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O apressado come cru... ou a história do Procurador-Geral da República que ganhou um presente de grego no Natal!

26/12/2012 às 13:55
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Para surpresa geral, foi indeferida a decretação da prisão imediata dos condenados no processo do “Mensalão”. Depois de tantos erros grosseiros, a Constituição finalmente foi respeitada!

Como se sabe, antes do encerramento da sessão plenária do dia 17 de dezembro de 2012, que marcou o fim do julgamento da Ação Penal nº. 470 (o processo do “Mensalão”), o Procurador-Geral da República afirmou aos Ministros do Supremo Tribunal Federal que, embora tenha formulado, nas alegações finais e também na sustentação oral, o pleito de prisão imediata dos réus condenados, o faria em petição própria após a conclusão do julgamento. Naquela oportunidade, o chefe do Ministério Público da União considerou que a prisão dos réus antes do trânsito em julgado da condenação era cabível e afirmou que, por intermédio de uma petição (por que não logo?), iria expor essa pretensão de “forma mais adequada e também seus fundamentos”.

Pois bem.

Não querendo submeter o seu pleito ao Colegiado, certamente crente que o Ministro relator da ação penal iria atender ao seu pedido monocraticamente (como tudo indicava, tendo em vista a maneira inquisitorial e persecutória como o Ministro conduziu todo o processo), qual não foi a surpresa geral quando foi indeferida a decretação da prisão imediata dos condenados, sob o argumento de que não havia “dados concretos que permitam apontar a necessidade da custódia cautelar dos réus (CPP, art. 312), os quais, aliás, responderam ao processo em liberdade”. Segundo a surpreendente e acertada (finalmente!) decisão do relator, não havia como prosperar o argumento do Procurador-Geral da República que “o acórdão que se pretende executar de imediato, embora ainda não transitado em julgado, seria definitivo”, apesar de ainda ser possível a interposição de embargos infringentes e embargos declaratórios. Observou o Ministro que a questão do cabimento ou não de embargos infringentes em caso de condenação criminal ainda será enfrentada pelo Plenário da Corte. Dessa forma, se em tese é possível ocorrer qualquer modificação do julgado, então se “afasta a conclusão de que o acórdão condenatório proferido pelo Supremo Tribunal Federal em única instância seria definitivo”. O Presidente do Supremo Tribunal Federal acrescentou que não se pode presumir que os advogados dos condenados venham a lançar mão do artifício da interposição de recursos meramente protelatórios para atrasar o início da execução da sanção imposta. “É necessário examinar a quantidade e o teor dos recursos a serem eventualmente interpostos para concluir-se pelo caráter protelatório ou não”. Ademais, o Ministro lembrou que “já foi determinada a proibição de os condenados se ausentarem do país, sem prévio conhecimento e autorização do Supremo Tribunal Federal, bem como a comunicação dessa determinação às autoridades encarregadas de fiscalizar as saídas do território nacional”.

Como se disse, nada obstante surpreendente, devemos reconhecer, diante de tantos erros grosseiros neste processo do “Mensalão”, que a Constituição finalmente foi respeitada. Quase inacreditável! É bem verdade que já houve tempo em que o réu não poderia apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se fosse primário e tivesse bons antecedentes (sic), assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime que se livre solto. (art, 594, CPP, já revogado).

Ora, o art. 5º., LVII, da Constituição proclama que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, sendo de todo inadmissível que alguém seja preso antes de definitivamente julgado, salvo a hipótese desta prisão provisória se revestir de caráter cautelar. Soa, portanto, estranho alguém ser presumivelmente considerado não culpado (pois ainda não condenado definitivamente) e, ao mesmo tempo, ser obrigado a se recolher à prisão, mesmo não representando a sua liberdade nenhum risco seja para a sociedade, seja para o Processo, seja para a aplicação da lei penal. Prisão provisória anterior a uma decisão transitada em julgado só se reveste de legitimidade caso seja devidamente fundamentada (art. 5º., LXI, CF/88) e reste demonstrada a sua necessidade (periculum libertatis[1]). Neste sentido, o atual art. 387, parágrafo único do Código de Processo Penal.

