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A relação entre Direito e ideologia no golpe de 64

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A justificativa ao que fora dado o nome de “Revolução” não poderia ter sido outra, seguindo a tradição, que não “o interesse e a vontade da nação” demonstrado firmemente no preâmbulo do Ato Institucional n° 1.

Resumo: Este artigo procura trazer de forma suscinta e resumida os conceitos básicos de Direito e Ideologia e a sua interrelação na criação e manutenção da vida estatal enfocando, de forma particular, a imposição do regime de exceção promovido pelo golpe militar (também chamado de “revolução”) instaurado no Brasil em 31 de março de 1964.

Palavras-chave: Direito, ideologia, golpe de Estado de 64.


1. CONCEITUAÇÃO PRELIMINAR

Tidas como disciplinas fundamentais em qualquer curso jurídico, é no estudo da Sociologia e da Filosofia do Direito que teremos um primeiro contato com as relações existentes entre o Direito e a Ideologia. Para iniciar tal estudo, evidentemente é preciso que se saiba a sua origem histórica e que haja conceitos bem definidos do que seja uma e outra categoria para que, num segundo momento, possam ser relacionados entre si.

Marilena Chauí (2001, p. 25), a renomada professora no curso de Filosofia da USP, ao lecionar sobre a origem do termo, ensina que

O termo ideologia aparece pela primeira vez na França, após a Revolução Francesa (1789), no início do século XIX, em 1801, no livro de Destutt de Tracy, Eléments d’Idéologie (elementos de Ideologia). Juntamente com o médico Canabis, com De Gérando e Volney, Destutt de Tracy pretendia elaborar uma ciência da gênese das idéias, tratando-as como fenômenos naturais que exprimem a relação do corpo humano, enquanto organismo vivo, com o meio ambiente.

Neste mesmo sentido leciona Diego Prezzi Santos (2006), dando um alcance ainda maior ao conceito e já o posicionando em outro momento histórico, relacionando-o com o que há atualmente como conceito de Ideologia, escrevendo que:

A palavra ideologia foi criada no começo do século XIX para se referir a uma ‘teoria geral das idéias’. Karl Marx, por sua vez, foi quem se utilizou dela em seu livro ‘A ideologia Alemã’, escrito com Friedrich Engels, em um sentido voltado para a política e a colocando como a idéia de que a ideologia é criada por uma classe para dominar outra.

Certamente, houve um momento na história em que o conceito dominante de Ideologia deixou de ser aquele inicial do mero estudo das idéias passando a representar um grupo de idéias racionalmente formuladas com o objetivo intencional de manipular uma grande massa de pessoas, transformando-se, nas palavras de Roberto Lyra Filho (1999, p. 16) em “uma crença falsa, uma ‘evidencia’ não refletida que traduz uma deformação inconsciente da realidade”. Este momento crucial para o estudo do conceito de Ideologia foi proporcionado por Napoleão Bonaparte que, num discurso ao Conselho de Estado em 1812, segundo o ensinamento de Chauí (2001, p. 27), declarou que:

Todas as desgraças que afligem nossa bela França devem ser atribuídas à ideologia, essa tenebrosa metafísica que, buscando com sutilezas as causas primeiras, quer afundar sobre suas bases a legislação dos povos, em vez de adaptar as leis ao conhecimento do coração humano e às lições da história

Esta conceituação, segundo, ainda, o ensinamento de Chauí (2001, p. 28), será também utilizada por Karl Marx que, nas palavras da professora:

conservará o significado napoleônico do termo: o ideólogo é aquele que inverte as relações entre as idéias e o real. Assim, a ideologia, que inicialmente designava uma ciência natural da aquisição, pelo homem, das idéias calcadas sobre o próprio real, passa a designar, daí por diante, um sistema de idéias condenadas a desconhecer sua relação real com a realidade.

