7. Normas jurídicas
Vistas as fontes de normas jurídicas, convém discorrer sobre as normas jurídicas. Se o Direito tem a função de contribuir para a paz, a harmonia e a ordem sociais, então tais finalidades devem ser atingidas de alguma maneira – por meio das normas jurídicas. Daí se afirmar que as normas jurídicas são instrumentos que dispõem sobre o comportamento dos membros de uma sociedade; são elas que determinam (ou ajudam a determinar) as condutas humanas. Diante disso é que se pode dizer que as normas jurídicas são normas de conduta porque regulamentam comportamentos humanos. Mas não apenas isso, além de regulamentarem condutas humanas, as normas jurídicas determinam a organização das instituições e dos institutos sociais. Nesse sentido, pode-se conceituar uma norma jurídica como o instrumento que serve à regulamentação de comportamentos, condutas humanas, e de organização da sociedade; fala-se, portanto, em normas de conduta, no primeiro caso, e em normas de estrutura, no segundo caso.
Pelo fato de servirem à regulamentação de comportamentos humanos, isto é, pelo fato de o seu sentido revelar a expressão de um valor, as normas jurídicas podem ser referidas como decorrentes de valores: “a norma jurídica nasce de uma decisão do homem entre múltiplas possibilidades, porque normas implica eleger baseando-se num juízo de valor[30]”. Consubstanciando os valores previamente considerados para a sua formação, as normas jurídicas prescrevem condutas de acordo com a finalidade do Direito. Dizer que uma norma jurídica prescreve é o mesmo que dizer que ela determina, ou seja, que ela “é imperativa como toda norma destinada a regular o agir do homem e a orientá-lo para suas finalidades. É imperativa porque impõe um dever, um determinado comportamento[31]”.
Mas a norma jurídica não é apenas imperativa, é, também, atributiva, no sentido de que atribui ao lesado pela violação da conduta prescrita na norma a faculdade de exigir do violador o cumprimento da norma ou a reparação pelo dano sofrido[32]. Alguns autores entendem que a norma não é essencialmente atributiva, e sim autorizativa, “porque o que compete a ela é autorizar ou não o uso dessa faculdade de reação do lesado[33]”. Assim, pode-se dizer que “a norma jurídica é imperativa porque prescreve as condutas devidas e os comportamentos proibidos e, por outro lado, é autorizante, uma vez que permite ao lesado pela sua violação exigir o seu cumprimento, a reparação do dano causado ou ainda a reposição das coisas ao estado anterior[34]”.
As normas jurídicas assim como as normas morais são imperativas, de maneira que o que distingue umas das outras é o caráter autorizante das normas jurídicas. Além disso, as normas jurídicas são bilaterais (por um lado, impõem um dever a uma pessoa; por outro lado, autorizando a exigência pelo lesado de seu cumprimento) e as demais normas, incluídas as morais, são unilaterais (só estabelecem o dever) – daí que “o cumprimento das obrigações morais deve ser voluntário; a obrigação jurídica pode ser satisfeita inclusive mediante o uso de medidas repressivas[35]”. Há que se considerar, também, que as normas jurídicas são heterônomas, ou seja, postas por terceiros e que, enquanto vigentes, obrigam e se impõem, ainda que contra a vontade dos obrigados, ou seja, por mais iníquas que sejam, devem ser respeitadas e obedecidas; ao contrário, as normas morais são autônomas, só obrigando se o próprio indivíduo as aceita como obrigatórias. Além disso, as normas jurídicas são gerais, porque regulamentam condutas de maneira universal, ou seja, sem se dirigir a um indivíduo ou a um grupo específico de pessoas, e abstratas, já que sua previsão não se encontra no mundo dos fatos (mundo ôntico), e sim no mundo das ideias, no mundo hipotético (mundo deôntico).
Portanto, as normas jurídicas enquanto instrumentos de regulamentação de condutas humanas e de estruturas sociais são imperativas, atributivas ou autorizantes, bilaterais, heterônomas, abstratas e gerais. Some-se a isso a coercibilidade, que não é propriamente uma característica das normas jurídicas, mas uma consequência provável para quando elas forem descumpridas, significando a possibilidade de que uma norma seja cumprida mediante o uso de medidas coercíveis (repressivas), seja a violência física ou psicológica, desde que legítimas. Vertendo-se isso em conceito, pode-se dizer que normas jurídicas são instrumentos impositivos, gerais e abstratos, estabelecidos pelo Estado, e que se orientam para uma determinada finalidade, determinam comportamentos ou prescrevem uma organização, atribuindo ou autorizando as pessoas a exigirem seu cumprimento, inclusive mediante o uso de medidas coercitivas.
