INTRODUÇÃO
Neste texto, analisaremos a Resolução nº 11/2006 do CNJ à luz da nossa Carta Magna, focalizando alguns de seus aspectos, os quais nos permitirão aferir se ela foi produzida de forma a atender preceitos constitucionais.
Num primeiro momento, investigaremos se o Conselho Nacional de Justiça, no uso de seu poder regulamentar, teria competência para regular a aplicação de dispositivo constitucional, especificamente o artigo 93, I, da Constituição Federal, o qual exige 03 (três) anos de atividade jurídica para ingresso da magistratura.
Em seguida, examinaremos alguns pontos do conteúdo da Resolução nº 11/2006, identificando os princípios constitucionais que deverão ser obedecidos quando da regulamentação do artigo 93, I, da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 45/2004.
Por fim, traremos à tona entendimentos jurisprudenciais relacionados ao tema, os quais revelarão como a exigência do triênio de atividade jurídica está sendo tratada nos tribunais brasileiros.
1 Necessidade de regulamentação da atividade jurídica
A Emenda Constitucional (EC) nº 45 publicada em 31 de dezembro de 2004, que trata da Reforma do Judiciário, além de instituir o Conselho Nacional de Justiça, inovou também com relação ao ingresso na carreira da magistratura nacional, exigindo do candidato três anos de atividade jurídica, conforme dita o artigo 93, I, da CF (grifo nosso), in verbis:
Art. 93 Lei Complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
I. ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, 3 (três) anos de atividade jurídica e obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação;[...].
Ao modificar o referido artigo, inserindo mais um requisito para ingresso na carreira da magistratura, quiseram os parlamentares instituir um espaço mínimo de tempo, no qual o candidato pudesse adquirir maturidade técnica e prática necessária para enfrentar as difíceis atribuições da função de magistrado, cujo grau de responsabilidade é deveras alto.
Porém, não obstante a referida norma constitucional ter reclamado o mínimo de 3 (três) anos de atividade jurídica, fê-lo de forma bem genérica, não especificando o alcance dessa expressão e, em conseqüência, o que poderia ser considerado como atividade jurídica.
Essa imprecisão conceitual indica a necessidade de exame particularizado quanto à auto-aplicabilidade ou não da disposição constitucional, sendo de salutar importância observar o que dispõe Silva (2003, p. 81-82):
Temos que partir, aqui, daquela premissa já tantas vezes enunciada: não há norma constitucional alguma destituída de eficácia. Todas elas irradiam efeitos jurídicos, importando sempre uma inovação da ordem jurídica preexistente à entrada em vigor da constituição a que aderem e a nova ordenação instaurada. O que se pode admitir é que a eficácia de certas normas constitucionais não se manifesta na plenitude dos efeitos jurídicos pretendidos pelo constituinte enquanto não se emitir uma normação jurídica ordinária ou complementar executória, prevista ou requerida.
O caput do citado artigo já é bastante indicativo da necessidade de uma posterior regulamentação infraconstitucional do requisito em apreço e, mesmo se assim não fosse, ficaria difícil emprestar-lhe auto-aplicabilidade, em virtude de notórios obstáculos quanto à definição dessa expressão, o que dificulta, senão impossibilita, que a norma que a preceitua tenha eficácia e produza seus efeitos no mundo jurídico, pois identificar quais experiências estão aptas a compor o conceito de atividade jurídica torna-se imprescindível para a seleção dos novos juízes.
Neste caso, estamos diante de uma norma de eficácia limitada, ou seja, para que a regra do artigo 93, I, da CF, seja aplicada, faz-se necessária uma regulamentação que possa explicitar o seu conteúdo. Não é, portanto, auto-aplicável. Silva (2003, p. 90), responsável por essa classificação das normas constitucionais, esclarece que as normas de eficácia limitada “são aquelas que apresentam aplicabilidade indireta, mediata e reduzida, porque somente incidem totalmente sobre esses interesses, após uma normatividade ulterior que lhes devolva a aplicabilidade”.