Chega-se, desta forma, ao conceito-chave mais utilizado atualmente para a Ideologia. A partir dele muitos outros surgem todos os dias mantendo, contudo, a sua essência. É o caso, por exemplo, do conceito dado por Lyra Filho (1999, p. 17-18) onde explica de forma detalhada este conceito-chave, escrevendo o seguinte:

a ideologia é cegueira parcial da inteligência entorpecida pela propaganda dos que a forjaram. O ‘discurso competente’, em que a ciência se corrompe a fim de servir à dominação, mantém ligação inextrincável com o discurso conveniente, mediante o qual as classes privilegiadas substituem a realidade pela imagem que lhes é favorável, e tratam de impô-la aos demais, com todos os recursos de que dispõem (órgãos de comunicação de massas, ensino, instrumentos especiais de controle social de que participam e, é claro, com forma destacada, as próprias leis)

Destacado o conceito de Ideologia, é preciso ainda tratar do conceito de Direito, sem o qual não será possível costurar a necessária relação entre ambos para fundamentação deste trabalho.

O professor André Franco Montoro (1999, p. 29-61) traz em sua clássica obra, Introdução à Ciência do Direito, o seu conceito dentro do preceito epistemológico, bem como as diversas origens morfológicas do vocábulo e o seu amplo sentido alcançado. Será utilizado nesta pesquisa, contudo, a explicação mais sucinta trazida por Frederico Abrahão de Oliveira (1996, p. 73) que diz:

Os romanos designavam o que hoje entendemos por Direito, com o vocábulo Jus, advindo do latim e associado à idéia de poder divino, ordem divina, decorrendo daí aquilo que é ordenado por uma autoridade.

O vocábulo Direito remanesce do latim directum, com o sentido de reto, de acordo com um traçado reto, ou ainda, conforme o regramento.

Oliveira traz ainda o conceito dado por outros autores de renome dizendo que, segundo Nietzsche, “o Direito é a vontade de perpetuar uma determinada situação de poder” (1996, p. 78). Além disso, traz também os seguintes conceitos:

Direito é a arte do bem e do eqüitativo.

(ULPIANO. De justitia et jure, D-50, I).

Direito é a proporção real e pessoal de homem para homem, que conserva a sociedade, mas que, destruída a destrói.

(DANTE ALIGHIERI. De monarchia, II, 5, I).

Direito é o conjunto das condições segundo as quais o arbítrio de cada um pode coexistir com o arbítrio dos outros, de acordo com uma lei geral de liberdade.

(KANT. Introdução à teoria do Direito.)

Direito é a vinculação bilateral-atributiva da conduta humana para a realização ordenada dos valores de convivência.

(REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo, 5ª ed., 1969.)

Para Norberto Bobbio, entre os vários significados do vocábulo Direito, quatro principais enfoques devem estar presentes: a) o Direito como o ordenamento normativo; b) convergência entre ordenamento jurídico e poder estatal na filosofia política moderna; c) a supremacia da lei; d) poder legal e poder de direito (78-80).

Tendo, portanto, definido os principais conceitos de Ideologia e de Direito, criam-se as possibilidades de serem traçadas as relações existentes entre eles. Ora, sendo a Ideologia um conjunto de idéias articuladas com o fim de manipular a sociedade em prol de um projeto de poder e sendo o Direito o instrumento regulador da vida em sociedade, evidencia-se aí a estreita relação havida entre um e outro no sentido de que, nos Estados onde são adotados o regime democrático, o plano de governo nada mais é que a aplicação de um determinado programa partidário de governo que, se aprovado pelo Congresso Nacional (também este formado por membros de partidos que se identificam ou não com a linha ideológica adotada pelo Poder Executivo), tornam-se leis que formam o tecido jurídico que rege toda a sociedade. Carlos Simões (1994, p. 29) explicita muito bem este entendimento quando ensina que “em Marx, ... o direito é uma forma específica de a classe dominante impor seus interesses, distinta da repressão”. Mais à frente Simões (1994, p. 30) explica, ainda, que “Lênin, em O Estado e a Revolução e em textos esparsos, evidenciou que o direito pode ser instrumento a serviço de todo o povo. Fundamentou a tese de que o Estado e, portanto, o direito, tinha uma tarefa a cumprir no socialismo”. Também Ben-Hur Rava (2006) se manifesta neste sentido ao escrever:

Não há como deixar de considerar que o Direito, sendo obra da racionalidade, deve estar comprometido com uma determinada categoria ideológica com vistas a alcançar o poder e, de certo modo, lutar pela sua conservação para que possa afastar o perigo do conflito, instaurando uma modalidade de dominação.

