1. Noções
O Estado possui um dever jurídico de indenizar e ressarcir particulares, eventualmente lesados por seus atos ou omissões, quer seja na sua atividade administrativa, judiciária ou legislativa, com o intuito de garantir a ordem e a segurança jurídica das relações.
Diante da necessidade de se proteger o particular e baseando-se na teoria da responsabilidade civil objetiva do Estado, pode-se responsabilizar, também, o ente estatal pelos danos decorrentes de sua atividade como legislador. Porém esta questão ainda não possui um tratamento adequado, nem pela doutrina nem pela jurisprudência de nenhum país, encontrando-se, ainda, em uma zona de relativa indefinição e controvérsias.
2.Objeto da Responsabilidade
Ao se falar de atos legislativos, tem-se em foco tanto os atos formal, quanto os materialmente legislativos, inclusive aqueles derivados dos poderes que não tem a função precípua de legislar, uma vez que os Poderes Executivo e Judiciário, também realizam, em menor medida, atos com conteúdo legislativo.
Depreende-se que não é possível que a Constituição seja objeto de responsabilização do Estado, uma vez que ela é a Lei Maior, encontrando-se no topo da hierarquia das normas, dotada de soberania. Além disso, ela é a norma estruturante do ordenamento jurídico.
Então, a responsabilidade do Estado por atos legislativos engloba todas aquelas espécies normativas previstas no art. 59 da Constituição da República, quais sejam: emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções.
3. Evolução da ideia de responsabilidade do Estado por atos legislativos
Para que se possa fazer um necessário entendimento do tema, é imprescindível que haja uma abordagem da evolução do instituto da responsabilidade civil do Estado por atos legislativos, elencando as etapas pelas quais a responsabilidade do Estado legislador passou, partindo da sua irresponsabilidade total, até chegar à sua responsabilidade, apesar de ainda se ter muita discussão a esse respeito.
3.1 Na doutrina
Nos primórdios, a regra da responsabilidade por atos legislativos era, tal qual se deu com a responsabilidade estatal por atos administrativos e juridicionais, ou seja, a irresponsabilidade total.
Observa-se uma tendência abolicionista da posição de Estado legislador irresponsável, sendo que tal processo iniciou-se a partir da metade do século XIX. Todavia, a reparação do dano só ocorreria se houvesse previsão expressa em lei.
O precursor, na análise do tema, foi Amaro Cavalcanti (1957, p. 313) ao afirmar a possibilidade de se responsabilizar o Estado Legislador, em sua atuação inconstitucional. Mas, para o autor, não sendo esse o caso, só haveria indenização, por dano decorrente de lei, no caso de expressa determinação nela imposta.
Voltada, ainda, precipuamente para debates em que se questionava a própria existência de uma responsabilidade patrimonial do ente estatal refutada ou mitigada pela corrente que sustentava a responsabilidade dos agentes públicos e, mais tarde, para as disputas estabelecidas entre os defensores das várias teorias civilistas da responsabilidade do Estado, a doutrina administrativa da primeira quadra do século XX não se dedicou ao tema da responsabilidade do Estado por ato legislativo (ESTEVES, 2003, p.156).
Com exceções, além do estudo de Amaro Cavalcanti, tem-se a obra de Pedro Lessa (apud DIAS, 1994, p.19), em que admite a responsabilidade do Estado legislador, em face de lei inconstitucional.
A partir de então, observa-se a ocorrência de um abrandamento da irresponsabilidade estatal por atos legislativos no ordenamento jurídico, sob o prisma universal.
Juary C. Silva (1985, p. 54) também destaca serem indenizáveis somente os danos decorrentes de leis declaradas inconstitucionais pelo órgão legitimado para tanto; esse um priusnecessário à idônea postulação e tendo por fundamento o princípio supralegal do Estado de Direito.
Entretanto, o Prof. Hely Lopes Meirelles (2006, p. 591) refutava a possibilidade de responsabilidade dessa ordem, mesmo que em sede de inconstitucionalidade.
Posicionamentos contrários à irresponsabilidade do Estado Legislador, encontram-se, dentre outros, na doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello e Lúcia Valle Figueiredo.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello (2005, p.502), a responsabilidade do Estado ultrapassa a atividade administrativa. Em seguida, detectando, na história e na evolução da responsabilidade do Estado, o traço e a tendência de expansão, assevera que já sucede, em alguns casos, nos tempos hodiernos, a responsabilidade por atos legislativos.
