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Direito à saúde: cidadania constitucional e reação judicial

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11/06/2011 às 07:41
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5. INCURSÃO CONSTITUCIONAL E A FICÇÃO DA INSIDICABILIDADE JUDICIAL DOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL

Diante de uma sociedade complexa e de textos constitucionais gerais fica difícil marginalizar princípios e afastar valores da interpretação constitucional. Dentro dessa perspectiva, faremos um breve passeio sobre o direito à saúde na Constituição Federal.

O art. 198 ao falar do sistema único de saúde estabelece diretrizes a serem seguidas, dentre elas: II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade.

Veja que a Constituição intentou ver a comunidade participando da construção das diretrizes propostas pelo sistema único de saúde. O Governo Federal, inclusive, tem rubrica própria para repasses de recursos públicos aos municípios e estados com a taxativa finalidade de "Ampliação e Fortalecimento da Participação e Mobilização Social em Defesa do SUS".

Quando a comunidade aciona o Judiciário ou quando participa de uma audiência pública sobre saúde no STF, sem dúvida, ela está contribuindo com as diretrizes a serem estabelecidas pelo Sistema Único de Saúde. A visão não pode ser limitada. Não é possível supor que a única maneira de participação da comunidade nesta discussão seja sentada num auditório do Ministério da Saúde ou de algum conselho voltado para tais discussões dentro do Poder Executivo.

O Preâmbulo institui um Estado Democrático no Brasil destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e o bem-estar como valores supremos de uma sociedade fraterna. Dentre os objetivos fundamentais da República temos, segundo os incisos I e IV do art. 3º, construir uma sociedade justa e solidária e promover o bem de todos.

A Constituição Federal brasileira estabeleceu os fundamentos da República e trouxe à tona a necessidade de exercício da cidadania. Como se sabe, cidadania não é somente votar e ser votado. Não se cuida do mero exercício da capacidade eleitoral ativa e passiva. Cidadania, nos dias de hoje, ultrapassa esta visão. A partir do momento em que doentes ou responsáveis por doentes buscam o Poder Judiciário na tentativa de verem concretizados direitos constitucionais, o que se tem é o mais pleno exercício de cidadania. Mormente quando o inciso XXXV do art. 5º afirma que a lei não excluirá da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito.

O direito à saúde muitas vezes se revela como uma faceta do direito à vida e, como se sabe, o caput do art. 5º garante aos brasileiros a inviolabilidade do direito à vida. O gerenciamento caótico das políticas públicas no Brasil afronta o inciso III do mesmo artigo 5º que diz que ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento desumano ou degradante.

Um argumento que sempre vem á tona quando se debate concretização judicial do direito à saúde e que merece enfrentamento diz respeito à suposta impossibilidade de se judicializar direitos sociais. Esse ponto é tão repetido que já virou um mantra. Vale à pena conhecer a decisão da Corte Constitucional da África do Sul no caso The Government of The Republic of South Africa versus Irene Grootboom (4.10.2000).

O debate girou em torno da concretização da Seção 26 da Constituição sul africana que tratava de moradia e que trazia o seguinte enunciado: "todos têm o direito ao acesso a moradia adequada e o Estado deve tomar razoáveis medidas legislativas e outras, dentro dos recursos disponíveis para alcançar a realização progressiva desse direito". Também abordava a Seção 28 que dispunha: "cada criança tem direito a (...) nutrição básica, abrigo, assistência médica básica e serviços sociais" [50].

A Corte afastou a questão da justiciabilidade ou não dos direitos sociais. Para ela: "a questão é, portanto, não se os direitos sócios-econômicos são justiciáveis, mas como efetivá-los no caso concreto" [51]. A conclusão, aparentemente simples, parece ir exatamente na ferida. Como tornar real tal direito?

A Constituição da Índia, no seu art. 37, ao falar de direitos sociais, diz-se que "as disposições contidas nesta Parte não devem ser efetivadas por nenhuma Corte, mas os princípios aqui estabelecidos são, entretanto, fundamentais para o governo do país e deve ser um dever do Estado aplicar esses princípios ao elaborar as leis" [52].

No caso indiano o constituinte estabeleceu previsão expressa acerca do conteúdo meramente programático dos direitos sociais, não só endereçando-os exclusivamente ao governo do país, mas vedando, taxativamente, a inserção do Poder Judiciário nas discussões relativas à concretização do direito à saúde.

Não foi o que aconteceu no Brasil. Aqui, o direito à saúde surgiu como um dever do Estado e, noutro dispositivo, deu-se ao Judiciário a guarda da Constituição. Não há limitações constitucionais quanto ao exercício da cidadania numa tentativa de, por meio da mobilização social, estabelecer uma cultura de exigibilidade de direitos.

E não é só a Constituição da Índia que traz dispositivo afastando o Poder Judiciário do debate acerca da concretização de direitos sociais.