As normas jurídicas podem ser classificadas de variadas formas, aqui estão as que se reputam, aqui, mais úteis para o Curso de Direito:
1) Quanto à imperatividade: a) cogentes, impositivas ou de ordem pública, revelam imperatividade absoluta, ordenando ou proibindo algo de maneira absoluta, ou seja, sem que o particular possa intervir, a fim de que não sejam trazidos prejuízos à sociedade – são normas que tutelam interesses fundamentais, o bem comum; b) dispositivas ou de ordem privada, revelam imperatividade relativa, podendo ser permissivas (quando consentem abstenções ou ações) ou ser supletivas (quando suprem a falta de manifestação das partes).
2) Quando ao autorizamento: a) mais que perfeitas, quando violadas ensejam nulidade do ato com restabelecimento ou não da situação anterior (statu quo ante) e aplicação de pena; b) perfeitas, quando violadas ensejam a nulidade ou a anulação do ato; c) menos que perfeitas, quando violadas determinam a aplicação de pena; d) imperfeitas, quando violadas não proporcionam qualquer consequência jurídica.
3) Quanto à hierarquia: a) internacionais; b) supraconstitucionais; c) constitucionais; d) supralegais; e) legais; f) infralegais; g) individuais.
4) Quanto à natureza das disposições: a) substantivas ou materiais, quando criam direitos e impõem deveres; b) adjetivas ou processuais, quando regulam a maneira como efetivar as relações jurídicas ou fazer valer direitos e deveres.
5) Quanto à aplicação: a) normas de eficácia absoluta, quando não podem ser alteradas senão por uma nova ordem constitucional – são as cláusulas pétreas; b) normas de eficácia plena, quando suficientes para regulamentar as relações jurídicas; c) normas de eficácia restringível ou contida, quando têm aplicabilidade imediata, mas sua eficácia pode ser reduzida por lei; d) normas de eficácia relativa complementável ou de eficácia limitada, quando dependem, para produzir efeitos, de norma posterior que lhe dê eficácia.
6) Quanto ao poder de autonomia legislativa: a) nacionais, quando criadas pela União, sendo válidas para toda a nação; b) federais, quando criadas pela União, sendo válidas em todo o território federal; c) estaduais, quando criadas pelos Estados, sendo válidas em todo o território do respectivo Estado; d) municipais, quando criadas pelos Municípios, sendo válidas em todo o território do respectivo Município.
7) Quanto à sistematização: a) esparsas ou extravagantes, quando regulamentam uma determinada matéria de maneira isolada; b) codificadas, quando regulamentam uma determinada matéria, organizando-se em um corpo orgânico; c) consolidadas, quando, sendo sobre um determinado assunto, encontram-se reunidas várias leis esparsas.
As normas jurídicas têm três planos de validade. O primeiro é o plano formal (ou jurídico), do que se extrai a vigência da norma jurídica, ou seja, que tenha sido criada pelo poder competente e com a obediência dos procedimentos legais. O segundo é o plano social, que é também referido como de validade fática ou, ainda, de eficácia, do que se extrai se a norma pode ser aplicada pela autoridade (contém os elementos normativos que permitem sua atuação concreta) e é obedecida pelos seus destinatários (produz efeitos por estar adequada à realidade). O terceiro é o plano ético, pelo que a norma jurídica consiste na realização de valores socialmente exigíveis, embora, em si, ela não valore fatos.
Vistas essas questões preliminares (conceito, características, classificações e planos de validade) sobre as normas jurídicas, cumpre discorrer sobre a sua estrutura lógica. O entendimento acerca da estrutura lógica das normas jurídicas é fundamental para que se possa entender como o Direito se comporta.