Lúcia Valle Figueiredo (1994, p. 186) alega não encontrar obstáculos à aceitação da responsabilidade do Estado legislador. As resistências no admitir a tese são, na visão da autora, distorções que “a evolução para um verdadeiro Estado de Direito encarregar-se-á, por certo, de resolver”.
Seguindo esse pensamento, a autora conclui que o estado é responsável pelos danos causados por leis declaradas inconstitucionais, bem assim por aquelas elaboradas com desvio de poder ou que se revelem ilegitimamente discriminatórias.
Odete Medauar (2005, p.439) aborda sucintamente a responsabilidade civil do Estado por atos legislativos, indicando os conhecidos argumentos em favor da irresponsabilidade e registrando a admissão, no direito brasileiro, da responsabilidade do Estado por leis cuja inconstitucionalidade tenha sido declarada.
Caio Mário da Silva Pereira (2006 p.136) considera que a atividade do Poder Legislativo que transborde os limites da ordem constitucional constitui ilícito legislativo. Como tal, a exemplo do que ocorre na atuação administrativa, a exorbitância legislativa sujeita o Estado à reparação do dano causado.
Ainda, segundo este autor, a responsabilidade do Estado legislador também ocorre na hipótese de danos causados por leis constitucionais, tendo por fundamento o princípio da responsabilidade na distribuição dos ônus e encargos públicos.
Com o mesmo entendimento, Carlos Roberto Gonçalves (2003, p. 169) considera de relevo indagar da responsabilidade do Estado, em face da atividade legislativa normal, visto que mesmo a lei constitucionalmente perfeita pode causar um dano injusto aos particulares ou a uma certa categoria de particulares.
Renan Miguel Saad (1994, p. 83) é ainda mais radical ao afirmar que, apesar dos argumentos da mais respeitada doutrina, deve-se abandonar a idéia de que a responsabilidade do Poder Público por atos legislativos é a exceção, partindo-se para encará-la como regra no sistema da responsabilidade civil.
José Cretella Júnior (1999, p. 11) sustenta que, tanto a lei constitucional, quanto a inconstitucional, podem causar danos. No primeiro caso, a responsabilidade do Estado só teria lugar em face de danos causados pelo que denomina pseudolei, vale dizer, o ato legislativo que, despido de generalidade e abstração, lança seus efeitos sobre uma única pessoa ou sobre número restrito e identificado de destinatários. Já quanto à lei inconstitucional, esta atingindo um particular utisinguli, empenharia, segundo o autor, a responsabilidade patrimonial do Estado, desde que o vício seja detectado pelo Poder Judiciário.
A profª. Marisa Helena D’arbo Alves de Freitas (2001, p. 285) externa seu posicionamento acerca da possibilidade de responsabilização estatal na mesma ação que reconhece a inconstitucionalidade da lei (em sede difusa, portanto), bem como da omissão legislativa que enseja reparação, desde que com prazo previamente estipulado. Na mesma linha postula pela reparação no caso de leis constitucionais que geram danos especiais e anormais, sacrificando direitos e tendo por pano de fundo o respeito à igualdade de todos perante os encargos públicos.
Com caráter inovador, Maria Emília Mendes Alcântara (1988, p. 61) afirma que a responsabilidade estatal por ato legislativo é investigada mediante dois critérios distintos, o primeiro, que põe em foco as leis inconstitucionais, e o segundo, que considera atos legislativos conformados com a ordem constitucional, a autora, admitindo certa ousadia, conclui que, para fins de indenização por danos decorrentes de lei, descabe indagar da constitucionalidade, bastando provar a lesão e o nexo de causalidade desta com a atuação do Poder Legislativo.
E segue seu raciocínio o prof. Maurício Jorge Mota (1999, p. 207), entendendo desnecessária a declaração de inconstitucionalidade como priusnecessário à reparação no caso de leis desconformes. E ressalva que, no caso das leis inconstitucionais, o dever de reparar alcança não apenas o prejuízo causado, mas, de igual forma, os benefícios que teria deixado de fruir o prejudicado, além do dano moral, se houver; por outra, no caso das leis constitucionais, urge o dever de apenas recompor a situação material existente, criando nova situação patrimonial correspondente à anterior e de igual valor (agora em face da preponderância do interesse público sobre o particular). Sem sombras de dúvida, esse o posicionamento doutrinário mais arrojado, até o momento.