Inegável é a necessidade de regulamentação que pode ser feita por Lei Complementar ou por Lei Ordinária. Tanto é verdade que o próprio dispositivo constitucional em comento impõe que Lei Complementar disponha sobre o Estatuto da Magistratura, o qual trará como uma das diretrizes a exigência de 3 (três) anos de atividade jurídica para aquele que almeja o cargo de magistrado. Ademais, a leitura do artigo 7º da EC 45/2004 também demonstra que é indispensável uma posterior normatividade que venha regular as matérias nela tratadas, então observemos:
Art.7º O Congresso Nacional instalará, imediatamente após a promulgação desta Emenda Constitucional, comissão especial mista, destinada a elaborar, em cento e oitenta dias, os projetos de lei necessários à regulamentação da matéria nela tratada, bem como promover alterações na legislação federal objetivando tornar mais amplo o acesso à justiça e mais célere a prestação jurisdicional.
Além disso, não se pode deixar de trazer à tona que, após o advento da EC 45/2004, diversos foram os tribunais que, diante da indeterminação da expressão “atividade jurídica”, regulamentaram-na por conta própria, inserindo nos seus editais definições divergentes umas das outras, posto que, para determinados tribunais o conceito de atividade jurídica era de ampla abrangência, enquanto que, para outros, o entendimento era de que a conceituação deveria ser mais restrita. Cada tribunal, então, impôs a sua particular interpretação da nova redação do artigo 93, I, da CF, fato que nos traz mais certeza ainda quanto à obrigação de criar-se uma norma, no caso lei complementar, que resolva essa instabilidade conceitual.
1.1 O CNJ e a Resolução nº 11/2006
Em face das interpretações divergentes de vários tribunais e da evidente necessidade de explicitar o alcance da sobredita norma constitucional (art. 93, I, CF), o Conselho Nacional de Justiça, objetivando eliminar qualquer controvérsia a respeito da conceituação e abrangência do termo “atividade jurídica”, emitiu a Resolução nº 11/2006, publicada no dia 03/02/2006, a qual regulamenta o critério de atividade jurídica para a inscrição em concurso público de ingresso na carreira da magistratura nacional.
Decerto a intenção do CNJ foi a melhor possível, porém o Conselho foi infeliz ao editar uma norma que regula um dispositivo constitucional, visto que tal medida feriu o princípio da reserva de lei, na medida em que o caput do art. 93, da CF ordena com clarividência que a exigência do triênio de atividade jurídica deverá ser regulamentada por lei complementar, esta entendida como uma espécie normativa que tem o objetivo de tratar de matéria taxativamente prevista na Constituição Federal. Trata-se, no caso, de reserva de lei absoluta, pois a norma constitucional determinou que a disposição da matéria deveria ser feita por uma lei formal, especificamente por lei complementar.
Dessa forma, o Conselho Nacional de Justiça, utilizando-se do poder de expedir atos regulamentares, apoderou-se da função de legislar, função precípua do Poder Legislativo, e emitiu uma resolução em substituição à lei complementar, quando somente esta poderia suprir a indeterminação da expressão “atividade jurídica”. O CNJ exerceu indevidamente a função de regulamentar norma constitucional, pois o artigo 59, II, da CF determina que cabe privativamente ao Poder Legislativo editar leis complementares, as quais demandam ainda para sua aprovação um quorum especial de maioria absoluta dos votos dos membros de cada Casa do Congresso Nacional. O Conselho então desrespeitou o princípio da separação dos poderes, pois não tinha competência para regular dispositivo da Constituição.
Além do mais, o CNJ, concebido pela Carta Magna como órgão administrativo, recebeu desta a competência para expedir atos regulamentares que se destinam a “fixar diretrizes para execução dos seus próprios atos, praticados nos limites de seus poderes constitucionais, como consta, aliás, do art.103-B, § 4º, I, onde se lê: ‘no âmbito de sua competência’” (ADI 3367/DF, Min. Rel. Cezar Peluso, DJ 17/03/2006).
É de se notar que esses atos são de natureza meramente administrativa e, por conseguinte, dedicam-se a disciplinar somente situações que venham a surgir durante a atividade de judicatura. Não constituem uma disposição de caráter geral e abstrato, como se verifica na lei formal, pois somente esta pode criar direitos e obrigações e imiscuir-se (especialmente no que tange a restrições) na esfera dos direitos e garantias individuais ou coletivas.