E ainda, mais adiante, salienta que:

A linguagem e, mais especificamente, a linguagem jurídica está a serviço do status quo do Estado e do poder, que usam do Direito como uma espécie de adaptador social da realidade às suas finalidades ideologizadas que se apresentam escondidas ou reprimidas.

Além da relação política havida entre a Ideologia e o Direito, pode-se afirmar haver também o que se convenciona chamar de “ideologia jurídica”, que seria a forma de pensamento dominante entre os magistrados que, com o tempo, fazem surgir linhas de pensamentos mais ou menos harmônicos entre si a partir de temas similares. Segundo Santos (2006), “as elaborações e conceituações do que seria legal ou não, do que é de direito ou não, numa modernidade em que o sistema legal é codificado e positivado as formas de leis são, indiscutivelmente, pautadas por tais pressupostos de manipulação.”

Sobre este aspecto, aliás, assim se expressa Simões (p. 12):

a teoria de um jurista que se pretenda neutro, imune à parcialidade, por entender que os princípios em que se baseia são ‘lógicos’, ‘universais’ e ‘imparciais’, constitui-se numa ideologia como qualquer outra, uma concepção em confronto com as demais e, portanto, parte de um conjunto ideológico conflitivo existente acerca de determinada questão.

Demonstrada a inequívoca relação havida entre a Ideologia e o Direito, evidencia-se que o resultado por ela pretendido seja, em última análise, a obtenção do Poder Político. É neste sentido que Santos se manifesta ao escrever:

Os governos instituídos ao longo da história humana foram constituídos com base em diversos fatores. Dentre os quais se destacam: cultura, momento histórico, surgimento de lideranças e ideologia predominante.

O Direito, bem como a sociedade em geral, não foge a regra e é vitimado por, ora sutis ora gritantes, intentos ideológicos. Tais situações condicionaram, de forma clara, mudanças nos ordenamentos jurídicos alcançados por tais idéias, dessa forma, constituindo parcialidade de caráter indiscutível.

Firma-se, portanto, definitivamente o entendimento defendido no qual o Direito é utilizado como instrumento ideológico para a manutenção do Poder Político nas palavras da professora Chauí (2001, p. 83):

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Através do Estado, a classe dominante monta um aparelho de coerção e de repressão social que lhe permite exercer o poder sobre toda a sociedade, fazendo-a submeter-se às regras políticas. O grande instrumento do Estado é o Direito, isto é, o estabelecimento das leis que regulam as relações sociais em proveito dos dominantes. Através do Direito, o Estado aparece como legal, ou seja, o ‘Estado de direito’. O papel do Direito ou das leis é o de fazer com que a dominação não seja tida como uma violência, mas como legal, e por ser legal e não-violenta deve ser aceita. A lei é direito para o dominante e dever para o dominado. Ora, se o Estado e o Direito fossem percebidos nessa realidade real, isto é, como instrumentos para o exercício consentido da violência, evidentemente ambos não seriam respeitados, e os dominados se revoltariam. A função da ideologia consiste em impedir essa revolta fazendo com que o legal apareça para os homens como legítimo, isto é, como justo e bom. Assim, a ideologia substitui a realidade do Estado pela idéia do Estado – ou seja, a dominação de uma classe é substituída pela idéia de interesse geral encarnado pelo Estado. E substitui a realidade do Direito pela idéia do Direito – ou seja, a dominação de uma classe por meio das leis é substituída pela representação ou idéias dessas leis como legítimas, justas, boas e válidas para todos

O resultado desta equação, como se tem demonstrado, é a instituição da regulação da sociedade através de certos marcos ideológicos firmado por governos que, desta forma, detém o poder político. A atuação dos governantes, por seu turno, é feita com o objetivo de perpetuar o seu próprio projeto político vinculando-o cada vez mais a este poder.

Desta forma, a República brasileira, ao longo de seus 123 anos de duração, tem acompanhado periódicos golpes de Estado e “revoluções” patrocinadas, não pela grande parcela da sociedade oprimida, como foi o caso das revoluções francesa em 1789 e russa em 1917, mas sim por parte do próprio aparelho estatal que, descontente com os rumos que eram dados pelos chefes de governo de então, promovia a sua queda sempre em nome da “democracia” e do “desenvolvimento do povo brasileiro”, a começar pela própria proclamação da República constituída através de um golpe de Estado promovido por parte do exército brasileiro contra o império de Dom Pedro II.