Pelo exposto, podemos observar a notória evolução doutrinária da matéria, enumerando seus estágios: primeiro, a irresponsabilidade do Estado legislador; em seguida, o reconhecimento da responsabilidade do estado legislador, mas, apenas diante de danos oriundos de lei inconstitucional e, por fim, a admissão da responsabilidade por danos advindos de lei inconstitucional ou lei constitucional que importe em sacrifício de determinado direito individual ou de determinado grupo, sendo o dano anormal e especial (quanto a essa última posição ainda há grande controvérsia).
3.2 Na jurisprudência
Apesar da forte tendência, na doutrina, de ampliação da responsabilidade civil do Estado legislador, constata-se que pouca análise jurisprudencial ainda há, sobre o tema.
O quadro dá razão a Juacy C. Silva (1985, p.265), ao atestar que a afirmativa da responsabilidade do Estado legislador, não obstante se evidencie como resultado de construção lógico-jurídica, não se afigura como “entendimento remansoso dos tribunais em torno da questão, o qual obviamente ainda não encontrou terreno adequado à sua formação”.
Em 1944, o Tribunal de Justiça de São Paulo (Apelação Cível n. 22.247. Acórdão 30.5.44) reconheceu a possibilidade de que leis inconstitucionais dessem ensejo a pedido de reparação de dano. O julgado negou, todavia, a indenização pleiteada, com fundamento na inexistência de declaração de inconstitucionalidade do ato legislativo de que resultaria o dano.
A matéria chegou ao Supremo Tribunal Federal e deu-se, neste julgamento, o primeiro caso em que a Corte Máxima admitiu, nos termos do voto do Ministro Castro Nunes, a responsabilidade do estado por ato de natureza normativa:
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. O estado responde civilmente pelo dano causado em virtude do ato praticado com fundamento em lei declarada inconstitucional. (Recurso Extraordinário n. 21.504. Acórdão 15.5.57)
Também de 1957, a decisão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, em que se determinou que o Estado ressarcisse danos causados a oficial vitalício do Registro de Imóveis, privado de suas funções em razão da criação por lei de novo cartório, conforme trecho da ementa:
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ATO ILÍCITO. O oficial de Registro de Imóveis que, em virtude de ato ilegal e inconstitucional do Governo do Estado, se vê privado de suas funções privativas e vitalícias, em relação ao registro de imóveis, tem o direito de ser ressarcido de todo e qualquer prejuízo sofrido. (Apelação cível n.3.059)
Em 1971, o Tribunal de Alçada de São Paulo, em sede de apelação cível de n.157.299, reconhece que do sacrifício especial imposto ao direito de propriedade, mediante lei estadual que constituíra reserva florestal, impondo restrições de uso da propriedade, em nome da preservação das riquezas florestais, resulta o dever de indenizar. Aqui se vislumbra o primeiro reconhecimento da dever de indenizar do Estado por dano advindo de lei constitucional.
O antigo Tribunal Federal de Recursos admite, em 1980, na apelação civil n.58.396, a responsabilidade civil estatal por erro na atuação normativa. Afirmou a responsabilidade estatal por decreto julgado inconstitucional, ou mesmo ilegal, dada a natureza de ato administrativo do regulamento.