Portanto, inquestionável é a incompetência do CNJ para dispor sobre o conceito de atividade jurídica, tendo em vista que a determinação da abrangência dessa expressão influirá em comportamentos futuros, restringindo o acesso de bacharéis em Direito recém-formados à carreira da magistratura.
Como foi exposto no tópico anterior, diante da insuficiência da norma constitucional e das discrepâncias entre as regras dos editais de todo o país, o Conselho Nacional de Justiça emitiu a Resolução nº 11/2006, regulamentando o critério de atividade jurídica, porém o fez extrapolando a competência que lhe foi conferida pela Constituição Federal e também tratando indevidamente de matéria reservada à lei complementar.
O principal argumento utilizado pelo Conselho para edição dessa Resolução foi “a interpretação extraída dos anais do Congresso Nacional quando da discussão da matéria” ( Resolução nº 11/2006, do CNJ). Ou seja, os Conselheiros, visando estabelecer regras e critérios gerais e uniformes, enquanto não fosse editado o Estatuto da Magistratura, recorreram à interpretação da vontade do legislador (mens legislatoris) e regularam a norma do artigo 93, I, da CF.
No entanto, os tribunais pátrios têm entendido que não se deve buscar o sentido da norma na interpretação da vontade do legislador, mas sim na intenção direta do texto da lei (mens legis), pois a jurisprudência entende ser difícil determinar a intenção de todos os parlamentares, de modo a delimitar o motivo da edição da lei. Além disso, impossível é saber se todos os legisladores que a aprovaram, ou mesmo se a maioria deles, fizeram-no comungando o mesmo fim do idealizador do projeto.
Então, para assegurar a segurança jurídica, os tribunais vêm decidindo pela observância à interpretação do texto da lei. É o que se depreende da decisão do STF (RE 20210, Min. Relator Orosimbo Nonato, DJ 23/08/1956, grifo original), cuja ementa é:
Individuação da coisa. Interpretação. Mens legis e mens legislatoris. Decreto 21.341 de 2 de maio de 1932. Art. 18 das Disposições Transitórias da Constituição de 1934. Reivindicação. Individuação da Coisa Reivindicanda. Interpretação pela mens legis e não pela mens legislatoris. Descabimento do apelo.
O fato do CNJ examinar a intenção dos legisladores para interpretar o artigo 93, I, da CF e, em seguida, emitir um ato normativo, nos moldes da Resolução nº 11/2006, faz com que percebamos que o Conselho introduziu novas regras no ordenamento jurídico, função que só compete ao Legislativo. Isso porque não se admite a busca pelos anais do Congresso Nacional para se conceber uma interpretação jurídica, cabendo, portanto, somente aos próprios legisladores delimitar o alcance da expressão “atividade jurídica”.
De acordo com o artigo 93, da CF, o enunciado exige que lei complementar, de iniciativa do STF, disponha sobre o Estatuto da Magistratura e observe como um dos princípios a exigência de 3 (três) anos do bacharel em direito para que ele possa ingressar na carreira da magistratura. Como se pode inferir dessa regra constitucional, o legislador deixou a cargo de uma lei complementar (e não outra espécie normativa) a regulamentação do triênio de atividade jurídica. Ademais, o devido processo legislativo para a feitura dessa lei tem que se iniciar por proposta do STF, não tendo o CNJ autorização constitucional para fazê-lo, muito menos para substituir uma lei por um ato administrativo, o qual não tem legitimidade democrática para determinar de forma impositiva (como se lei formal fosse) o conceito de atividade jurídica com o fim de uniformizar as interpretações dos tribunais pátrios a respeito da matéria. Neste ponto, a Constituição é bem expressa e não admite outra interpretação.