Se temos a garantia constitucional da presunção de inocência, é evidente que não pode ser efeito de um acórdão condenatório recorrível (ainda que do Supremo), pura e simplesmente, um decreto prisional, sem que se perquira quanto à necessidade do encarceramento. Como sabemos, entre nós, cabível será a prisão preventiva sempre que se tratar de garantir a ordem pública[2], a ordem econômica, ou por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. São estes os requisitos da prisão preventiva e que configuram exatamente o periculum libertatis. Estes requisitos, portanto, representam a necessidade da prisão preventiva, que não é outra coisa senão uma medida de natureza flagrantemente cautelar, pois visa a resguardar, em última análise, “a ordem pública”, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (há, ainda, os pressupostos desta prisão, que não nos interessam no presente artigo[3]).

Se assim o é a prisão será uma decorrência de uma sentença condenatória recorrível sempre que, in casu, for cabível a prisão preventiva contra o réu, independentemente de sua condição pessoal de primário e de ter bons antecedentes; ou seja, o que definirá se o acusado aguardará preso ou em liberdade o julgamento final do processo é a comprovação da presença de um daqueles requisitos acima referidos. Conclui-se que a necessidade é o fator determinante para alguém aguardar preso o julgamento final do seu processo, já que a Constituição garante que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”

Segundo Jacinto Nelson de Miranda Coutinho,

“a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. (...) Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime (...) ”[4]

A respeito, veja-se a preocupação dos juristas espanhóis Gimeno Sendra, Moreno Catena e Cortés Dominguez:

“Tampoco puede atribuirse a la prisión provisional un fin de prevención especial: evitar la comisión de delitos por la persona a la que se priva de libertad. La propia terminología más frecuentemente empleada para expresar tal idea – probable comisión de ´otros´ o ´ulteriores´ delitos – deja entrever que esta concepción se asienta en una presunción de culpabilidad. (…) Por las mismas razones no es defendible que la prisión provisional deba cumplir la función de calmar la alarma social que haya podido producir el hecho delictivo, cuando aún no se ha determinado quién sea el responsable. Sólo razonando dentro del esquema lógico de la presunción de culpabilidad podría concebirse la privación en un establecimiento penitenciario, el encarcelamiento del imputado, como instrumento apaciguador de las ansias y temores suscitados por el delito. (…) La vía legítima para calmar la alarma social – esa especie de ´sed de venganza´ colectiva que algunos parecen alentar y por desgracia en ciertos casos aflora – no puede ser la prisión provisional, encarcelando sin más y al  mayor número posible de los que prima facie aparezcan como autores de hechos delictivos, sino una rápida sentencia sobre el fondo, condenando o absolviendo, porque sólo la resolución judicial dictada en un proceso puede determinar la culpabilidad y la sanción penal.”[5]

Na Itália, o Juiz de Instrução Criminal do Tribunal de Pádua, Palombarini, assim decidiu acerca da prisão preventiva:

“Pena e prisão preventiva têm diversa natureza jurídica, diferentes objectivos, diversa função... Para decidir se uma certa garantia individual deve aplicar-se a um determinado instituto, é necessário atender, em primeiro lugar, à incidência do mesmo instituto sobre a esfera do indivíduo. Ora a prisão preventiva – embora diversa, como se disse, da pena – traduz-se para o indivíduo numa restrição total de sua liberdade. Diferentes os institutos, idênticos os valores em jogo e o perigo de lesão do fundamental direito da liberdade.”[6]

A propósito, vejamos a lição de Ronald Dworkin:

“O direito penal poderia ser mais eficiente se desconsiderasse essa distinção problemática e encarcerasse homens ou os forçasse a aceitar tratamento sempre que isso parecesse ter probabilidade de reduzir crimes no futuro. Mas isso, como sugere o princípio de Hart, significaria cruzar a linha que separa tratar alguém como ser humano e como nosso próximo e tratá-lo como um recurso para o benefício dos outros. Para as convenções e práticas de nossa comunidade, não pode haver insulto mais profundo que esse. O insulto é da mesma grandeza quando o processo recebe o nome de punição ou tratamento. É verdade que algumas vezes impomos restrições e submetemos a tratamento um homem apenas porque acreditamos que ele não tem controle sobre sua conduta. Fazemos  isso com base em leis que regem a custódia de civis e, de modo geral, após um homem ter sido absolvido de um crime sério com base numa alegação de insanidade. Mas devemos reconhecer o compromisso de princípio que essa política implica. Deveríamos tratar um homem contra a sua vontade apenas quando o perigo que ele representa é real e não sempre que calculamos que o tratamento poderá reduzir a ocorrência de crimes, se for adotado.”[7]