Em 1992, duas decisões do STF viriam confirmar a tendência da Corte quanto à aceitação da responsabilidade do Estado pela edição de lei. Cuidou o primeiro julgado de recurso extraordinário interposto pelo Banco Central do Brasil contra decisão que reconhecera a inconstitucionalidade da Lei n. 8.024/90. Citando a orientação doutrinária e os precedentes do Tribunal, registra o relator:
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – LEI INCONSTITUCIONAL – INDENIZAÇÃO. De outro lado, é de referir que a jurisprudência dos Tribunais (RDA 8/133) – desta Suprema Corte, inclusive- não se tem insensível à orientação fixada pela doutrina, notadamente porque a responsabilidade civil do Estado por ato do poder público declarado incompatível com a Carta Política traduz, em nosso sistema jurídico, um princípio de extração constitucional. (Recurso Extraordinário n. 163.039)
Versando a mesma matéria e de iterativo teor, o segundo julgamento foi assim ementado:
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO - LEI INCONSTITUCINAL - INDENIZAÇÃO - O Estado responde civilmente por danos causados aos particulares pelo desempenho inconstitucional da função de legislar. (Recurso Extraordinário n. 153.464)
Deduz-se, do conjunto de decisões citadas, incluídas aquelas do Supremo Tribunal Federal, que o que domina a jurisprudência brasileira é o franco reconhecimento da responsabilidade patrimonial do Estado legislador.
4. A rejeição da teoria da irresponsabilidade do Estado legislador
Já se viu que a ideia do Estado irresponsável amoldava-se ao sistema absolutista, tendo, paradoxalmente, encontrado campo de afirmação também no modelo liberal de Estado.O Estado intervencionista e o avanço na formulação sobre o Estado de Direito permitiram, inicialmente, mediante adaptação das teorias civilistase, em seguida, pela idealização e desenvolvimento de teorias publicistas, a plena refutação da tese da irresponsabilidade estatal (ESTEVES, 2003, p.203).
O argumento clássico de que a lei traduz a soberania estatal não resiste à constatação, segundo Caio Mário da Silva Pereira (2006, p.136), de que “a Constituição demarca seus próprios poderes. A lei tem os seus poderes confinados pela Constituição”. A possibilidade de que o legislador venha a romper os limites demarcados pela ordem constitucional, transpondo, assim, o limite da liceidade, desmente a afirmação sobre o caráter incontrastável da lei, desconfigurando a idéia de aparente contradição entre atividade legislativa e responsabilidade.
Na defesa da irresponsabilidade do estado legislador, ensaiou-se ainda o argumento referente à natureza geral, impessoal e abstrata da lei, que seria, assim, insuscetível de causar danos.
Tem-se, todavia, como certo que o caráter primário e conseqüentemente geral e abstrato da função normativa não impede, na atual concepção de Estado, se editem as chamadas leis-providência ou leis de efeitos concretos, destinadas a atingir determinado indivíduo ou um grupo certo de indivíduos (ESTEVES, 2003, p.207).
A transfiguração da concepção da lei nos sistemas atuais é detectada ainda por José Joaquim Canotilho, em citação de Maria Emília Mendes Alcântara (1988, p.55):
Muitas das modernas leis não são já normas gerais e abstratas, mas sim reações estaduais tendentes a resolver problemas concretos e singulares, situações de necessidade carecidas de remédio urgente, dotadas de executividade imediata e aderentes a um facto determinado.
Acrescenta-se que, conquanto abstrata e impessoal, a lei cumpre a vocação de se realizar no plano concreto, vale dizer, de se encontrar a situação hipoteticamente descrita e sobre ela incidir. Assim, ainda que genérica e impessoal, poderá a lei, assimilada na realidade prática, produzir efeitos laterais ou acessórios que impliquem o sacrifício de direitos, constrangimentos considerados necessários à realização do interesse perseguido pela norma.
A favor da tese da irresponsabilidade tem-se, ainda, dois argumentos clássicos, quais sejam aquele que reputa a legislação como função da sociedade, que compõe o parlamento, mediante eleição democrática, e o que vê no instituto da imunidade parlamentar óbice ao reconhecimento do dever ressarcitório do Estado por danos causados por lei (ESTEVES, 2003, p.210).
A insuficiência do primeiro argumento é demonstrada por Maria Emília Mendes Alcântara (1988, p.56), para quem a dicotomia Estado-sociedade encontra-se superada. A autora conclui que “a ideia de que os danos resultantes da legislação traduzem a vontade social, não sendolícitos imputá-los ao Estado, não se encontra em correspondência com o processo integrativo Estado-sociedade dos dias atuais, deixando de ter qualquer validade ao se verificar o desaparecimento de seu pressuposto sociológico”.
A edição de normas legislativas constitui, pois, forma de emanação do Estado, assim considerado ente jurídico, dotado de responsabilidade própria, no exercício de suas atribuições e se tais encargos são exercidos fora dos limites demarcados pelo ordenamento jurídico, se transformam em práticas antijurídicas que serão deixadas sem efeito pelos Tribunais, ante a iniciativa do lesado (GORDILLO, 1977, p. 67).
