1. INTRODUÇÃO
Aborda-se a divergência doutrinária e o posicionamento jurisprudencial acerca do aparente conflito entre dispositivos da Lei de Concessões e Permissões de serviços públicos (n. 8.987/95) e do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90) quanto à possibilidade ou não do corte (interrupção) administrativo (a), sem prévia autorização judicial, do fornecimento de serviços públicos essenciais (p. ex., água, energia elétrica, telefonia etc.) em virtude do não pagamento da contraprestação incumbida ao usuário-consumidor (tarifa ou preço público).
2.DESENVOLVIMENTO
Inicialmente, calha pontuar que os serviços públicos podem ser prestados centralizada, desconcentrada ou descentralizadamente, e a sua execução pode ser direta ou indireta, na inteligência dos artigos 173 e 175 da Constituição Republicana Brasileira (CRFB). Alguns serviços públicos essenciais (v.g., de água, energia elétrica, linha telefônica, transportes coletivos e outros individualmente divisíveis e mensuráveis) são prestados, também, de maneira descentralizada, delegando-se seu exercício às Entidades da Administração Pública Indireta e a Particulares (como Concessionários, Permissionários e Autorizatários) por meio de um Contrato Administrativo de Concessão após prévia licitação pública, se for o caso. Desta feita, malgrado a titularidade do serviço continue pertencendo ao Estado, sua prestação é transferida a pessoas estranhas a este.
A remuneração desses serviços (art. 175, parágrafo único, inciso III, da CRFB) dá-se por meio de Tarifa ou Preço Público (possibilidade, nos moldes do artigo 11 da Lei n. 8.987/95 – Lei das Concessões e Permissões do Serviço Público –, de previsão no Contrato pelo Poder Concedente de outras fontes provenientes de receitas alternativas, complementares, acessórias ou de projetos associados de modo a atender à regra da modicidade das tarifas, para um serviço adequado, prevista no artigo 6.º, § 1.º, desta Lei). Impende-me demonstrar que essa tarifa não tem natureza tributária, como a Taxa (espécie tributária na Divisão Pentapartida do STF ou Tripartite do CTN, com natureza de compulsoriedade), mas sim natureza contratual-negocial, já que constitui receita originária e privada “destinada a remunerar concessionárias, permissionárias e autorizadas pelos custos do serviço, incluindo sua manutenção, melhora e expansão, e medidas para prevenir momentos de escassez”, como asseverou o STF no RE 576.189/RS, da Relatoria do Min. Ricardo Lewandowski, DJe 26.06.2009.
No curso do fornecimento desses serviços, não é incomum o inadimplemento dos usuários, por variados motivos e razões, tendo em vista a complexidade das relações jurídicas existentes. A partir desse descumprimento negocial, discute-se a legitimidade (legalidade) da paralisação temporária do serviço público, seja como forma de forçar o pagamento do preço, seja como forma de garantir a continuidade do serviço aos demais consumidores, usuários dessa rede.
Conquanto alguns autores afirmem existir três (3) correntes sobre o tema (a exemplo do Prof. Fabrício Bolzan), restringir-me-ei a discutir duas (2) delas, já que, a bem da verdade, trata-se uma da legalidade e outra, da impossibilidade no corte do fornecimento do serviço público.
Em uma primeira corrente, sobremaneira minoritária no atual cenário jurídico brasileiro, há quem defenda a impossibilidade do corte dos serviços em face do não pagamento do preço público como contraprestação devida. Asseveram, para tanto, os seguintes argumentos: a) Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (utilização dos serviços públicos essenciais para a manutenção de vida digna); b) Continuidade dos serviços públicos, nos moldes do artigo 22 do CDC; c) Limites legais na cobrança, vedando-se constrangimento do consumidor-usuário, na inteligência do art. 42 do Diploma Consumerista; d) Responsabilidade por dívidas deve recair sobre o patrimônio do devedor e não sobre sua pessoa ou sobre sua família.
