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Igualdade, discriminação positiva, cotas e ADPF 186

03/05/2012 às 15:30

Resumo:


  • O Supremo Tribunal Federal considerou constitucionais as cotas raciais na Universidade de Brasília, reforçando a importância das políticas de ação afirmativa para corrigir desigualdades históricas e promover um ambiente acadêmico plural e diversificado.

  • A decisão do STF ressaltou que as cotas são medidas transitórias e devem ser periodicamente revisadas, visando superar as distorções sociais e assegurar a igualdade material, além de serem compatíveis com a Constituição e tratados internacionais de direitos humanos.

  • A igualdade é um princípio fundamental que busca tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, visando a não discriminação, a tolerância e o combate ao preconceito e ao racismo, sendo que as políticas de discriminação positiva são essenciais para alcançar esse objetivo.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Aborda-se o princípio da igualdade e a decisão proferida pelo STF na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186, que considerou constitucional a criação de cotas para acesso ao ensino superior na Universidade de Brasília.

RESUMO: O artigo aborda o princípio da igualdade e a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 186 que considerou constitucional a criação de cotas para acesso ao ensino superior na Universidade de Brasília.

O direito fundamental à educação encontra assento nos artigos 6º e 205 a 214 da Constituição. É dever do Estado e da família promover e incentivar a educação para permitir o desenvolvimento adequado dos indivíduos ao exercício da cidadania e qualificação para o trabalho.

A discussão apresentada ao Supremo Tribunal Federal decorreu da ADPF 186 ajuizada pelo Partido Democratas (DEM) para impugnar a política de cotas étnico-raciais para seleção de estudantes da Universidade de Brasília (UnB). Em resumo, a instituição universitária fixou, pelo prazo de 10 anos, a reserva de 20% de suas vagas para estudantes negros e pardos e vinte vagas para índios de todos os estados brasileiros.

A Argüição de Descumprimento de Preceito fundamental, ajuizada em 2009 pelo DEM, questionou os atos administrativos do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade de Brasília (Cepe/UnB) que determinaram a reserva de vagas oferecidas pela universidade. Na petição inicial alegou-se, em resumo, que as cotas violariam os seguintes fundamentos constitucionais:

a)                  princípio da dignidade da pessoa humana;

b)                  repúdio ao racismo;

c)                  princípio da igualdade;

d)                  direito universal à educação;

e)                  meritocracia.

O STF, por unanimidade de votos, julgou improcedente o pedido veiculado na ADPF 186. Resumidamente, foram utilizados os seguintes fundamentos:

=> Ministro Ricardo Lewandowski (relator): assentou que as políticas de ação afirmativa promovidas pela UnB estabelecem um ambiente acadêmico plural e diversificado, e têm o objetivo de superar distorções sociais historicamente consolidadas. Afirmou também que os meios empregados e os fins perseguidos pela UnB são marcados pela proporcionalidade, razoabilidade e as políticas são transitórias, com a revisão periódica de seus resultados;

=> Ministro Luiz Fux: anotou que a Constituição impõe uma reparação de danos pretéritos do país em relação aos negros, com fundamento no artigo 3º, inciso I, que preconiza como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Invocou vários diplomas normativos que consagram a discriminação benigna, destacando a Lei 9.394/1996 (Lei das Diretrizes e Base da Educação Nacional), que preconiza o dever do Estado com a educação, inspirada nos princípios da liberdade e na solidariedade humana; a Lei 10.172/2001 (Plano Nacional de Educação); a Lei 10.558/2002, que criou o Programa Diversidade na Universidade, no âmbito do Ministério da Educação, que também trata da promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, tais quais os afrodescendentes e os indígenas; a Lei 10.678/2003, que criou a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, e o Decreto-Lei 65.810/69, que promulgou a Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. Sustentou, ainda, que as cotas raciais cumprem o dever constitucional que atribui ao Estado a responsabilidade com a educação, assegurando “acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um”;

=> Ministra Rosa Weber: afirmou que cabe ao Estado “adentrar no mundo das relações sociais e corrigir a desigualdade concreta para que a igualdade formal volte a ter o seu papel benéfico”. A magistrada anotou que o sistema de cotas raciais permite à universidade ampliar o número de negros matriculados, pluralizando e democratizando a representatividade social no ambiente universitário. “Quando o negro se tornar visível nas esferas mais almejadas das sociedades, política compensatória alguma será necessária”;

=> Ministra Cármen Lúcia: a fixação das cotas é compatível com a Constituição, porquanto se trata de medida que observa a proporcionalidade e a função social da universidade. “As ações afirmativas não são a melhor opção, mas são uma etapa. O melhor seria que todos fossem iguais e livres”. Assim, as políticas compensatórias precisam estar acompanhadas de outras políticas para não caracterizar preconceito. Para a Ministra, as ações afirmativas decorrem da responsabilidade social e estatal e são necessárias para a observância do princípio da igualdade;

