CONCLUSÃO
As políticas públicas formuladas pelos gestores da saúde são parâmetros normativos que devem ser observados pelos magistrados, pois, além de representarem normas jurídicas, são a expressão das escolhas sociais e políticas que dão densidade ao direito à saúde previsto na Constituição. Dessa forma, o Judiciário deve oferecer aos cidadãos procedimentos para que possam questionar a legitimidade, eficácia e atualidade das políticas públicas de saúde quando não forem suficientes as demais formas de participação e controle sociais.
No contexto brasileiro, no qual é impossível dar atendimento ilimitado a todos, o princípio da equidade exige que os recursos escassos sejam distribuídos de modo a priorizar a redução ou eliminação de diferenças entre indivíduos que advêm de fatores evitáveis e injustos.
Muitas vezes a dramaticidade das decisões sobre as prestações de saúde colocam os juízes numa posição em que a improcedência do pedido do autor simplesmente não é concebida como uma opção. Ao invés de uma massa de indivíduos não identificados sem acesso a recursos que lhe são necessários, pessoas cujos nomes se tornaram conhecidos serão declaradas inelegíveis para um tratamento ou serviços de que necessitam.
Essas “escolhas trágicas”, como são denominadas pela doutrina, são realizadas mediante uma combinação de princípios distributivos nem sempre coerentes, implementados por mecanismos institucionais envolvendo atores políticos e técnicos, pressionados por indivíduos potencialmente beneficiários e pela opinião pública.
É importante questionar os motivos de termos chegado a essa situação. Por que a sequência dos fatos colocou nas mãos dos magistrados a função de decidir entre a vida e a morte, entre a saúde e a doença? A sociedade deve assumir a responsabilidade por suas escolhas, até aquelas mais difíceis, como os casos que envolvem o direito à saúde. A partir do momento que fizermos essas escolhas, os magistrados terão critérios mais claros para agir e poderão compartilhar com a sociedade a responsabilidade por essas decisões. Daí será mais legítimo de nossa parte, cidadãos, cobrar de nossos magistrados que, diante do caso concreto, sigam o caminho “que parecer-lhe a direção certa em matéria de princípios políticos, e não uma atração passageira, por proporcionar uma decisão atraente no caso presente.”[23]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Notas
[1] Ocorre que o utilitarismo teve um importante papel na concretização da noção ampla de saúde, notadamente na constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 1946, que dispõe que “saúde é um estado de completo bem estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença ou enfermidade.”
[2] O próprio fundamento das políticas públicas, segundo Maria Paula Dallari Bucci, é a existência dos direitos sociais, que se concretizam através de prestações positivas do Estado, e o conceito de desenvolvimento nacional, que é a principal política pública, conformando e harmonizando todas as demais. (BUCCI, Maria Paula Dallari. As Políticas Públicas e o Direito Administrativo. Revista Trimestral de Direito Público n° 13, p. 135).
[3] BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 58.
[4] Ibid, p. 41.
[5] NEVES, Marcelo. Constitucionalização Simbólica e Desconstitucionalização Fática: Mudança simbólica da Constituição e permanência das estruturas reais de Poder. Revista Trimestral de Direito Público n° 12, p. 158.
[6] A doutrina aponta três problemas referentes à concepção de direitos humanos. Em primeiro lugar, a crítica da legitimidade constata que a doutrina dos direitos humanos confunde consequências dos sistemas legais, que conferem às pessoas direitos bem definidos, com princípios pré-legais, que não podem realmente dar a uma pessoa um direito juridicamente exigível. Nesse sentido indaga-se, “como os direitos humanos podem ter qualquer status real, exceto por meio de pretensões que sejam sancionadas pelo Estado, como a suprema autoridade legal?”. A segunda crítica, a chamada crítica da coerência, relaciona-se à necessidade de deveres correlatos para que os direitos humanos sejam considerados como direitos propriamente ditos. Por fim, a crítica cultural analisa os direitos humanos como pertencentes ao domínio da ética social. Assim, a contestação do alcance dos direitos humanos geralmente provém dessas críticas culturais, uma vez que se argumenta que não existem valores universais, reconhecidos por qualquer sociedade. (SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. Editora Companhia das Letras, 2008, p. 262-263).