Afinal de contas, como já escreveu James Goldshimidt[8] a estrutura do processo penal de um país indica a força de seus elementos autoritários e liberais.[9] É óbvio que o Processo Penal funciona em um Estado Democrático de Direito como um meio necessário e inafastável de garantia dos direitos do acusado. Não é um mero instrumento de efetivação do Direito Penal, mas, verdadeiramente, um instrumento de satisfação de direitos humanos fundamentais e, sobretudo, uma garantia contra o arbítrio do Estado. Aliás, sobre processo, já afirmou o mestre Calmon de Passos, não ser “algo que opera como simples meio, instrumento, sim um elemento que integra o próprio ser do Direito. A relação entre o chamado direito material e o processo não é uma relação meio/fim, instrumental, como se tem proclamado com tanta ênfase, ultimamente, por força do prestígio de seus arautos, sim uma relação integrativa, orgânica, substancial.”[10]  Nesta mesma obra, o eminente processualista adverte que o “devido processo constitucional jurisdicional (como ele prefere designar), para evitar sofismas e distorções maliciosas, não é sinônimo de formalismo, nem culto da forma pela forma, do rito pelo rito, sim um complexo de garantias mínimas contra o subjetivismo e o arbítrio dos que têm poder de decidir.”[11]

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Certamente sem um processo penal efetivamente garantidor, não podemos imaginar vivermos em uma verdadeira democracia[12]. Como afirma Ada Pelegrini Grinover,

“o processo penal não pode ser entendido, apenas, como instrumento de persecução do réu. O processo penal se faz também – e até primacialmente – para a garantia do acusado. (...) Por isso é que no Estado de direito o processo penal não pode deixar de representar tutela da liberdade pessoal; e no tocante à persecução criminal deve constituir-se na antítese do despotismo, abandonando todo e qualquer aviltamento da personalidade humana. O processo é uma expressão de civilização e de cultura e consequentemente se submete aos limites impostos pelo reconhecimento dos valores da dignidade do homem.”[13]

O Processo Penal é antes de tudo “um sistema de garantias face ao uso do poder do Estado.” Para Alberto Binder, por meio do Processo Penal “procura-se evitar que o uso deste poder converta-se em um fato arbitrário. Seu objetivo é, essencialmente, proteger a liberdade e a dignidade da pessoa”[14]

Norberto Bobbio afirmava que os “direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais.”[15] Por outro lado, continua o filósofo italiano, “(...) os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.”[16]

Assim, a norma processual, ao lado de sua função de aplicação do Direito Penal (que é indiscutível), tem a missão de tutelar aqueles direitos previstos nas constituições e nos tratados internacionais. Exatamente por isso, o processo penal de um País o identifica como uma democracia ou como um Estado totalitário. Tornaghi com muitíssima propriedade já afirmava que “a lei de processo é o prolongamento e a efetivação do capítulo constitucional sobre os direitos e as garantias individuais”, protegendo “os que são acusados da prática de infrações penais, impondo normas que devem ser seguidas nos processos contra eles instaurados e impedindo que eles sejam entregues ao arbítrio das autoridades processantes.”[17]

Como dizia Frederico Marques,

“o processo é instrumento de atuação estatal vinculado, quase sempre, às diretrizes políticas que plasmam a estrutura do Estado. Impossível, por isso, subtrair a norma processual dos princípios que constituem a substância ética do Direito e a exteriorização de seus ideais de justiça. No processo penal, então, em que as formas processuais se destinam a garantir direitos imediatamente tutelados pela Constituição, das diretrizes políticas desta é que partem os postulados informadores da legislação e da sistematização doutrinária.[18]

Não há dúvidas que todo o conjunto de garantias penais reconhecidas, defendidas e buscadas pelos penalistas “quedaría incompleto si no fuese acompañado por el conjunto correlativo o, mejor dicho, subsidiário de las garantías procesales, expresadas por los princípios que responden a nuestras dos últimas preguntas, ´cuándo´ y ´cómo juzgar`: la presunción de inocencia hasta prueba en contrario, la separación entre acusación y juez, la carga de la prueba e el derecho del acusado a la defensa.”[19] Assim, por exemplo, ao Direito Penal mínimo corresponde um Direito Processual Penal garantidor.