Expendendo as mesmas razões de fundamentação, o Prof. Fabrício Bolzan pontifica que, ipsis verbis:
Nossa posição sobre o tema sempre foi a da impossibilidade da interrupção do serviço público em razão do inadimplemento do usuário-consumidor, sob os fundamentos da violação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, afronta ao princípio da continuidade inserto no art. 22, do CDC, extrapolação dos limites legais de cobrança (art. 42, do CDC) e desrespeito ao preceito de que a responsabilidade por dívidas deverá incidir sobre o patrimônio do devedor e não sobre sua pessoa ou sobre sua família. (pág. 255)
Em uma segunda corrente, na quase unanimidade entre os Juristas Administrativistas, colacionam os seguintes preceitos: a) Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Interesse Privado, ou seja, verticalidade na relação entre os particulares-administrados e a Administração Pública, como definidora de uma situação de comando indispensável para a gestão dos interesses públicos postos em confronto; b) Princípio da Obrigatoriedade de Desempenho da Atividade Administrativa, isto é, dever-poder da Administração Pública: não há liberdade quanto a “se” na atuação da Administração, mas apenas quanto ao “como” na prestação dos serviços públicos; c) Princípio da Continuidade dos Serviços Públicos para a coletividade, como desdobramento do anterior princípio, segundo o qual não podem esses serviços ser interrompidos, sofrer solução de continuidade, evitando-se “colapso nas múltiplas atividades particulares” (nas palavras de José S. Carvalho Filho); d) Vedação do enriquecimento sem justa causa dos usuários inadimplentes; e) Não presunção da gratuidade, resultando esta da lei ou do contrato, já que a essencialidade dos serviços não traduz uma gratuidade destes; f) Princípio da Isonomia (Igualdade Formal e Material), entendido como a exigência de tratamento jurídico parificado para todas as pessoas que se encontram numa mesma situação fática, i.e., quando ausente o “discrímen” – “fator de discriminação”, “critério de desequiparação” – como conteúdo jurídico exigido para tratamento diferenciado, como preleciona Celso A. B. de Mello em sua clássica e específica obra infrarreferenciada.
J. S. Carvalho Filho, adotando esse posicionamento majoritário e relativizando o Princípio da Continuidade dos serviços públicos, sustenta que:
É evidente que a continuidade dos serviços públicos não pode ter caráter absoluto, embora deva constituir a regra geral. Existem certas situações específicas que excepcionam o princípio, permitindo a paralisação temporária da atividade, como é o caso da necessidade de proceder a reparos técnicos ou de realizar obras para a expansão e melhoria dos serviços. Por outro lado, alguns serviços são remunerados por tarifa, pagamento que se caracteriza como preço público, de caráter tipicamente negocial. Tais serviços, frequentemente prestados por concessionários e permissionários, admitem suspensão no caso de inadimplemento da tarifa pelo usuário, devendo ser restabelecidos tão logo seja quitado o débito. É o caso, para exemplificar, dos serviços de energia elétrica e uso de linha telefônica. (pág. 27) (grifo nosso)
Em continuação, aduz na página 278 de seu Manual que, sendo o serviço facultativo (e não compulsório: remunerado por taxa), fato que o coloca na terceira corrente alertada por Fabrício Bolzan, poderá o Poder Público “suspender-lhe a prestação no caso de não-pagamento (sic), o que guarda coerência com a facultatividade em sua obtenção.”
Modificando anterior posicionamento (REsp n. 715.074/RS, DJe 04.04.2005, Relator José Delgado), o qual inadmitia a interrupção de serviços públicos por não pagamento (baseando-se exclusivamente nos artigos 22 e 42 do CDC), o Superior Tribunal de Justiça-STJ passou a acobertar a tese da legalidade (possibilidade) do corte desses serviços, numa interpretação sistemática entre o CDC e a retrotranscrita Lei das Concessões, afirmando que “a essencialidade do serviço não significa sua gratuidade” (Rcl n. 5.814, DJe 22.09.2011, Relator Humberto Martins), salvante nas hipóteses de a conduta afetar Unidades Públicas Essenciais (serviços de natureza essencial das Pessoas Jurídicas de Direito Público), tais como nosocômios, escolas e logradouros públicos, em razão da presença de direitos inadiáveis da coletividade (direito à vida, dignidade, saúde, educação, segurança) que sobrepujam o mero direito de crédito do fornecedor dos serviços (REsp n. 1.266.079/AL, DJe 24.08.2011, Relator Mauro Campbell Marques; e REsp n. 734.440/RN, DJe 22.08.2008, mesmo Relator), também como em situações de miserabilidade e hipervulnerabilidade do usuário-consumidor (como alertado pelo Professor Fabrício Bolzan) ou atinentes a débito antigos e já consolidados (AgRg no Ag n. 1.401.587/RS, DJe 17.10.2011, Relator Herman Benjamin; e AgRg no AREsp n. 132/PE, DJe 27.04.2011, Relator Mauro C. Marques).