2 Aspectos da Resolução nº 11/2006 e os princípios constitucionais
Como vimos no tópico anterior, a Resolução nº 11/2006, do CNJ foi emitida para estabelecer regras e critérios gerais e uniformes enquanto não fosse editado o Estatuto da Magistratura. Conclui-se pela impropriedade da medida, visto que não possuía o Conselho competência para regulamentar dispositivo constitucional e não poderia tratar de matéria reservada à lei, no caso lei complementar. Ocorre que a Resolução nº 11/2006 é a espécie normativa que vigora atualmente e suas regras estão sendo observadas pelos tribunais pátrios quando da elaboração dos editais de concursos públicos para ingresso no cargo de magistrado. Pois bem, diante disso, passemos à analise da regra que está posta. De início, observemos a sua ementa, a qual é a parte da norma que expressa o que ela vai dispor e sua finalidade: “regulamenta o critério de atividade jurídica para a inscrição em concurso público de ingresso na carreira da magistratura nacional e dá outras providências” (Resolução nº 11/2006, do CNJ, grifo nosso).
Logo na ementa, verifica-se uma violação ao preceituado no artigo 93, I, da CF, pois o Conselho, ao regulamentar o critério de atividade jurídica, determinou que esta fosse para inscrição em concurso, enquanto o que a Constituição expressamente preconiza é que se deve exigir os três anos para que o candidato ingresse na carreira de magistrado e isso ocorre quando ele entra em exercício no cargo. Logo, “o que a Lei Maior restringiu (o exercício), a Resolução limitou ainda mais (a inscrição)” (FRANCO FILHO, 2006, v.70, p. 916).
Examinemos agora os principais pontos da Resolução nº 11/2006, os quais serão confrontados com princípios constitucionais, com a intenção de verificar se o teor da espécie normativa editada pelo CNJ atende à interpretação que deve ser dada quando da feitura da lei complementar pelo Poder Legislativo, ou seja, interpretação conforme a Constituição. Trataremos em especial dos artigos 1º, 2º, 3º e 5º da Resolução, os quais dispõem sobre o significado de atividade jurídica, os momentos de início do cômputo e da comprovação desse requisito, conforme vê-se, in verbis:
Art. 1º. Para os efeitos do artigo 93, I, da Constituição Federal, somente será computada a atividade jurídica posterior à obtenção do grau de bacharel em Direito.
Art. 2º. Considera-se atividade jurídica aquela exercida com exclusividade por bacharel em Direito, bem como o exercício de cargos, empregos e funções, inclusive de magistério superior, que exija a utilização preponderante de conhecimento jurídico, vedada a contagem do estágio acadêmico ou qualquer outra atividade anterior à colação de grau.
Art. 3º. Serão admitidos no cômputo do período de atividade jurídica os cursos de pós-graduação na área jurídica reconhecidos pelas Escolas Nacionais de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados de que tratam os artigo 105, parágrafo único, I, e o artigo 111-A, parágrafo 2º, I, da Constituição Federal, ou pelo Ministério da Educação, desde que integralmente concluídos com aprovação.
[...]
Art. 5º. A comprovação do período de três anos de atividade jurídica de que trata o artigo 93, I, da Constituição Federal, deverá ser realizada por ocasião da inscrição definitiva do concurso.
Como se pode verificar, referidos dispositivos normatizam o significado de atividade jurídica, os momentos de início da contagem do triênio e de comprovação da experiência jurídica.
Ressalte-se que a norma constitucional não pode ser interpretada de forma isolada, ou seja, para que interpretemos o artigo 93, I, da CF, devemos visualizá-lo em comunhão com todas as demais normas constitucionais a fim de que referido dispositivo seja concebido em plena harmonia com as outras disposições constitucionais, evitando-se, pois, contradições. Isso é possível porque a Constituição representa um sistema de normas que guardam uma unidade interna que possibilita uma interpretação sistemática.
2.1 O significado de atividade jurídica
O artigo 2º da Resolução em questão define o que deve ser considerado como atividade jurídica, explicitando diversas situações quando, na verdade, cuida apenas de uma: atividade exercida com exclusividade por bacharel em Direito. Isso se confirma no final desse artigo, ao expressar-se uma vedação ao estágio acadêmico ou a qualquer outra atividade exercida antes da colação de grau.
Estamos diante de um requisito que deve ser observado por aquele que almeja o cargo de magistrado, ou seja, o candidato, de acordo com o referido dispositivo, tem de ter exercido, após o bacharelado em Direito, no mínimo três anos de atividades jurídica, podendo ser no exercício de qualquer cargo, emprego ou função, inclusive de magistério superior.