=> Ministro Joaquim Barbosa: seguiu o voto do relator, anotando que “não se deve perder de vista o fato de que a história universal não registra, na era contemporânea, nenhum exemplo de nação que tenha se erguido de uma condição periférica à condição de potência econômica e política, digna de respeito na cena política internacional, mantendo, no plano doméstico, uma política de exclusão em relação a uma parcela expressiva da sua população”. Assentou que existe “no Direito Comparado, vários casos de medidas de ações afirmativas desenhadas pelo Poder Judiciário em casos em que a discriminação é tão flagrante e a exclusão é tão absoluta, que o Judiciário não teve outra alternativa senão, ele próprio, determinar e desenhar medidas de ação afirmativa, como ocorreu, por exemplo, nos Estados Unidos, especialmente em alguns estados do sul”;

=> Ministro Cezar Peluso: sustentou que há déficit educacional e cultural dos negros, decorrente de barreiras institucionais de acesso às fontes da educação. Afirmou que existe “um dever, não apenas ético, mas também jurídico, da sociedade e do Estado perante tamanha desigualdade, à luz dos objetivos fundamentais da Constituição e da República, por conta do artigo 3º da Constituição Federal”. Neste contexto, “há a responsabilidade ético-jurídica da sociedade e do Estado em adotar políticas públicas que respondam a esse déficit histórico, na tentativa de superar, ao longo do tempo, essa desigualdade material e desfazer essa injustiça histórica de que os negros são vítimas ao longo dos  anos”. E que “o raciocínio de que o acesso à educação tem que ser visto como meio indispensável de acesso ou, pelo menos, da possibilidade de acesso mais efetivo aos frutos de desenvolvimento socioeconômico e, portanto, de uma condição sociocultural que corresponda ao grande ideal da dignidade da pessoa humana e do projeto de vida de cada um”;

=> Ministro Gilmar Mendes: as ações afirmativas são compatíveis com o princípio da igualdade. Anotou que a pequena quantidade de negros nas universidades é decorrente de um processo histórico, oriundo do modelo escravocrata de desenvolvimento, da baixa qualidade da escola pública e da “dificuldade quase lotérica” de acesso à universidade por intermédio do vestibular. Como base nestes fundamentos, ressalvou que o critério exclusivamente racial pode ocasionar situações indesejáveis, como permitir que negros não hipossuficientes se beneficiem das cotas, mas isso não ocasionaria a inconstitucionalidade do modelo, diante do pioneirismo da UnB;

=> Ministro Marco Aurélio: assentou que as ações afirmativas devem ser utilizadas na correção de desigualdades, mas é preciso fixá-las apenas com prazo determinado, extinguindo-se as cotas após a eliminação das diferenças. Estabeleceu que “a meritocracia sem igualdade de pontos de partida é apenas uma forma velada de aristocracia”. “Só existe a supremacia da Carta quando, à luz desse diploma, vingar a igualdade. A ação afirmativa evidencia o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica.” Anotou, contudo, que o Brasil ainda está longe disso. “Façamos o que está a nosso alcance, o que está previsto na Constituição Federal.”

=> Ministro Celso de Mello: para o decano da Corte, as cotas fixadas na UnB são compatíveis com a Constituição e com os tratados internacionais de direitos humanos. “As políticas públicas têm na prática das ações afirmativas um poderoso e legítimo instrumento impregnado de eficácia necessariamente temporária, já que elas não deverão ter a finalidade de manter direitos desiguais depois de alcançados os objetivos.” Mencionou que o modelo analisado é temporário e passará por reavaliação após dez anos. “O desafio não é apenas a mera proclamação formal de reconhecer o compromisso em matéria dos direitos básicos da pessoa humana, mas a efetivação concreta no plano das realizações materiais dos encargos assumidos”;

=> Ministro Aires Britto: anotou que a Constituição autoriza a promoção de todas as políticas públicas para proteger os setores sociais histórica e culturalmente desfavorecidos. “São políticas afirmativas do direito de todos os seres humanos a um tratamento igualitário e respeitoso. Assim é que se constrói uma nação”. Estabeleceu distinção entre cotas sociais e cotas raciais, que decorrem de “desigualdades dentro das desigualdades”, vale dizer, quando uma desigualdade – econômica – potencializa outra – a de cor. Disso decorre a necessidade de políticas públicas diferenciadas que reforcem outras políticas públicas e permitam às pessoas transitar em todos os espaços sociais – “escola, família, empresa, igreja, repartição pública e, por desdobramento, condomínio, clube, sindicato, partido, shopping centers” – em igualdade de condições, com o mesmo respeito e desembaraço. Mencionou a característica da sociedade brasileira: “Nossas relações sociais de base não são horizontais. São hegemônicas, e, portanto, verticais”;

=> Ministro Dias Toffoli: declarou seu impedimento, pois atuara na condição de Advogado Geral da União.