Assinalando a ressalva acima do Superior Tribunal e da parte final do § 3.º, inciso II, do art. 6.° da Lei n. 8.987/95, o eminente Professor Celso A. B. Mello confirma:
Em nosso entender, tratando-se de serviço de uma essencialidade extrema, como é o caso da água, de notória relevância para a saúde pública, ou mesmo de grande importância para a normalidade da vida atual, como os de eletricidade, nem o Poder Público ou o concessionário poderão cortá-los, se o usuário demonstrar insuficiência de recursos para o pagamento das contas mensais. Em tal caso, sua cobrança terá de ser feita judicialmente e só, aí, uma vez sopesadas as circunstâncias pelo juiz, é que caberá ou não o corte a ser decidido nesta esfera. (pág. 746) (g. n.)
Ainda em harmonia com a segunda corrente, o indigitado jurista, embora reconheça como iniludível e incontrastável a incidência das regras da relação de consumo na prestação de serviços públicos (no mesmo sentido J. G. Brito Filomeno: págs. 16-7), ensina que:
Então, a legislação do consumidor não se aplicará quando inadaptada à índole do serviço público, ou quando afronte prerrogativas indeclináveis do Poder Público ou suas eventuais repercussões sobre o prestador do serviço (concessionário ou permissionário). (pág. 747)
Tentando pôr fim ao aparente conflito entre as normas sobrecitadas (dispositivos do CDC e da Lei de Concessões), Leonardo R. Bessa defende a necessidade de um “olhar ‘para o caso concreto’, uma ponderação em relação aos valores constitucionais em jogo”, dando-se primazia a um mínimo existencial e ao fundamento republicano da Dignidade da Pessoa Humana (citando, inclusive, o “Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo” defendido com propriedade pelo respeitado Edson Fachin), assim como à aplicação da Teoria do Diálogo das Fontes, prestigiando ambas as fontes normativas, sem qualquer exclusão prévia. Assim, conclui, ipsis litteris:
Desse modo, a partir do projeto constitucional de proteção à dignidade da pessoa humana, confere-se, em concreto, relevância à continuidade do serviço (Lei 8.078/90) ou a possibilidade do corte (Lei 8.987/95), quando não houver ofensa, direta ou indireta, à dignidade da pessoa humana.
Depositando minha contribuição, arrimo-me na segunda corrente, fazendo-se prevalecer as regras de Direito Público Administrativo, a supremacia do interesse público sobre o interesse privado, não podendo o usuário de um serviço público enriquecer-se à custa do Estado (ou do específico prestador do serviço), em prejuízo alheio, de toda a coletividade contribuinte da contraprestação devida, a qual necessita de sua continuidade, sem qualquer paralisação, ainda que momentânea.
Não pode o usuário inadimplente (seja pessoa natural, seja pessoa jurídica, particular ou mesmo pública) beneficiar-se gratuitamente desse serviço, ao qual não há previsão de gratuidade, mas sim de onerosidade (caráter sinalagmático-negocial), atentando contra o Princípio da Isonomia, haja vista a ausência de fator de discriminação que enseje uma desequiparação, uma situação jurídica desigual.
De toda forma, é inegável reconhecer e exaltar as observações aduzidas por Leonardo R. Bessa, atentando-se à Teoria do Diálogo das Fontes, não podendo afastar “a priori” as regras do Código de Defesa do Consumidor (em atenção ao artigo 2.º, § 2.º, da LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) e os preceitos da Constituição do Brasil, máxime em relação à Dignidade da Pessoa Humana (direito a um mínimo existencial – “Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo”), já que em situações pontuais poder-se-á vislumbrar hipervulnerabilidade e impossibilidade inequívoca (miserabilidade) de pagamento das tarifas, mas presente a necessidade impostergável dos serviços como manutenção de vida digna, protegendo-se esse fundamento republicano e dando-se destaque às normas constitucionais e consumeristas, as quais exigem um serviço adequado, a ser prestado de modo contínuo.
CONCLUSÃO
Desta feita, malgrado entendimento passado do STJ e de minoritária Doutrina sustentando a impossibilidade de paralisação no serviço público em virtude de inadimplemento do usuário-consumidor, o posicionamento da Doutrina Majoritária mais abalizada, e deste Autor, e a jurisprudência mais recente do STJ possibilitam tal corte, vedando-se enriquecimento sem causa do usuário inadimplente, atentando-se à supremacia do interesse público e à continuidade dos serviços prestados à coletividade, bem como assegurando o preceito isonômico, tratando-se o consumidor faltante, respeitadas as situações excepcionais de proteção à dignidade humana, de modo distinto dos demais usuários quites com o preço público.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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