Observe-se que o Conselho, ao interpretar o artigo 93, I, da CF, restringiu o acesso ao cargo público em comento, o que não lhe cabia fazer, pois, da leitura do artigo 37, I, da CF, obtém-se o princípio da ampla acessibilidade aos cargos, empregos e funções públicas, o qual determina que os requisitos que devem ser preenchidos pelos candidatos têm de vir estabelecidos em lei, ou seja, aquela espécie normativa oriunda do Poder Legislativo. Além do mais, o sobredito princípio também dispõe que, quando a lei criar requisito de acesso aos cargos públicos, deve fazê-lo de modo razoável e proporcional às atribuições do cargo, sendo vedada qualquer discriminação abusiva, a fim de possibilitar o acesso amplo à função administrativa. É esse o entendimento de Moraes (2004, p. 331, grifo original):
Os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros, natos ou naturalizados, aos portugueses equiparados, que preencham os requisitos estabelecidos em lei e, desde a promulgação da Emenda Constitucional nº 19, em 04-06-1998, aos estrangeiros, na forma da lei, sendo vedada qualquer possibilidade de descriminação abusiva, que desrespeite o princípio da igualdade, por flagrante inconstitucionalidade.
Nesse mesmo sentido aduz Silva (2006, p. 679, grifo original):
A Constituição estatui que os cargos, empregos e funções são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, como aos estrangeiros, na forma da lei (art. 37, I, cf. EC-19/98) [...] Essa lei está limitada pela própria regra constitucional, de tal forma que os requisitos nela fixados não poderão importar em discriminação de qualquer espécie ou impedir a correta observância do princípio da acessibilidade de todos ao exercício de função administrativa.
Pode a lei e muito mais a Constituição estabelecer requisitos e condições ao acesso e ao exercício de função administrativa, porém essas exigências não hão de ser desarrazoadas, desproporcionais, arbitrárias ou discriminatórias, sob pena de flagrante inconstitucionalidade.
No caso em tela, a EC 45/2004 estabeleceu um novo requisito para acesso à função de magistrado, o qual exige “do bacharel em direito, no mínimo, 3 (três ) anos de atividade jurídica” (art. 93, I, CF). Essa nova exigência não extrapola as regras da razoabilidade e da proporcionalidade, nem o princípio da igualdade, se dela extrair-se a interpretação de que, para ingressar na carreira da magistratura, o candidato precisa ser bacharel em direito com três anos de atividade jurídica. É o que defende Mazzilli (2005, on line, grifo original):
Quando a emenda passa a exigir ‘do bacharel em direito’ os três anos de atividade jurídica, não está dizendo que ele há de ter três de atividade jurídica enquanto bacharel em Direito, e, sim, que ele precisa ser um bacharel em direito com três anos de experiência jurídica.
Isso porque, se entender-se que o candidato somente poderá começar a contar o tempo de atividade jurídica após o bacharelado em Direito, irá restringir-se sobremaneira o acesso ao cargo de magistrado, pois todos os candidatos, quando recém-formados, terão ainda de exercer durante três anos atividade que lhes proporcione experiência jurídica.
Lamentavelmente, essa é a interpretação dos Conselheiros quando preconizaram, no artigo 1º da Resolução, que só será computada a atividade jurídica após a colação de grau no curso de Direito. Esse dispositivo, juntamente com o artigo 2º desse mesmo ato normativo, trouxe conseqüências que põem em risco os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da igualdade, os quais devem ser plenamente observados quando uma norma intenta restringir direitos.
Uma conseqüência é a de que os estágios acadêmicos não estão inseridos no conceito de atividade jurídica. Consoante a interpretação do CNJ, todas as experiências vivenciadas pelos estudantes de Direito no exercício da função de estagiários na área jurídica em nada contribuíram para que eles adquirissem prática jurídica e, ainda de acordo com o CNJ, os acadêmicos não utilizam o conhecimento jurídico transmitido na faculdade para exercer as suas funções no estágio.