Foi dito que as normas jurídicas regulamentam os comportamentos humanos e a organização das instituições. Todavia, as normas jurídicas não são pré-fabricadas, nem se encontram determinadas no ordenamento jurídico. Assim, as fontes formais jurídicas não introduzem, necessariamente, normas jurídicas num determinado ordenamento, e sim enunciados prescritivos (normativos), sobre os quais incidirá a linguagem especializada, transformando-os em normas jurídicas. Portanto, há que se ter em mente isso: enunciados prescritivos são introduzidos num ordenamento jurídico mediante um veículo introdutor específico (fontes formais), de maneira que o operador do Direito, isto é, o especialista em Direito, irá ler e interpretar esse enunciado prescritivo, relacionando-o com outros, presentes no mesmo ordenamento jurídico, extraindo daí normas jurídicas.
A importância da estrutura lógica das normas jurídicas está exatamente no modo de entender como elas são compostas, sobre o que elas se aplicam e o que elas podem gerar. Assim, simplificadamente, uma norma jurídica é formada por uma hipótese (um fato ou ato jurídico abstratamente previsto em enunciados prescritivos) que se ocorrer no mundo concreto e for observada por um agente competente irá incidir sobre o fato ou o ato concreto, que será subsumido àquela hipótese, gerando, assim, uma consequência jurídica – que será a formação de uma obrigação jurídica intersubjetiva. Essa obrigação jurídica relaciona dois sujeitos, um ativo (dono de um direito subjetivo) e um passivo (dono de um dever jurídico), ligados por um mesmo objeto (bem da vida) que é devido por um ao outro mediante uma prestação (dar, pagar, fazer ou não fazer). Se for descumprida essa prestação, poderá ser aplicada uma sanção, responsabilizando-se o sujeito inadimplente.
Como se observará nas próximas seções, a partir daqui se estudam tanto a aplicação quanto a interpretação das normas jurídicas. Assim, na próxima seção, será estudado o ordenamento jurídico, ou seja, a dinâmica das normas jurídicas, o que se pode chamar de nomodinâmica, distinguindo os elementos constituintes desse ordenamento (normas, regras e princípios), compreendendo a importância da estrutura escalonada (o que se convencionou denominar de pirâmide normativa) e identificando as características do ordenamento jurídico (unidade, coerência e completude). O estudo dessas questões tem como objetivo abrir o caminho para se entender os métodos e espécies de interpretação, as formas de integração do ordenamento e a solução de antinomias entre normas, bem como para introduzir conceitos relacionados com a obrigatoriedade, a vigência e a extinção das normas, e com o que diz respeito ao seu cumprimento.
8. Introdução ao ordenamento jurídico
As normas jurídicas não existem isoladamente, elas fazem parte de um conjunto: o ordenamento jurídico. O estudo singular e isolado das normas jurídicas denomina-se nomostática, enquanto o estudo de suas relações entre si, enquanto pertencentes a um ordenamento jurídico, é chamado de nomodinâmica. A partir do estudo do conjunto de normas jurídicas, isto é, do ordenamento jurídico, extrai-se que este é complexo, não só porque composto por várias normas jurídicas, mas também porque a relação entre elas não se dá de maneira linear. Em virtude dessa complexidade é que surgem problemas sobre o comportamento de um ordenamento jurídico, isto é, sobre a sua dinâmica. Eis aí a relevância de se estudar a nomodinâmica, em primeiro lugar, como se faz neste tópico, a partir do entendimento de alguns conceitos básicos, em segundo lugar, como se faz nos tópicos subsequentes, a partir do aprofundamento desses conceitos e das questões a eles atinentes.
O primeiro conceito básico que deve ser apreendido é o de unidade do ordenamento jurídico, pelo que, apesar de as normas jurídicas emanarem de fontes variadas, todas elas se reportam, no fim das contas, a uma única norma ou regra fundamental que identifica o ordenamento jurídico e “que orienta e dirige a interpretação e aplicação das normas singulares que o integram[36]”. É a unidade que determina a validade, isto é, a pertinência da norma ao ordenamento, além de estabelecer, também, uma necessária hierarquia normativa. Pode-se dizer que, pela unidade, o ordenamento jurídico é um conjunto de normas jurídicas de diferentes níveis hierárquicos que formariam uma pirâmide, ou melhor, uma estrutura escalonada.