[7] MORAIS, Jose Luis Bolzan de; NASCIMENTO, Valéria Ribas do. O direito à saúde e os limites do Estado Social: medicamentos, políticas públicas e judicialização. Revista Semestral do Curso de Pós-Graduação stricto sensu em ciência jurídica da Univali. Vol 12, nº 2, jul/dez 2007, p. 251.
[8] O movimento sanitarista surgiu na Itália, rompendo com o sistema mutualista até então vigente, e instituiu a saúde como um direito propriamente dito. Ele propunha a democratização das relações entre a sociedade e o sistema de saúde, como posição política aglutinadora. Defendia, outrossim, quatro pontos doutrinários centrais: “i) concepção de saúde como direito universal de cidadania; ii) a compreensão da determinação da saúde e doença pelas relações econômicas e sociais prevalentes; iii) a responsabilidade do Estado na garantia do direito e a necessidade de criar um sistema público unificado de saúde e de livre acesso a toda a população, superando a antiga dicotomia organizacional e de usuários que adivinha da existência separada dos serviços de saúde pública e do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS); e iv) a participação e o controle direto, isto é, o controle social deste sistema unificado por representantes da população e das entidades civis da sociedade.” (PÍOLA, Sérgio Francisco; BARROS, Elisabeth Diniz; NOGUEIRA, Roberto Passos; SERVO, Luciana Mendes; SÁ, Edvaldo Batista de; PAIVA, Andrea Barreto. op. cit., p. 107).
[9] “Dessa forma, parcelas da população brasileira dispõem atualmente de diferentes vias de acesso a serviços de assistência médica, decorrentes de composições distintas no financiamento, cujos contrastes espelham as mesmas profundas desigualdades que se fazem presentes em inúmeros outros âmbitos da vida social. As duas formas predominantes de acesso colocam, de um lado, os que possuem planos ou seguros privados de saúde, aos quais está garantido igualmente o acesso aos serviços do SUS, e, de outro lado, os que têm acesso exclusivamente aos serviços prestados pelos estabelecimentos e profissionais do SUS (...) Essa situação de iniquidade social – expressa por condições diferenciadas de atendimento lastreadas em recursos públicos – poderia ser ainda mais agravada se houvesse uma completa separação entre as duas vias de acesso a serviços de saúde, fazendo que o SUS fosse destinado apenas à população carente. Um sistema focalizado nos indivíduos de mais baixa renda tenderia a ser ainda mais frágil, politicamente, nas disputas orçamentárias. Mas o pior efeito adverso dessa opção de separação formal das duas clientelas seria a criação de um sistema pobre para os pobres, na contramão dos sistemas universais de saúde que deram certo em outros países.” (PÍOLA, Sérgio Francisco; BARROS, Elisabeth Diniz; NOGUEIRA, Roberto Passos; SERVO, Luciana Mendes; SÁ, Edvaldo Batista de; PAIVA, Andrea Barreto. op. cit., p. 159).
[10] Dworkin sugere o ideal do seguro prudente. Esse ideal traz uma interessante hipótese em que “a distribuição justa é aquela que as pessoas bem-informadas criam para si por meio de escolhas individuais, contanto que o sistema econômico e a distribuição da riqueza na comunidade na qual essas escolhas são feitas sejam também justos”. Segundo o autor, nessas condições ideais, o que a sociedade gastaria com assistência médica é exatamente a quantia moralmente adequada, e a distribuição de recursos seria justa para tal sociedade, hipótese em que a justiça não exigiria assistência médica a quem não a comprou (DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 440).