A Constituição Irlandesa de 1937, no art. 45, voltado aos direitos sociais, diz que "os princípios de política social pretendem ser para a orientação geral do Oireachtas [Legislativo Irlandês]. A aplicação desses princípios na elaboração das leis deve ser tarefa do Oireachtas exclusivamente, e não deve ser cogniscível por nenhuma Corte sob qualquer das disposições desta Constituição" [53]. Percebam que nesse país o Judiciário se afasta do debate da saúde em razão de uma imposição constitucional.

O art. 101 da Constituição da Naníbia diz que "os princípios da política de estado contidos neste Capítulo não devem ser, por si sós, exigíveis legalmente por qualquer Corte, mas deve, entretanto, guiar o governo na elaboração e aplicação das leis para dar eficácia aos objetivos fundamentais dos referidos princípios" [54].

Como se vê, o direito comparado nos mostra que o constituinte brasileiro, mesmo tendo podido afastar o Judiciário do debate acerca da concretização da saúde, não o fez. Não é possível que isso tenha sido à toa.

No Brasil, parece superado o argumento segundo o qual a é vedada a sindicabilidade das políticas públicas pela jurisdição constitucional. O STF pacificou posição a respeito. Interessante questão surgiu quando do julgamento de Ação ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores – PT, pelo Partido Comunista do Brasil – PC do B e pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT. [55]

Os partidos apontavam inércia do Presidente da República em envidar esforços no sentido de erradicar o analfabetismo no Brasil, em afronta ao disposto nos arts. 6º, 23, V, 208, I, e 214, I, da Constituição Federal. [56]

O STF definiu, nesse caso, que não haveria como se afirmar ter havido inércia do Presidente da República, nada obstante a Corte tenha reconhecido que o Brasil ainda tem muito a fazer em termos de compromisso constitucionalmente imposto de erradicar o analfabetismo, até mesmo para que os direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana, a sua liberdade, a igualdade de oportunidades possam ser efetivados.


6. O MUNDO REAL ESCONDIDO PELO ESOTERISMO TEÓRICO

Esse texto é voltado para o mundo real. O marco teórico, como veremos, é a prática. É que, como o jurista norte-americano, Richard Posner diz, "os casos difíceis existem não no nível do princípio, mas no da aplicação" [57].

É importante que acabemos com esse mito de que direito e formulação de políticas públicas são como água e óleo. Não há como enxergar separação em algo que não está, e nem poderia estar, separado. Também parece superada a tentativa de conferir natureza sacrossanta ao processo de formulação de políticas públicas. No Estado Constitucional, tudo está sujeito ao controle da jurisdição constitucional.

Nesse sentido é que Duncan Kennedy questiona, há décadas, a postura de se tentar separar o direito da análise de políticas públicas. Segundo o filósofo americano:

Os professores ensinam absurdos quando convencem os alunos de que o raciocínio jurídico é diferente, enquanto método de se obter resultados corretos, do discurso ético e político em geral (isto é, da análise de políticas públicas). É verdade que os advogados dispõem de técnicas argumentativas especiais para descobrir lacunas, conflitos e ambiguidades nas regras, para questionar decisões judiciais amplas e limitadas, e para produzir argumentos sobre políticas públicas favoráveis e contrários. Contudo, trata-se aqui apenas de técnicas argumentativas. Não existe nunca uma ‘solução jurídica correta’ que não seja outra senão a solução ética e politicamente correta de um determinado problema jurídico. Em outras palavras, tudo que é ensinado, com exceção das regras formais em si e das técnicas argumentativas para manipulá-las, é formulação de políticas públicas e nada mais. Segue-se que é artificial a distinção feita em sala de aula entre o caso jurídico não problemático e o caso que se volta para preocupações com políticas públicas; cada um poderia muito bem ser ensinado da maneira contrária [58].

A prática desconstrói clichês acadêmicos. Nisso, Richard Posner é bom. Sobre Jürgen Habermas, por exemplo, Posner informa que ele foi "membro da Juventude Hitlerista" [59].

Posner é pragmático. Segundo ele, "os pragmatistas cotidianos tendem a ser ‘secos’, do tipo que não admitem baboseiras" [60]. O jurista norte-americano é franco quando fala sobre Ronald Dworkin, Jürgen Habermas e H.L.A. Hart. Ele diz que "escritores influentes que tratam de jurisprudência, tais como H.L.A. Hart, Ronald Dworkin e Jürgen Habermas, dão a entender que descrevem o direito em abstrato, mas Hart está na verdade falando do sistema jurídico inglês, Dworkin, do americano e Habermas, do alemão" [61].

Enquanto nos deparamos com discussões místicas, quando falamos do direito à saúde, Posner aconselha: "não podemos ser otimistas sobre nossas habilidades para descobrir entidades metafísicas, se é que elas existem (o que não podemos saber)" [62]. É que, para Posner, "a razão é prática" [63].