Como ensina Alberto Bovino, não é possível

“que a situação do indivíduo ainda inocente seja pior do que a da pessoa já condenada, é dizer, de proibir que a coerção meramente processual resulte mais gravosa que a própria pena. Em conseqüência, não se autoriza o encarceramento processual, quando, no caso concreto, não se espera a imposição de uma pena privativa de liberdade de cumprimento efetivo. Ademais, nos casos que admitem a privação antecipada da liberdade, esta não pode resultar mais prolongada que a pena eventualmente aplicável. Se não fosse assim, o inocente se acharia, claramente, em pior situação do que o condenado. ”[20]

Entendemos, pois, incabível a decretação imediata da prisão dos réus do chamado processo do Mensalão, pois, como ensina Antonio Scarance Fernandes,

“se o réu apenas pode ser considerado culpado após sentença condenatória transitada em julgado, a prisão, antes disso, não pode configurar simples antecipação de pena, somente se justificando quando tiver natureza cautelar. Em suma, qualquer prisão durante o processo, para não haver ofensa ao princípio da presunção de inocência, deve ter natureza cautelar e não pode significar antecipação de pena, pois esta, necessariamente, deve ocorrer de sentença condenatória transitada em julgado.”[21]

Julian Lopez Masle e Maria Inês Horvitz afirmam que

“el principio de inocência no excluye, de plano, la posibilidad de decretar medidas cautelares de carácter personal durante el procedimiento. En este sentido, instituiciones como la detención o la prisión preventiva resultan legitimadas, en principio, siempre que no tengan por consecuencia anticipar los efectos de la sentencia condenatória sino asegurar fines del procedimiento”[22]

Também Alberto M. Binder:

“Já vimos que todas as medidas de coerção penal são, em princípio, excepcionais. Dentro dessa excepcionalidade, a utilização da prisão preventiva deve ser muito mais restringida e, para assegurar essa restrição devem ser considerados dois tipos de suposição. Em primeiro lugar, não se pode aplicar a prisão preventiva se não existe um mínimo de informação que fundamente uma suspeita sobre limite essencial e absoluto: se não existe sequer uma suspeita racional e com fundamento de que uma pessoa possa ser autora de um fato punível, de maneira nenhuma é admissível uma prisão preventiva. Porém, este requisito não é suficiente. Por mais que se tenha uma suspeita com fundamentos, tampouco seria admitida constitucionalmente a prisão preventiva se não houverem outros requisitos, os chamados ‘requisitos processuais’. Estes se fundamentam em que a prisão preventiva seja direta e claramente necessária para assegurar a realização do julgamento ou assegurar a imposição da pena.”[23]


Notas

[1] Expressão preferida pelos italianos, ao invés do periculum in mora (cfr. Delmanto Junior, Roberto,  in As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração, Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 67).