Ao discorrer sobre a nomodinâmica, Kelsen[37] trata sobre o que ele chama de norma hipotética fundamental, a qual seria o fundamento de validade de toda e qualquer ordem normativa. Com ela, o autor estabeleceu um ponto além do qual o que se estuda não são as normas jurídicas e suas relações, mas algo distinto; e também, ao mesmo tempo, um ponto que fundamenta a validade das normas jurídicas, evitando regressões infinitas na busca pelo fundamento de validade das normas jurídicas de um ordenamento. Pode-se, assim, definir a norma hipotética fundamental como a fonte comum de validade de todas as normas pertencentes a um mesmo ordenamento jurídico; por conta dela é que se pode afirmar que o ordenamento jurídico é um sistema, isto é, uma totalidade ordenada.
A funcionalidade, portanto, de uma norma hipotética fundamental é estabelecer a nota da unidade de um ordenamento jurídico, pois, como escreve Joseph Raz, o ordenamento jurídico não é um conjunto de normas escolhidas ao acaso[38]. É importante observar que a norma hipotética fundamental não é jurídica, mas lógica, estabelecendo, abaixo de si, uma estrutura escalonada, que os autores costumam chamar de pirâmide normativa. Dela decorrem dois axiomas: o primeiro é o de que sempre haverá uma norma determinante (superior) e uma norma determinada (inferior), pertencendo, ambas, a um mesmo sistema jurídico[39]; o segundo é de que todas as normas dum ordenamento jurídico são autorizadas (determinadas) direta ou indiretamente por outra[40]. Esses dois axiomas resumem bem o modo pelo qual se relacionam as normas que compõem um ordenamento jurídico.
Considerando-se a pirâmide normativa, tem-se, em ordem decrescente a seguinte ordem de normas: no primeiro escalão, as normas constitucionais; no segundo, as normas legais; no terceiro escalão, as normas infralegais. Com base nisso, tem-se que as normas constitucionais determinam ou autorizam as normas legais e estas as normas infralegais. Noutras palavras, as normas infralegais buscam seu fundamento de validade nas normas legais, diretamente, e nas normas constitucionais, indiretamente; as normas legais buscam seu fundamento de validade nas normas constitucionais. E as normas constitucionais, em que normas elas buscam seu fundamento de validade? A resposta é: na norma hipotética fundamental. Ou seja, enquanto a norma hipotética fundamental é o fundamento lógico de validade de todo o ordenamento jurídico, as normas constitucionais são o fundamento jurídico desse ordenamento. Entender isso é essencial para que se possa compreender uma série de relacionamentos normativos durante o Curso de Direito.
Diretamente ligada a essa questão está o segundo conceito básico, o de coerência do ordenamento jurídico, que significa a compatibilidade entre as normas pertencentes a um mesmo sistema. De acordo com Antonio Enrique Pérez Luño, a coerência é “a tendência de todo ordenamento jurídico a conformar-se como um todo ordenado: um conjunto de elementos entre os quais se dá uma ordem sistematizada[41]”. Isso significa que é preciso que as normas jurídicas que fazem parte de um sistema não conflitem entre si, não sejam incompatíveis. Se houver incompatibilidade normativa, o resultado será a existência de antinomias, as quais deverão ser resolvidas, a partir do uso de determinados critérios e procedimentos, a fim de se manter a integridade, a unidade e a coerência do ordenamento jurídico.
Por fim, o terceiro conceito básico é o de completude ou da plenitude do ordenamento jurídico, o que significa que o sistema é completo, ou seja, a falta de normas jurídicas que regulamentem determinadas condutas, isto é, que a existência de omissões ou de lacunas é apenas algo aparente, já que o próprio ordenamento estabelece regras para resolver os casos omissos ou lacunosos, mediante procedimentos e técnicas de integração.
Esses três conceitos (unidade, coerência e completude), ao lado de outros que com eles têm alguma relação, serão mais bem discutidos na sequência, quando se passa a estudar os arts. 1º a 6º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). Os tópicos a seguir são organizados de acordo com a matéria constante dos artigos da LINDB. Em primeiro lugar, discorre-se sobre a obrigatoriedade das leis (arts. 1º e 3º da LINDB). Em segundo lugar, discorre-se sobre a revogação e a modificação das leis, as possíveis antinomias que podem daí advir, abordando os critérios para solucioná-las, e a questão sobre direito intertemporal (arts. 2º e 6º da LINDB). Em terceiro lugar, discorre-se sobre a interpretação das leis e sobre o problema das lacunas e os mecanismos de sua integração (arts. 4º e 5º da LINDB).