2. IDEOLOGIA E DIREITO NO GOLPE DE 64

Não foi diferente em 31 de março de 1964. Descontentes com os rumos que já há anos vinham sendo dados à política brasileira desde o governo de Juscelino Kubitschek e com a popularidade do Vice-presidente João Goulart, o alto comando do exército brasileiro aliado a setores da elite conservadora nacional tentou, através de vias institucionais com a instauração do parlamentarismo como novo sistema de governo no Brasil, inviabilizar a sua posse que deveria se dar, por ocasião da misteriosa e mal explicada renúncia de Jânio Quadros, no momento de seu retorno da viagem oficial que fazia à República Popular da China. João Goulart só pôde tomar posse do cargo de Presidente da República mediante o compromisso formal de respeitar o novo regime de governo, porém, pouco depois de assumir, propôs um plebiscito no qual a população escolheria entre o parlamentarismo implantado ou o presidencialismo, então extinto. Foi por ampla maioria e graças principalmente às suas propostas de base que João Goulart conseguiu que o Brasil, pelas vias democráticas, retornasse ao regime presidencialista, irritando os altos oficiais da Escola Superior de Guerra que encaravam o seu governo como uma forma de levar o país ao comunismo que vinha ganhando adeptos por todo o mundo e em particular na América Latina. Assim, através de um golpe militar, chamado de “Revolução de 64”, teve o seu mandato cassado e o país passou, então, a pôr em prática o plano de manutenção do poder político engendrado pela Escola Superior de Guerra, órgão do alto comando do Exército Brasileiro.

Como dito acima, a justificativa ao que fora dado o nome de “Revolução” não poderia ter sido outra, seguindo a tradição, que não “o interesse e a vontade da nação” demonstrado firmemente no preâmbulo do Ato Institucional (N° 1) que, apesar de extenso, merece aqui a sua transcrição:

É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução.

A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação.

A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular. O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da Nação na sua quase totalidade, se destina a assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria. A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar e se apressa pela sua institucionalização a limitar os plenos poderes de que efetivamente dispõe.

O presente Ato institucional só poderia ser editado pela revolução vitoriosa, representada pelos Comandos em Chefe das três Armas que respondem, no momento, pela realização dos objetivos revolucionários, cuja frustração estão decididas a impedir. Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País. Destituído pela revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do novo governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício do Poder no exclusivo interesse do Pais. Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas. Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes, constantes do presente Ato Institucional.

Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.

Em nome da revolução vitoriosa, e no intuito de consolidar a sua vitória, de maneira a assegurar a realização dos seus objetivos e garantir ao País um governo capaz de atender aos anseios do povo brasileiro, o Comando Supremo da Revolução, representado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica resolve editar o seguinte.

Assim, portanto, formalizou-se a tomada do poder legítimo por força de um golpe de Estado que deixou clara a sua intenção de utilizar todos meios para manter o Brasil dentro de um marco ideológico considerado por estas forças como o ideal contra o que chamavam de “bolchevização” do Estado.

O professor Roberto Diniz Saut (2005, p. 117) assim descreve o episódio:

O golpe de 1964 vence (...) sob a argumentação de uma democracia salvadora, mas que na verdade torna evidente a tendência de se fazer vencer a prática da Doutrina de Segurança Nacional, nascida esta nos laboratórios político-ideológicos norte-americanos, no período pós 2ª Guerra Mundial.

[...]

As Forças Armadas (...) vinham numa tradição de conceituarem-se como integradas à vida política nacional, e, achando-se normalmente como um dos modelos de soluções políticas ao país.

O ato institucional dava ao Presidente da República uma incrível margem de manipulação sobre os demais poderes constituídos, ao passo que, já em sua justificativa, coloca o próprio Congresso Nacional sob o seu jugo e decreta em seu artigo 7° a suspensão, por seis meses, das “garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade e estabilidade”, pondo, portanto, em risco a carreira de qualquer magistrado que neste período ousasse questionar a legalidade daquele ato.