O tema abordado pelo STF é de extrema importância para a sociedade brasileira, pois tratar do princípio da igualdade consiste em abordar a forma como se relacionam os indivíduos e, principalmente, definir qual é a proteção que o Estado oferece aos particulares.

A ideia de igualdade tem assento na perspectiva de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. A Constituição estabelece, no artigo 5º, caput, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Inúmeros outros dispositivos constitucionais referem-se ao princípio da igualdade, entre os quais são destacáveis os artigos 3º, inciso III, 5º, inciso I, 150, inciso II e 226, § 5º.

A igualdade materializa um dever ético-jurídico de respeito aos indivíduos e tem por objetivo a não discriminação, a tolerância, o combate ao preconceito e ao racismo.

A decisão do STF é compatível com a Constituição, que preconiza não apenas a igualdade formal, mas também a igualdade material.

A igualdade na lei (formal) é dirigida ao legislador que, ao editar normas abstratas, deve tratar todos com isonomia. A lei não pode estabelecer diferença entre os indivíduos.

A igualdade perante a lei (material) incide no momento da concretização. Na aplicação da lei, não se pode adotar comportamento preconceituoso. É preciso praticar medidas concretas e objetivas tendentes à aproximação social, política e econômica entre os jurisdicionados.

Sobre esta questão também já decidiu o STF:

“O princípio da isonomia, que se reveste de auto-aplicabilidade, não é, enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-jurídica, suscetível de regulamentação ou de complementação. Esse princípio — cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público — deve ser considerado, em sua precípua função de obstar a discriminações e de extinguir privilégios (RDA 55/114), sob duplo aspecto: (a) o da igualdade na lei; (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei — que opera numa fase de generalidade puramente abstrata — constitui exigência destinada ao legislador, que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais Poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual inobservância desse postulado pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e produzido a eiva de inconstitucionalidade. [grifado] (STF, MI 58, rel. Min. Celso de Mello).

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As discriminações, de outro lado, podem se dar de duas maneiras:

a) a discriminação negativa é a discriminação para o mal, que desrespeita o outro, que prejudica por preconceito, que retira vantagens sem motivos plausíveis, que desconsidera o próximo pela simples vontade de menosprezar;

b) a discriminação positiva, por sua vez, é a discriminação para o bem, que procura ajudar o semelhante, tratando-o desigualmente para dar-lhe iguais oportunidades, pensando em melhorar condições de vida daquele que precisa de auxílio[1].

O critério para definir se existe inconstitucionalidade por violação ao princípio da igualdade é a análise do fator de discrímen. Ou seja, para saber se o princípio da isonomia foi ou não observado é preciso investigar o fator de discriminação utilizado na norma. É a necessidade de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial escolhida pelo legislador e a desigualdade de tratamento.

Por exemplo, não é inconstitucional uma regra em concurso público que veda a seleção de homens para trabalhar em presídio feminino para determinada atividade vinculada ao público feminino.

De outro lado, não há, em princípio, razão lógica para vedar, em função da idade avançada, altura ou peso, a participação de candidato ao preenchimento de vaga destinada ao trabalho burocrático ou exclusivamente intelectual. Na mesma linha, é o teor da Súmula 683 do STF: “O limite de idade para a inscrição em concurso público só se legitima em face do Art. 7º, XXX, da Constituição, quando possa ser justificado pela natureza das atribuições do cargo a ser preenchido.”

Há inúmeros exemplos de políticas públicas criadas para superar a desigualdade entre os indivíduos, com a pretensão de equiparar pessoas em situações de fragilidade (discriminação positiva): a) o artigo 68 do ADCT assegura a propriedade definitiva das terras ocupadas pelas comunidades remanescentes dos quilombos – os quilombolas; b) reserva de vagas para deficientes, nos termos da Lei 8.213/91; c) discriminações em favor da mulher: aposentadoria com menor tempo de serviço e com idade reduzida em relação ao homem (arts. 40, § 1º, III, e 201, § 7º, I e II, todos da Constituição) e ainda, a Lei Maria da Penha.

Enfim, o Estado tem o dever constitucional de agir para evitar desigualdades sociais, promover o bem estar social, combater a pobreza (artigo 3º da Constituição).

O ideal é que não fosse necessária a ação afirmativa, seja racial (tal qual a adotada pela UnB) e/ou social, mas a situação do Brasil, cujo IDH – Índice de Desenvolvimento Humano é extremamente baixo – 84º do mundo – demonstra que as discriminações positivas ainda são necessárias para corrigir as diversas desigualdades existentes.


Notas

[1] MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008, p. 81. 

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Sobre o autor
Clenio Jair Schulze

Juiz Federal. Mestre em Ciência Jurídica.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHULZE, Clenio Jair. Igualdade, discriminação positiva, cotas e ADPF 186. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3228, 3 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21671. Acesso em: 22 dez. 2024.

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