O estágio acadêmico é disciplinado pela Lei nº 6.494/77 e pelo Decreto nº 87.497/82, os quais apresentam o estágio como sendo atividades que proporcionarão aprendizagem social, profissional e cultural aos estudantes em suas respectivas áreas de estudo. Com relação ao estágio acadêmico na área jurídica, há dispositivos no Estatuto da OAB (Lei nº 8.906/94) e na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei nº 8.625/93), preconizando direitos e obrigações dos estudantes de Direito, estagiários de advocacia e de órgãos do Ministério Público. Isso demonstra o grau de responsabilidade e, conseqüentemente, o conhecimento jurídico que o acadêmico em Direito tem de ter para poder desempenhar com zelo e de modo satisfatório funções tão relevantes para a sociedade, pois não haveria necessidade de o legislador impor regras para regular condutas que não pudessem influir na ordem social. O estágio acadêmico oferece ao aluno a possibilidade de associar o conhecimento teórico à prática, podendo assim vislumbrar situações as quais lhe permitirão aplicar a teoria e apreender o resultado prático. Nesse diapasão, Andreato (2006, on line) aduz:
O conhecimento jurídico de um profissional não surge no momento em que recebe o diploma universitário ou da colação de grau. É fruto de árduo esforço, é decorrente de suas atuações na qualidade de estagiário e tantas outras funções afetas ao mundo do Direito, que lhe propiciam vivenciar situações em que a teoria e prática jurídica despontam como valiosas lições. O conhecimento do bacharel em Direito não advém da obtenção do bacharelado nem somente tem origem após a graduação.
Sem dúvida, cogitar que a experiência jurídica somente pode ser adquirida após a obtenção do título de bacharel é desconsiderar todos os trabalhos realizados pelo acadêmico durante o estágio, apesar de eles terem proporcionado ao estudante conhecimento prático da teoria ensinada nos bancos das faculdades. Resignar-se a essa situação significa possibilitar que o Conselho restrinja direitos sem observar o princípio da razoabilidade, pois dar crédito à atividade jurídica adquirida somente depois da colação de grau não atende à finalidade da EC 45/2004. É o que confirma Andreato (2006, on line, grifo original):
[...] o conhecimento e prática jurídica ocorrem de maneira contínua e dinâmica e não de modo estático, como se tão-somente a partir do bacharelado em Direito fosse legítimo e de plena eficácia o conhecimento e experiência adquiridos. Não se pode fazer tabula rasa do conhecimento e vivência jurídicas oriundas do bacharelado, ante a sua fundamental importância na atuação da graduação.
A parte final do artigo 2º da Resolução diz que fica “vedada a contagem do estágio acadêmico ou qualquer outra atividade anterior à colação de grau”, para satisfazer o conceito de atividade jurídica. No que diz respeito ao estágio acadêmico, já expusemos o assunto. Trataremos agora da outra proibição, que parece gerar uma conseqüência ainda mais desastrosa do que a primeira.
O CNJ, como vimos anteriormente, não interpretou a expressão “atividade jurídica” como sendo aquela exercida privativamente por bacharel em Direito, mas sim como aquela praticada com exclusividade pelo mesmo. Isso quer dizer que se admite, de acordo com o próprio texto da Resolução, o exercício de cargos, empregos ou funções, para os quais o candidato, já na condição de bacharel em Direito, precise utilizar o conhecimento jurídico. Então qualquer cargo, emprego ou função que reclame o saber na área do Direito será considerada para fins de contagem do tempo de atividade jurídica, desde que quem o exerça já seja graduado.
Com isso, o que se verifica é que haverá uma diferenciação da mesma atividade com base no sujeito que a exerce, se bacharel em Direito ou não. Exemplificando, suponhamos que, na Justiça Federal, existam dois servidores ocupantes do cargo efetivo de técnico judiciário, cujo requisito admissional é o nível médio completo; ambos desempenham, portanto, a mesma atividade. Considerando que apenas um dos dois possua bacharelado em Direito, apesar de eles desempenharem idênticas funções e, para exercê-las, necessitarem de conhecimento jurídico, somente para o graduado será computado tempo para completar os três anos de atividade jurídica, enquanto que, para o outro, a contagem iniciará quando possuir o título de bacharel em Direito.