Igualmente sem préstimo o segundo argumento, que vê na inviolabilidade do parlamentar fator impeditivo da responsabilidade do Estado. Ocorre que, como já visto, a responsabilidade civil do Estado, segundo a definição constitucional, é de natureza objetiva, não pressupondo qualquer culpa ou dolo do agente público.
Superados os argumentos utilizados na defesa da irresponsabilidade do Estado legislador, passa-se à análise dos fundamentos e pressupostos desse dever estatal.
5. Hipóteses em que se configura a responsabilidade do Estado por ato legislativo
Neste tópico se fará um exame das hipóteses de cabimento da responsabilidade civil do Estado por atos legislativos, analisando e justificando as causas que ensejam tais responsabilidades, partindo, inicialmente, da responsabilidade por ato legislativo inconstitucional, mais pacífica na doutrina, depois para a responsabilidade por ato legislativo constitucional e omissões inconstitucionais, com muita divergência doutrinária.
5.1 Responsabilidade do Estado por ato legislativo inconstitucional
Na supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento reside o fundamento do controle de constitucionalidade, considerado garantia de observância dos direitos fundamentais, elemento indissociável da noção de Estado de Direito.
O dever de ressarcir não se impõe pelo exercício irregular da função legislativa, nesse caso comparado ao mau funcionamento do serviço público. Estarão, necessariamente, conjugados os fatores da inconstitucionalidade e a ocorrência do dano. Como analisa Cretella Júnior (1999, p. 16), “o que é imprescindível é que se verifique o nexo causal entre a lei inconstitucional e o dano ocorrido”.
A submissão do administrador público ao princípio da legalidade determina que a conduta administrativa se dê segundo a pauta legal. A circunstância de intermediação, isto é, da prática de ato administrativo fiel ao comando legal e necessário à sua execução, não desnatura, na hipótese de dano, a realidade de que a causa da lesão se situa na inconstitucionalidade da lei, originada, pois, no desempenho da função de legislar (ESTEVES, 2003, p. 221).
É clara, então, a responsabilidade civil do Estado por leis ou emendas inconstitucionais, tendo em vista as reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal a respeito do tema e em razão da própria natureza do dano, uma vez que o dano nasce de uma lei ilegal e ilegítima dentro do ordenamento jurídico.
A edição de uma lei inconstitucional poderá, portanto, ensejar a responsabilidade do Estado, caso tenha ela efetivamente causado dano ao particular. A responsabilização do estado, nessa hipótese, depende da declaração da inconstitucionalidade da lei pelo Supremo tribunal federal, guardião da Carta Política. Não se deve imaginar, entretanto, uma obrigação de indenizar automática. Havendo a declaração de inconstitucionalidade da lei, a pessoa que tenha sofrido danos oriundos da sua incidência terá que ajuizar uma ação específica pleiteando a indenização.
5.1.1 Ofensa ao princípio constitucional da igualdade
Constrói-se a orientação de que se reconhece a responsabilidade do Estado legislador fundada na igualdade de distribuição das cargas públicas. Tendo em vista que a igualdade não pressupõe um tratamento jurídico indiferenciado das pessoas, tem-se, na fixação do critério de discriminação, o ponto máximo do problema da igualdade.
Há que se lembrar, nesse passo, com José Afonso da Silva (1999, p.441), que “o princípio da igualdade [...] dirige-se primeiramente ao legislador”. Assim, a liberdade de atuação legiferantecomeça encontrando limites na realização desse valor jurídico.
Os limites serão ultrapassados pelo legislador, que assim incidirá em inconstitucionalidade, sempre que a discriminação contida na lei se revelar desconforme com os fins expressos ou implícitos do ordenamento constitucional.
5.1.2 Ofensa ao direito adquirido
O poder estatal de criar e alterar o ordenamento jurídico encontra limites na proteção constitucional dispensada ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e á coisa julgada. Trata-se de cláusula constitucional que se impõe em nome do princípio da estabilidade das relações jurídicas (Medauar, 2005, p. 130).