Neste sentido, Sader (apud SAUT 2005, p. 125) utiliza-se da ratificação do Marechal Castelo Branco como o pirmeiro Presidente do período “revolucionário” para descrever a subordinação do parlamento, bem como “a anulação do Poder Judiciário como instância de defesa do Estado de Direito” sendo corroborado nesta idéia por Germano (apud SAUT 2005, p. 125), que assim se posiciona:

No Brasil, a partir de 1964, o Estado caracteriza-se pelo elevado grau de autoritarismo e violência. Além disso, pela manutenção de uma aparência democrático-representativa, uma vez que o Congresso não foi fechado definitivamente (embora tenha sido mutilado) e o Judiciário continuou a funcionar, ainda que como apêndice do Executivo

Além disso, investiu-se o Poder Executivo da prerrogativa de poder livrar-se daqueles que lhe fizessem qualquer tipo de oposição incluindo neste novo ordenamento jurídico a possibilidade prevista no seu artigo 10, cujo teor é o seguinte:

No interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, os Comandantes-em-Chefe, que editam o presente Ato, poderão suspender os direitos políticos pelo prazo de 10 (dez) anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais, excluída a apreciação judicial desses atos. (grifo nosso)

De fato, o absolutismo perpetrado pelo governo militar durante todo o período do estado de exceção manteve sob o jugo de seu poder todos os mecanismos reguladores institucionais da sociedade através de cassações de mandatos eletivos e de direitos políticos, exílios, recessos do Congresso Nacional, instauração de inquéritos e processos dirigidos por oficiais militares, censura prévia entre tantos outros, além de atos legislativos como Decretos-leis, as Emendas Constitucionais, os Atos Complementares e os Atos Institucionais que outra não poderia ser a postura de quem se opusesse senão entrar na clandestinidade. Prova disso são os “atos” editados logo em seguida da decretação do Ato Institucional. Foram eles:

a) Ato N° 1: com data de 10 de abril de 1964, decretava a suspensão dos direitos políticos pelo prazo de dez anos de cem personalidades políticas e sociais, dentre elas os ex-presidentes João Goulart e Jânio da Silva Quadros e ainda Luiz Carlos Prestes, Miguel Arrais, Darci Ribeiro, Waldir Pires, Leonel Brizola, Celso Furtado, Plínio de Arruda Sampaio, Rubens Paiva, dos juristas Desembargador Osm Duarte Pereira e Ministro José de Aguiar Dias e até dos militares Gen. R/1 Luiz Gonzaga de Oliveira Leite, Gen. R/1 Sampson da Nobrega Sampaio e Marechal R/1 Osvino Ferreira Alves;

b) Ato N° 2: com data de 10 de abril de 1964, cassava os mandatos legislativos de quarenta membros do Congresso Nacional, entre eles: Amauri Silva . PTB – Paraná, Almino Monteiro Álvares Afonso . PTB – Amazonas, José Guimarães Neiva Moreira . PSP – Maranhão e Clovis Ferro Costa . UDN – Pará;

c) Ato N° 3: com data de 11 de abril de 1964, Transferia para a reserva 122 oficiais das forças armadas, sendo 77 do Exército, 14 da Marinha e 31 da Aeronáutica; e

d) Ato N° 4: com data de 13 de abril de 1964, suspendia os direitos políticos de mais 62 pessoas, dentre as quais 36 oficiais das Forças Armadas.

Desta forma, o novo regime imposto dava uma clara demonstração de que não se importaria em afastar, da forma que fosse possível ou necessária, quem se colocasse frente aos seus planos de tomada e manutenção do novo poder político, ora instituído.

Saut (2005, p.122) explica com maestria este ponto vista ao escrever:

No Estado brasileiro uma máquina burocrática bastante pesada e a sociedade civil em sua debilidade de articulação, um campo propício para o modelo de Segurança e Desenvolvimento da Escola Superior de Guerra, que irá promover seus aparelhos ideológicos de Estado ‘democratizando’ sua doutrina, mobilizando elites, como já foi afirmado, para a busca e permanência hegemônica do ‘processo revolucionário’. Estas são algumas características do autoritarismo pós-64, em que por uma forte burocracia, por uma determinação de ação tecnológica de desenvolvimento, pelo controle e aperfeiçoamento dos meios de comunicação, pela submissão do poder parlamentar a uma poderosa ação legisferante do Poder Executivo, pelos atos institucionais, pelos decretos-leis, pelo aparelho repressivo de informação do SNI (Serviço Nacional de Informação), pelos aparelhos repressivos policiais militares, vai consolidando suas intenções com algum consentimento de segmentos da sociedade civil, além de contar o aparelho repressivo militar com a consonância pragmática tolerante ao autoritarismo da cúpula da magistratura brasileira, além de uma base filosófica de direita do mundo jurídico nacional, a aplaudir exceções ao desaparecido Estado de Direito.