Tal situação fere insolentemente o princípio da isonomia, o qual garante tratamento igual para idêntica situação jurídica, uma vez que, no caso em tela, “a mesma atividade pode ou não ser considerada como jurídica para o fim da contagem dos três anos, dependendo apenas de o sujeito possuir ou não o diploma de bacharel em Direito” (VIANA JÚNIOR e OLIVEIRA, 2006, on line). Vejamos o que Moraes (2004, p. 67) esclarece sobre o princípio da isonomia:
Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e feitos da medida considerada [...].
Mais adiante, no artigo 3º da Resolução, os Conselheiros acrescentaram como válidos para contagem do período de atividade jurídica “os cursos de pós-graduação na área jurídica reconhecidos pelas Escolas Nacionais de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados ou pelo Ministério da Educação” (art. 3º, da Resolução nº 11/2006). Esses cursos “têm um formato semelhante ao dos cursos tradicionais, com aulas, seminários e conferência, ao lado de trabalhos de pesquisas sobre os temas concernentes ao curso” (Ministério da Educação, on line). Note-se que, apesar de ser uma fonte riquíssima de conhecimento jurídico, os cursos de pós-graduação não proporcionam ao indivíduo nenhuma prática jurídica, fato que torna o texto da Resolução incoerente, pois impede o cômputo do estágio acadêmico, notável doador de experiência jurídica, mas aceita a freqüência em cursos, onde se obtém aprofundamento teórico de uma determinada área. Compartilha desse pensamento o jurista Gomes (2005, v. 16, p. 30, grifo original):
A mera freqüência a escolas de preparação, ainda que oficiais (da Magistratura ou do MP), obviamente, não configura atividade jurídica. Preparação teórica, por mais perfeita que seja, não constitui automaticamente exercício prático.
Além disso, tal regra também fere o princípio da isonomia, visto que o objetivo da EC 45/2004 é adotar critérios para selecionar pessoas que tenham maturidade e experiência jurídica, não havendo como encontrar essa experiência prática em candidatos que, durante dois anos, somente estudaram.
Todas essas situações observadas, além de ferir princípios constitucionais, vão de encontro com a jurisprudência dominante, inclusive a do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
É que, antes do advento da expressão “atividade jurídica”, esse Tribunal, deparando-se com o problema da exigência de “prática forense”, expressão anteriormente utilizada nos editais de concursos públicos, declarou-a legítima e teve de definir o que poderia ser considerado como uma atividade capaz de proporcionar ao futuro magistrado experiência profissional no âmbito jurídico. O STJ então se posicionou no sentido de atribuir interpretação mais eqüitativa, ampliando sobremaneira o conceito de prática forense, compreendendo esta não só “as atividades privativas de bacharel em Direito, mas todas aquelas de natureza eminentemente jurídica” (REsp 547270/PE, Min. Rel. Arnaldo Esteves Lima, DJ 06/11/2006).
Assim discorre Mazzilli (2005, on line):
O STJ vinha considerando legítima a exigência de ‘prática forense’ para o ingresso nas carreiras jurídicas, mas o seu conceito deveria ser interpretado de forma ampla, de modo a compreender não apenas o exercício da advocacia e de cargo no MP, Magistratura ou em outro qualquer privativo de bacharel em Direito, mas também as assessorias jurídicas; as atividades desenvolvidas nos Tribunais, nos Juízos de primeira instância, como as dos funcionários, e até as atividades de estágio nas faculdades de Direito, doadoras de experiência jurídica. Até mesmo no conceito de exercício de atividade jurídica, tinha-se entendido estar compreendido o trabalho de quem fazia pesquisas jurídicas em bibliotecas, revistas e computador etc.
Nesse sentido, não há porque considerar uma interpretação mais restritiva da nova expressão, pois óbvio que ela abrange muito mais situações que a antiga expressão “prática forense”, senão vejamos qual a definição encontrada no Dicionário Brasileiro Globo (1993, grifo original) para as palavras atividade e jurídica:
ATIVIDADE, s. f. Qualidade de ativo; faculdade de operar; (fig.) diligência; presteza; em atividade (loc. adv.): no exercício de suas funções. (Do lat. activitate)
[...]