Assim, a Constituição exaltou a proteção do direito adquirido a nível de direito fundamental, impondo limites, tanto na elaboração quanto na aplicação da lei, ao determinar que a lei nova não poderá alcançar situação subjetiva resultante da incidência do ordenamento jurídico anterior.
Se o direito adquirido assume caráter de patrimonialidade, representado pelo ingresso material no patrimônio jurídico de alguém, e se essa incorporação se deferiu por previsão constitucional, o status de direito inviolável pela legislação nova, resulta que o ato legislativo que despreze ou ignore a proteção deve ser tido como inconstitucional, do que decorreria, ainda, em caso de lesão, o dever estatal de indenizar (ESTEVES, 2003, p. 225- 226).
5.1.3 Desvio de finalidade no exercício da função legislativa
O desvio de poder legislativo pode se manifestar, tanto nas leis gerais e abstratas, conformado, nesse caso, na estipulação de meio inadequado aos fins constitucionais, e na adoção de medida legislativa inadequada, contraditória ou desarrazoada, quanto nas leis individuais ou de efeitos concretos, em que o vício poderá despontar na sua modalidade subjetiva, consubstanciada na perseguição de benefícios ou prejuízos especiais.
Nesse caso, o reconhecimento do desrespeito aos limites da delegação ou da vinculação constitucional, gerará a invalidação do ato legislativo, de onde decorrerá o dever de indenizar os danos da lei inconstitucional.
5.2 Responsabilidade do Estado legislador por lei constitucional
Embora eventualmente geradora de restrições, a lei, quando conformada à ordem constitucional, busca necessariamente o proveito geral, pois não o sendo, incidiria em inconstitucionalidade por desvio de finalidade.
Já se viu que a imposição de ônus demasiadamente excessivo, que importe a própria supressão do direito individual ou a inviabilizaçãodo seu exercício, resulta em ofensa ao ordenamento constitucional, situando o problema da responsabilização no plano da lei inconstitucional (ESTEVES, 2003, p. 236).
Vale ressaltar que, todavia, haverá situações em que as restrições se possam ter como necessárias, ainda que atingindo determinada parcela da coletividade, a fim de evitar risco ou prejuízo para toda a coletividade. A diferenciação de tratamento não estaria, nesse caso, malferindo valores constitucionais, mas harmonizando interesses coletivos e individuais. A lei poderia, então, ainda que considerada constitucional, especialmente à luz do princípio constitucional da proporcionalidade, gerar prejuízos a determinado indivíduo ou grupo de indivíduos.
Surge, então, intrincada questão da possibilidade ou não de responsabilização do estado legislador por lei constitucional, assim formulada por José Cretella Júnior (1999, p. 195), “pode uma lei, no todo ou em cada uma de suas partes, que está em perfeita consonância com a Constituição, trazer prejuízos ao particular?”
O mesmo Cretella (1999, p. 195) responde a questão, registrando que a ofensa se dá todas as vezes que a lei, sem os atributos da impessoalidade e generalidade, “enquadra uma só pessoa ou restrito número de administrados”, sendo, segundo o referido professor, nesse caso, possível a responsabilização.
Tem-se, nesse caso, uma lei de efeitos concretos, consideradas aquelas que não possuem generalidade, abstração e impessoalidade.
Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2005,p.590):
O ato legislativo, por suas características de generalidade e de abstração, não causa danos diretos, de modo que, se, por hipótese, da revogação ou da derrogação do direito objetivo decorrem danos, não serão mais que prejuízos de fato, e o Estado nada tem a indenizar. Diferentemente, se a lei permitir uma execução direta, imediata e concreta, ela terá natureza de um ato materialmente administrativo e, nestas condições, poderá causar danos indenizáveis.
Embora ainda polemica a questão, vislumbram-se dois dos principais fundamentos para o reconhecimento dessa responsabilidade do estado legislador por lei constitucional. Vejamos:
5.2.1 Responsabilidade com fundamento no princípio da igualdade
Embora eventualmente geradora de restrições, a lei, quando conformada à ordem constitucional, busca necessariamente o proveito geral, pois não o sendo, incidiria em inconstitucionalidade por desvio de finalidade.