O então novo Senador da República pelo MDB, Pedro Simon (2006, p. 36), denunciava em seu discurso de estréia, já em 1979, tal situação:

A lei, que deve ser a mesma para todos, protegendo ou punindo, transformou-se em instrumento para a marginalização daqueles que assumem posições políticas contrárias ao absolutismo dominante. Aos coerentes com as necessidades do povo, a demissão; aos submissos, a promoção.

Esse desprezo pela lei, em pura perda de seu sentido civilizador, foi aplaudido pelos arenistas, que se caracterizaram, na história desses últimos anos, por dizer amém a todas as manifestações do direito e da força, em contraposição da força do direito.

Assim, o novo regime se estruturava, não apenas para “a assegurar a realização dos seus objetivos e garantir ao País um governo capaz de atender aos anseios do povo brasileiro”, como expressamente dizia o Ato Institucional que o originou, como também para se perpetuar no poder com um projeto ideológico de longo prazo que se manteve por mais de duas décadas ao elevado custo das liberdades democráticas e da suspenção do Estado de Direito.


3. CONCLUSÃO

De fato, passado o golpe de 31 de março de 1964 que em sua gênese descritiva, o Ato Institucional (que não trazia numeração por imaginar-se ser o único a ser editado), já trazia um prazo pré-determinado de duração que deveria vigorar, conforme constava em seu artigo 11, “até 31 de janeiro de 1966, revogadas as disposições em contrário”, não se exauriu em si mesmo durante este período. Outros Atos Institucionais vieram, inclusive o Ato Institucional N° 5, decretado em 13 de dezembro de 1968, no qual todo o resquício de qualquer mínima ordem jurídica foi esmagado sob o jugo do Poder Executivo que, neste momento concentrou em suas mãos a totalidade dos poderes e implantou o período mais duro de todo o regime militar no Brasil e o chamado “pacote de abril” que trazia em seu bojo Emendas Constitucionais, recesso do Congresso Nacional e Reformas do Judiciário mas que, contudo, não são o alvo deste estudo em especial.

Assim, resta demonstrado o uso da ideologia como minério utilizado na construção do Direito como ferramenta a forjar a criação do ordenamento jurídico como regulador do aparelho estatal repressivo que convalidou o regime de exceção no Brasil.


REFERÊNCIAS

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CHAUÍ, Marilena de Souza. O que é ideologia? 2 ed. ver. e ampl. São Paulo: Brasiliense, 2001. (Coleção primeiros passos; 13).

FACHIN. Odília. Fundamentos de metodologia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2003

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MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 25. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 620p.

OLIVEIRA, Frederico Abrahão de. Filosofia do direito ocidental: momentos decisivos. Porto Alegre: Sagra, 1996.

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SANTOS, Diego Prezzi. Direito e ideologia: uma perspectiva histórico-instrumental. Revista Juristas, João Pessoa, a. III, n. 92, 19/09/2006. Disponível em: <https://www.juristas.com.br/mod_revistas.asp?ic=1007>. Acesso em: 10/8/2012.

SAUT. Roberto Diniz. Transição política brasileira pós-1964. Revista Jurídica, Centro de Ciências Jurídicas da FURB, Blumenau, periodicidade semestral, ano 9, n. 18, p. 115-131, jul. 2005.

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SIMON, Pedro. Do regime militar ao mensalão: minhas lutas pela dignidade humana. Brasília: Senado Federal, 2006. 680 p.


Abstract: This article seeks to bring and succinctly summarized the basic concepts of law and their interrelationship and Ideology in the creation and maintenance of state life focusing so particular, the imposition of the emergency regime promoted by the military coup (also called "revolution") introduced in Brazil in March 31, 1964

Key words: Law, ideology, coup d'etat of 64.

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Sobre o autor
Glayton Robert Ferreira Fontoura

Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp|LFG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONTOURA, Glayton Robert Ferreira. A relação entre Direito e ideologia no golpe de 64. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3341, 24 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22480. Acesso em: 25 abr. 2024.

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