O debate acerca do exercício de cidadania demonstrado com a tentativa popular de obter, com a atuação do Poder Judiciário, a concretização do direito constitucional à saúde se dá, quase sempre, por meio da apresentação de números ou de repetições de argumentos antigos.

Há ainda outro ponto que merece atenção. É que, muitas vezes, afirma-se que a formulação das políticas públicas brasileiras decorre de um equilibrado processo dialético que contempla os agentes do Estado e a sociedade, muitas vezes dentro de conselhos ou comissões ligadas ao Poder Executivo.

Todavia, nem sempre a estruturação de órgãos voltados à implementação de políticas públicas é algo efetivo. Alexandre Ciconello, advogado, assessor de direitos humanos do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e mestre em ciência política, em tom realista destaca os desafios que ainda enfrentaremos para tornar efetivos tais órgãos. Para ele, as etapas a serem percorridas são:

(i) a resistência de diversos setores do poder público em efetivamente compartilhar o poder com organizações da sociedade; (ii) a grande distância que subsiste entre os resultados formais e reais da participação. Até o momento as conquistas se deram no plano da legalidade; agora é preciso efetivar os direitos, garantindo a todos o seu acesso; (iii) a fragilidade das organizações da sociedade civil tanto do ponto de vista financeiro como político; (iv) a dificuldade de estender a participação social para o campo da política econômica [64].

Ciconello não encampa visão fantasiosa acerca da formatação das políticas públicas por parte do Estado. Nesse ponto, ele arremata: "a permanência de relações de poder desiguais e a fragilidade do Estado brasileiro não permitem a sua efetivação. Esse é um novo desafio da participação social: consolidar uma institucionalização de exigibilidade dos direitos" [65].

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É recorrente o argumento segundo o qual o Executivo é absoluto em relação ao processo de formulação de políticas públicas, uma vez que conta com todo um aparato voltado exclusivamente a esta missão, fato não verificado no Judiciário.

Não seria surpresa o argumento acima frisar a existência de conselhos dedicados à discussão, elaboração e formulação das políticas públicas de saúde. Eis o mantra. Vejamos o que acontece no mundo real.

O Tribunal de Contas da União (TCU) fez uma auditoria na Secretaria de Saúde do Tocantins. O Tribunal de Contas do Estado havia solicitado a cooperação do TCU para o trabalho, com "a finalidade de apurar possíveis irregularidades na aplicação de recursos públicos na área da saúde, tendo em vista a situação caótica que se instalara na Secretaria de Saúde, ocasionando até o desabastecimento de medicamentos na rede hospitalar estadual" [66].

Após identificarem um sem número de irregularidades, os técnicos do TCU fizeram questão de anotar o seguinte acerca da atuação dos conselhos internos da Secretaria de Saúde na formulação das políticas públicas:

Todos os problemas verificados foram corroborados pela pouca atuação do Conselho Estadual de Saúde de Tocantins, órgão de controle social que, no Estado, conforme se observou, goza de pouca independência, haja vista a sua presidência ser exercida, de forma nata, pelo próprio Secretário de Saúde, que, paradoxalmente, deveria ter a sua atuação fiscalizada e controlada pelo referido Conselho. Ou seja, a situação em Tocantins caracteriza-se naquela em que a figura do gestor e a do controlador da gestão se confundem, em detrimento do princípio constitucional da moralidade [67].

Eis o mundo real. Daí a necessidade de institucionalizar a exigibilidade de direitos, que pode ser feito aliando o Judiciário à uma ampla mobilização popular.

Dificilmente se vê quem está por trás do debate acerca da concretização do direito à saúde. É preciso que voltemos a nossa atenção para as vidas que movimentam a engrenagem do Judiciário em decorrência da omissão estatal em lhe prestar serviço de saúde.

Basta ler passagem do professor Virgílio Afonso da Silva para perceber que a estrutura desenvolvida neste texto já nasce engatinhando em direção às críticas. Para o Professor Virgílio "embora muitos autores façam um grande esforço para demonstrar ‘histórias de sucesso’ na efetivação de direitos sociais por meio do Judiciário, parece-me que tais histórias são superestimadas, da mesma forma que o é o papel que o Judiciário desempenha nessa área" [68].

Portanto, sabemos que não passará sem críticas a tentativa de demonstrar que a jurisdição é parte fundamental para a concretização do direito à saúde. Isso porque, o fazemos discorrendo sobre caso concreto tido como comprovador do acerto da utilização da jurisdição constitucional como instrumento de fortificação da cidadania e do estabelecimento de uma cultura de mobilização social e exigibilidade de direitos.

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Sobre o autor
Saul Tourinho Leal

Professor de Direito Constitucional do Intituto de Ensino Superior de Brasília (IESB). Mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEAL, Saul Tourinho. Direito à saúde: cidadania constitucional e reação judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2901, 11 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19319. Acesso em: 5 nov. 2024.

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