. Em verdade, a inversão de um sem a inversão do outro inviabiliza a efetividade da própria técnica processual prevista no art. 6°, VIII, do CDC.

Contudo, também é certo que não se pode imputar ao réu na demanda todos os custos das provas requeridas pela parte autora, uma vez que não há dispositivo legal para respaldar tal pretensão. Ademais, não se pode pedir ao réu que produza prova contra ele mesmo, ainda mais quando se sabe que, uma vez vencedor na demanda, não será ressarcido do que despendeu no curso do processo, salvo comprovada má-fé da parte autora.

Como se percebe, apesar de serem coisas distintas, a inversão do encargo probatório e a inversão do ônus financeiro estão umbilicalmente intrincadas, uma refletindo na outra de forma sistemática, razão pela qual não entendemos que sejam juridicamente independentes, merecendo do magistrado sempre tratamento conjunto, de forma a não criar contradições processuais.

Para Edis Milaré, em homenagem ao princípio da segurança jurídica e pelo bem do próprio sistema, para que não haja incertezas e lacunas urge, de lege ferenda, que o legislador discipline, de maneira expressa, a distribuição do ônus da prova em matéria ambiental. É isso, aliás, que ensaia o anteprojeto do código de processo coletivo:

Art. 20. Não obtida a conciliação ou quando, por qualquer motivo, não for utilizado outro meio de solução do conflito, o juiz, fundamentadamente:

I - decidirá se o processo tem condições de prosseguir na forma coletiva;

II - poderá separar os pedidos em ações coletivas distintas, voltadas à tutela dos interesses ou direitos difusos e coletivos, de um lado, e dos individuais homogêneos, do outro, desde que a separação represente economia processual ou facilite a condução do processo;

III - fixará os pontos controvertidos, decidirá as questões processuais pendentes e determinará as provas a serem produzidas;

IV - distribuirá a responsabilidade pela produção da prova, levando em conta os conhecimentos técnicos ou informações específicas sobre os fatos detidos pelas partes ou segundo a maior facilidade em sua demonstração;

V - poderá ainda distribuir essa responsabilidade segundo os critérios previamente ajustados pelas partes, desde que esse acordo não torne excessivamente difícil a defesa do direito de uma delas;

VI - poderá, a todo momento, rever o critério de distribuição da responsabilidade da produção da prova, diante de fatos novos, observado o contraditório e a ampla defesa;

VII - esclarecerá as partes sobre a distribuição do ônus da prova; e

VIII - poderá determinar de ofício a produção de provas, observado o contraditório.

Art. 21. Em sendo necessária a realização de prova pericial requerida pelo legitimado ou determinada de ofício, o juiz nomeará perito.

Parágrafo único. Não havendo servidor do Poder Judiciário apto a desempenhar a função pericial, competirá a este Poder remunerar o trabalho do perito, após a devida requisição judicial.

Segundo Milaré [27], essa proposta parece atender aos mais legítimos anseios da sociedade. O equilíbrio do anteprojeto estaria justamente no fato de que ele não proíbe, nem impõe, como regra absoluta e imutável, a inversão do ônus da prova nas ações coletivas. Não haveria uma regra estanque, mas sim dinâmica:

"A distribuição do ônus da prova como se observa fica entregue à casuística, ao entendimento de que o encargo probatório deve recair sobre aquele que detém maior facilidade em sua produção. O bem senso e o princípio da economia processual estão a recomendar que a prova deva incumbir à parte que, de acordo com as peculiaridades do caso concreto, esteja em melhores condições de produzi-la".

De fato, diante de tantas controvérsias sobre a matéria, seria providencial a edição de uma norma que tratasse especificamente da distribuição do ônus da prova em demandas ambientais, orientada pela teoria dinâmica do ônus probatório, segundo a qual a maneira mais acertada e justa de provar o direito alegado pela parte seria atribuir o ônus da prova não a quem alega, mas a quem tem melhor condições de produzi-la de acordo com o caso concreto.

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Sobre a autora
Laura Lícia de Mendonça Vicente

Advogada. Mestranda em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP. Especialista em Direito Ambiental pela PUC/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VICENTE, Laura Lícia Mendonça. A inversão do encargo probatório e do ônus financeiro em demandas ambientais.: Análise crítica do acórdão proferido no REsp 972.902/RS. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2845, 16 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18919. Acesso em: 10 mai. 2024.

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