[2] Conceito por demais genérico e, exatamente por isso, impróprio para autorizar uma custódia provisória que, como se sabe, somente se justifica no processo penal como um provimento de natureza cautelar (presentes o fumus commissi delicti e o periculum libertatis). Há mais de dois séculos Beccaria já preconizava que “o réu não deve ficar encarcerado senão na medida em que se considere necessário para o impedir de escapar-se ou de esconder as provas do crime” (Dos delitos e das penas, São Paulo: Hemus, 1983, p. 55), o que coincide com dois outros requisitos da prisão preventiva em nosso País (conveniência da instrução criminal e asseguração da aplicação da lei penal). Decreta-se a prisão preventiva no Brasil, muitas vezes, sob o argumento de se estar resguardando a ordem pública, quando, por exemplo, quer-se evitar a prática de novos delitos pelo imputado ou aplacar o clamor público. Não raras vezes vê-se prisão preventiva decretada utilizando-se expressões como “alarma social causado pelo crime” ou para “aplacar a indignação da população”, e tantas outras frases (só) de efeito. Ressaltamos que o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Nelson Jobim, deferiu em parte a liminar pedida no Habeas Corpus nº. 84548, pois considerou que o decreto de prisão preventiva do acusado teria se desviado dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, por lhe faltar as indicações do que consiste a periculosidade do paciente e a quais riscos a ordem pública estaria exposta se ele respondesse à ação penal em liberdade, salientando, outrossim, que o entendimento do STF não permite que clamor público sirva como fundamento para a prisão preventiva. Ele observou que o acusado sempre colaborou com a instrução criminal e as investigações. Assim, o Ministro deferiu a liminar para revogar a prisão preventiva, se por outro motivo o acusado não estiver preso. Em outra oportunidade, a 1ª. Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu habeas corpus (Processo nº. 84778) a um servidor público que responde a processo pela prática de três crimes de concussão (art. 316 do Código Penal). O Ministro Sepúlveda Pertence, relator do processo, concedeu a ordem para revogar o decreto de prisão preventiva e permitir que o réu aguarde o julgamento da apelação em liberdade. Consoante Pertence, não há como falar em conveniência da instrução criminal se esta já terminou, nem invocar a garantia da ordem pública para não comprometer a imagem do Poder Judiciário. "Já repisei minha convicção acerca da ilegitimidade constitucional da prisão preventiva fundada na necessidade de satisfazer a ânsias populares de repressão imediata em nome da credibilidade das instituições públicas, dentre elas o Poder Judiciário", afirmou. Para o Ministro, tais considerações "desvelam o abuso da prisão processual para fins não cautelares, seja o de antecipação da pena, que aborrece a presunção da não-culpabilidade, seja a instrumentalização do encarceramento do acusado para a popularização do Judiciário, que repugna o princípio fundamental da dignidade humana". Por fim, sustentou o relator não ser motivo idôneo para a prisão preventiva a invocação da gravidade do crime ou o prestígio e a credibilidade do Judiciário. O voto do ministro-relator foi acompanhado pelos demais integrantes da Primeira Turma. Em um outro caso, um advogado acusado de participar da organização conhecida como "Rede Chebabe", que operava fraudes fiscais no ramo do comércio de combustíveis, vai responder às acusações em liberdade. A decisão foi tomada n no dia 14 de dezembro de 2004 pela 1ª. Turma do Supremo Tribunal Federal e foi estendida a outros três supostos participantes da organização, co-réus na denúncia contra o advogado. Nesta oportunidade, todos os Ministros da Turma seguiram o voto do relator, Ministro Sepúlveda Pertence, salientando “que o Supremo tem negado a manutenção de prisão preventiva quando o motivo é a invocação da gravidade do crime imputado.” O Ministro Marco Aurélio sustentou que “há de se aguardar a comprovação do fato criminoso a cargo do Ministério Público para posteriormente ter-se as conseqüências.” (HC nº. 85068). Em outra decisão recente, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio, concedeu duas liminares, em habeas corpus, a dois condenados por seqüestro, emasculação e assassinato de menores em Altamira, no Pará, entre 1989 e 1992. Com a decisão, eles poderão aguardar em liberdade o julgamento dos recursos de apelação que tramitam na 15ª Vara Penal do Tribunal do Júri de Belém (PA), contra as sentenças condenatórias. As respectivas prisões preventivas haviam sido decretadas com base no fato dos réus residirem em Estados diferentes do local do julgamento. Nas decisões monocráticas, o Ministro Marco Aurélio destacou que os condenados são réus primários, têm bons antecedentes e estão presos há mais de um ano. Afirmou que a circunstância de os condenados viverem em unidades da Federação diversas daquela em que foram julgados não é motivo para ensejar, por si só, a custódia, “afigurando-se o recolhimento como execução precoce, açodada, temporã do título judicial, sujeito ainda a modificação, em face da recorribilidade ordinária”, observando, ainda, que “o barulho da turba, a repercussão dos acontecimentos na sociedade, na mídia, não podem servir à execução precoce da pena”. (HC-85223). Mais recentemente (15/03/2005), a 1ª. Turma do Supremo Tribunal Federal confirmou liminar do Ministro Eros Grau que concedeu, em dezembro de 2004, liberdade provisória para um policial acusado de assassinar um Delegado da Polícia Civil em Minas Gerais. A decisão foi tomada no julgamento final de habeas corpus impetrado em favor do policial. Alegando "a notoriedade do clamor público em torno do caso e a repercussão na ordem pública", a Justiça de 1º. grau negou a possibilidade de o policial recorrer em liberdade da decisão que determinou seu julgamento pelo Tribunal do Júri por homicídio qualificado. Essa decisão foi mantida pelo Superior Tribunal de Justiça. O Ministro Eros Grau, ao deferir o pedido de habeas corpus e libertar o acusado, afirmou que os fundamentos no clamor público e na repercussão do caso não são "idôneos" para a manutenção da prisão preventiva. Na decisão, ele relacionou julgamentos do Supremo nesse sentido. (HC-85046 - grifo nosso). Também a falta de fundamentação do decreto de prisão levou a 5ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça a colocar em liberdade um acusado de participar da ação que resultou na morte de cinco integrantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra). Segundo o STJ, a decisão da 5ª. Turma revoga a prisão preventiva decretada por um Juiz de primeira instância de Minas Gerais e confirmada por um colegiado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Após realizar leitura detalhada do decreto de prisão expedido contra o réu, o ministro entendeu que a decisão da Justiça mineira não contém fundamentos concretos para justificar a manutenção da custódia cautelar, destacando quatro aspectos do decreto de prisão que, no seu entendimento, não são idôneos para embasar o argumento de ser a prisão necessária para garantia da ordem pública. O primeiro deles foi a existência de prova de materialidade e indícios de autoria do crime. Os outros foram a credibilidade da Justiça, a gravidade do delito e a ocorrência de comoção social. Para o Ministro, descolados de fatos concretos e respaldados em suposições, esses argumentos não são suficientes para justificar a custódia cautelar. Nesse sentido, citou vários julgados com entendimento semelhante do STJ e do Supremo Tribunal Federal. (HC nº. 41601).