Já se viu que a imposição de ônus demasiadamente excessivo, que importe a própria supressão do direito individual ou a inviabilizaçãodo seu exercício, resulta em ofensa ao ordenamento constitucional, situando o problema da responsabilização no plano da lei inconstitucional (ESTEVES, 2003, p. 236).
Assumindo caráter específico ou excepcional, as limitações, conquanto não ofensivas do núcleo intangível do direito individual, abririam espaço para o surgimento do dever estatal de indenizar, sempre em nome da repartição equitativa dos proveitos e das cargas públicas.
Não se pode abandonar a noção de especialidade e anormalidade do dano como requisito da responsabilidade do Estado legislador. A exigência é figurada no equilíbrio entre o interesse público perseguido pela norma e os direitos individuais.
Assim, nos casos em que a lei possui executividade imediata, atingindo apenas situações particulares, onerando uma pessoa de modo especial e anormal, que sofrerá, então, danos excepcionais resultantes diretamente da lei, configurar-se-á a responsabilidade do Estado por não ter preservado o princípio da isonomia.
5.2.2 Responsabilidade com fundamento no direito de propriedade
O dever de ressarcir, de certa maneira, vincula-se à ideia de violação do patrimônio, seja na esfera material ou moral do prejudicado, daí admitir-se, à mingua de outra forma mais adequada, a recomposição dos danos, mesmo os morais, pela fixação de indenização que traduza a amplitude do sofrimento ou dano experimentado.
Assim, percebe-se que o dever de indenizar manifesta-se, especialmente quanto ao dano material, como decorrência da afetação negativa do direito de propriedade, considerado em sua acepção clássica, como o liame existente entre o proprietário e a coisa que se encontra sob seu domínio e as amplas faculdades daí decorrentes.
Por outro lado, o caráter relativo do direito fundamental da propriedade está, a seu turno, evidenciado pela exigência constitucional de cumprimento da função social.
Desse modo, quando se verificar tensão ou contraste entre o interesse público e o interesse privado, a restrição legal ao direito de propriedade deverá refletir a justa ponderação e o equilíbrio entre os direitos protegidos, fazendo com que a exigência limitadora só se revele legítima, quando necessária ao estabelecimento da harmonização entre os dois valores constitucionalmente protegidos.
Em hipóteses de limitação atípica de outras liberdades fundamentais, como o livre exercício de atividade ou profissão ou a liberdade de iniciativa, pode-se estar diante de dano individual acarretado por norma considerada constitucional.
Porém, os direitos individuais, por seu valor nuclear no sistema jurídico, só admitem restrições que se instalem em nome do interesse coletivo e não importem em supressão do conteúdo essencial do direito individual constitucionalmente protegido (Stumm, 1995, p. 93).
A utilização de parâmetros válidos da equalização dos interesses – ditados pelo princípio da proporcionalidade – não impedirá o surgimento do dever de indenizar, quando as restrições, conquanto necessárias, se situam no plano de anormalidade e especificidade, representada pelo ferimento ao conteúdo essencial do direito de propriedade. Em tais casos, a restrição especialmente imposta ao particular, como forma de se obter a realização da função social, deverá se compensar pela indenização devida (ESTEVES, 2003, p. 241).
Os tribunais pátrios já vem adotando esse entendimento, ao menos quanto à preocupação em assegurar a indenização pelo sacrifício de direito individual em detrimento da coletividade.
Assim sendo, conforme o caso, como bem anotado por Carlos Ari Sundfeld (1983, p. 79-83), dever-se-ão indenizar até mesmo condicionamentos genéricos (como os decorrentes de legislação urbanística) desde que obstaculizem a viabilidade prática e econômica do emprego da coisa.
5.3 Omissões legislativas inconstitucionais
Cuidando da responsabilização do estado por ato legislativo, oportuna a verificação de eventual responsabilidade também pela omissão legislativa, uma vez que há potencialidade de dano e, consequentemente, pode surgir a responsabilidade civil, tanto de conduta comissiva como de omissiva.
Em casos que ocorrem omissões, com prazo certo e conteúdo determinado, já se tem pronunciamento do STF, em que tratou do § 3º, do Art. 8º, do ADCT, em sede de Mandado de Injunção, e autorizou os ofendidos aprocurarem a justa indenização, pela inércia reconhecida e pelo não atendimento da determinação jurisdicional de legislar.