JURÍDICO, adj. Concernente ao direito; conforme aos princípios do direto.
Dessa forma, de acordo com a interpretação gramatical, atividade jurídica é o exercício de funções concernentes ao Direito, ao passo que prática forense abrange atividades que se relacionam com o foro judicial, referindo-se assim aos tribunais, o que faz dessa expressão a espécie e da atividade jurídica, o gênero.
Diante do esposado, tem-se que o CNJ, ao definir a expressão “atividade jurídica”, quando da feitura da Resolução n º 11/2006, desrespeitou relevantes princípios constitucionais e o entendimento pretoriano dominante, sequer observando a definição que a língua portuguesa confere a essas duas palavras que ultimamente causam tanta polêmica no meio jurídico.
2.2 O momento de comprovação
No tópico anterior, vimos que o CNJ, na tentativa de explicitar o alcance da nova expressão trazida pela EC 45/2004, exprimiu um conceito que limitou injustamente as possibilidades de o candidato adquirir a atividade jurídica, requisito indispensável para quem quer ingressar na carreira da magistratura.
Inobstante essa interpretação em desacordo com a finalidade da norma constitucional, ainda no mesmo ato normativo (Resolução nº11/2006), o CNJ não deixou de infringir mais uma vez os princípios da isonomia e da razoabilidade. É que, no artigo 5º da referida Resolução, consta o seguinte texto, in verbis: “a comprovação do período de 3 (três) anos de atividade jurídica de que trata o artigo 93, I, da Constituição Federal, deverá ser realizada por ocasião da inscrição definitiva no concurso”.
De acordo com essa regra, todas as pessoas que desejarem participar de concurso público para a carreira de magistrado terão de apresentar logo no ato da inscrição definitiva a nova habilitação exigida pela EC 45/2004. Esse fato diferencia a situação daqueles que pretendem o concurso para o cargo de juiz da dos que almejam outras funções públicas, visto que já há, na jurisprudência do STJ, entendimento sedimentado na súmula 266 de que “o diploma ou habilitação legal para o exercício do cargo deve ser exigido na posse e não na inscrição para o concurso público”. Em outras palavras, em qualquer outro concurso público, o candidato apresentará os requisitos necessários para a investidura no cargo somente no ato da posse, enquanto os que aspiram ao cargo de magistrado o fará logo na inscrição, isso porque o Conselho Nacional de Justiça assim determinou, sem, no entanto, demonstrar motivo algum que justificasse tal disparidade, desrespeitando, assim, o princípio da isonomia.
Além do mais, o legislador, quando acrescentou o requisito de atividade jurídica, dispôs expressamente no artigo 93, I, da CF, que este requisito seria para ingresso na magistratura e não para inscrição em concurso público. Nada mais justo e razoável que essa exigência deva ser observada nas regras editalícias, posto que a experiência e/ou vivência no mundo jurídico só interessa no momento em que o candidato vai efetivamente exercer o cargo, não havendo, pois, a necessidade dessa habilitação para que ele simplesmente se inscreva num concurso e realize uma prova.
É de se notar também que, do momento da inscrição até a homologação do concurso para a função de juiz, há um período muito extenso, que, não raras vezes, dura cerca de dois anos. Nesse tempo, com certeza, muitos candidatos já poderiam adquirir a atividade jurídica necessária, não se admitindo, portanto, que o candidato seja impedido de participar do concurso só porque não possui na data da inscrição a prática jurídica requisitada pela norma constitucional. Sem contar que o prazo de validade do concurso, computado após a homologação do mesmo, geralmente é de dois anos, prorrogável por mais dois. Desta feita, um candidato que não tivesse os três anos de atividade jurídica quando da inscrição definitiva no certame indubitavelmente teria a possibilidade de adquirir essa prática durante o tempo que transcorresse do início do concurso até a data da posse, caso o candidato fosse aprovado.
No entanto, lamentavelmente, esse não é o entendimento esboçado pelo CNJ na Resolução 11/2006, o que faz desse ato normativo uma afronta ao princípio da razoabilidade e da legalidade e ainda desconsidera a inteligência da súmula 266 do Superior Tribunal de Justiça.