[3]Fumus commissi delicti: indícios da autoria e prova da materialidade do crime.

[4] O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 11.

[5] Derecho Procesal Penal, Madrid: Colex, 3ª. ed., 1999, pp. 522/523.

[6]Apud Américo Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 1990, p. 251.

[7] “Levando os direitos a sério”, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 18/19.

[8] Para Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “nunca foi tão importante estudar os Goldschmidt, mormente agora onde não se quer aceitar viver de aparências e imbrogli retóricos.” (O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 12).

[9]Apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 37.

[10] Direito, Poder, Justiça e Processo, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 68.

[11] Idem, p. 69.

[12] Apesar de que, como ensina Norberto Bobbio, “(...) a Democracia perfeita até agora não foi realizada em nenhuma parte do mundo, sendo utópica, portanto.” (Dicionário de Política, Brasília: Universidade de Brasília, 10ª. ed., 1997, p. 329).

[13] Liberdades Públicas e Processo Penal – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2ª. ed., 1982, pp. 20 e 52.

[14] Introdução ao Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 25, na tradução de Fernando Zani.

[15] Norberto Bobbio, A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 01.

[16] Idem, p. 05.

[17] Compêndio de Processo Penal, Tomo I, Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1967, p. 15.

[18] José Frederico Marques, Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 37.

[19] Luigi Ferrajoli, Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 3ª. ed., 1998, p. 537. 

[20]Apud Rogerio Schietti Machado Cruz, “Prisão Cautelar – Dramas, Princípios e Alternativas”, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 100.

[21] Processo Penal Constitucional. 4ª edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 315.

[22] Derecho Processual Penal Chileno,  Tomo I,  Santiago do Chile : Editorial Jurídica de Chile, 2003, p. 83.

[23] Introdução ao Direito Processual Penal, Tradução de Fernando Zani, Rio de Janeiro : Editora Lumen Juris, 2003, p. 150.

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Sobre o autor
Rômulo de Andrade Moreira

Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos do Ministério Público do Estado da Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador - UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG) e IELF (SP). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Rômulo Andrade. O apressado come cru... ou a história do Procurador-Geral da República que ganhou um presente de grego no Natal!. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3465, 26 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23323. Acesso em: 28 mar. 2024.

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