[11] Nesse sentido, o autor assevera que a validade de uma política pública não deve ser confundida com a validade das normas jurídicas que a compõem. Para isso, ele esclarece que “uma lei, editada no quadro de determinada política pública, por exemplo, pode ser inconstitucional, sem que esta última o seja. Inversamente, determinada política governamental, em razão de sua finalidade, pode ser julgada incompatível com os objetivos constitucionais que vinculam a ação do Estado, sem que nenhum dos atos administrativos praticados, ou nenhuma das normas que a regem, sejam, em si mesmos, inconstitucionais.” (COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de Políticas Públicas. Revista de Informação Legislativa n° 138, p. 45).
[12] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Almedina, 2001, p. 832-833.
[13] O autor Ingo Sarlet defende a intervenção judicial nos casos da ausência de concretização legislativa das normas constitucionais de baixa densidade normativa, desde que sejam observados alguns limites, tais como a reserva do possível, a falta de legitimação dos tribunais para a implementação de determinados programas socioeconômicos, bem como a colisão com outros direitos fundamentais (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 268-269).
[14] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 508.
[15] AGRRE 271286/RS. Relator Min. Celso de Mello. DJU 24.11.2000.
[16] CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Um olhar crítico-deliberativo sobre os direitos sociais no Estado Democrático de Direito. In: NETO, Cláudio de Souza; SARMENTO, Daniel (coord.). Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 127.
[17] HOLMES, Stephen and SUSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York: Norton & Co., 1999, p. 94.
[18] Ao constatar o aumento progressivo das necessidades humanas no âmbito da saúde e a inexistência do aumento correspondente dos recursos orçamentários, Dworkin aponta o surgimento de novas tecnologias e tratamentos como principal fator do aumento dos gastos com saúde nos Estados Unidos. Nesse sentido, conclui que: “os Estados Unidos não estão pagando muito mais pela medicina pela qual pagavam menos anteriormente; pelo contrário, agora têm muito mais tratamentos médicos para pagar.” Esse argumento pode ser utilizado igualmente no contexto brasileiro. DWORKIN, Ronald. op. cit., p. 433).
[19] KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 9ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 45.
[20] BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamento e parâmetros para a atuação judicial. In: NETO, Cláudio de Souza; SARMENTO, Daniel (coord.). Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 876.
[21] Além da autoridade do saber médico que, por si só, desestimula qualquer diálogo ou contestação, a formação dos magistrados desestimula qualquer inclinação para o debate com outros saberes. Confunde-se a ideia de independência funcional com autossuficiência, conforme bem registra Boaventura de Sousa Santos: “(...) Finalmente, a última característica da cultura jurídica dominante é confundir independência com individualismo autossuficiente. Significa, basicamente, uma aversão enorme ao trabalho de equipe; uma ausência de gestão por objetivos no tribunal; uma oposição militante à colaboração interdisciplinar; e uma ideia de autossuficiência que não permite aprender com outros saberes.” (SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo, 2007, p.70).
[22] A necessidade de fazer dialogar o conhecimento técnico e as “pessoas comuns” é uma preocupação de Mangabeira Unger e um dos fundamentos da sua proposta ao experimentalismo democrático. Em relação ao tema, destaco trecho representativo do pensamento do referido autor: “ Para adquirirmos a liberdade de criar futuros alternativos para a sociedade com clareza e ponderação, devemos ser capazes de imaginá-los e discuti-los. Para que os imaginemos e discutamos eficazmente, devemos adentrar áreas especializadas do pensamento e da prática. Devemos transformar essas especialidades por dentro, modificando a sua relação com o debate público numa democracia. Devemos convencer os especialistas a renunciar a parte da autoridade superior que eles nunca propriamente possuíram, trocando essa falsa autoridade por um novo estilo de colaboração entre especialistas técnicos e pessoas comuns.” (UNGER, Mangabeira. O direito e o futuro da democracia. São Paulo, Boitempo, 2004, p. 9).
[23] DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 150.