Em 30 de agosto último, foi publicada lei federal que renovou as discussões em torno das cotas para o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. Trata-se da Lei nº 12.711/12, originada do Projeto de Lei nº 180/08, recentemente aprovado pelo Senado Federal (Projeto de Lei nº 73/99, de autoria da Deputada Nice Lobão). Apesar de contar com apenas nove artigos, a norma deve ser lida e interpretada com calma. É necessário atentar para o que a Constituição de 1988 estabelece sobre o ingresso no ensino superior público federal e no ensino técnico médio federal e, em seguida, analisar a lei em cotejo com o texto constitucional para avaliar sua constitucionalidade.
Por um lado, a Constituição Federal determina que o ensino deva ser ministrado em igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola, garantindo-se o padrão de qualidade do ensino, bem como o acesso aos níveis mais elevados do ensino segundo a capacidade de cada um. Os entes federados devem organizar seus sistemas de ensino em regime de colaboração, de modo que a União tem função redistributiva e supletiva, garantindo a equalização de oportunidades educacionais e o padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, Distrito Federal e Municípios. Compete aos Municípios a atuação prioritária no ensino infantil e no fundamental, e aos Estados e Distrito Federal a atuação prioritária no ensino fundamental e no médio.
Diante deste contexto, o Estado brasileiro assumiu o compromisso de universalizar o acesso ao ensino. Isso quer dizer que, de acordo com a Constituição de 1988, o interesse público é que todos, sem distinção de qualquer espécie, tenham acesso, de acordo com seus méritos próprios, a um ensino de qualidade. Exatamente esta a razão da previsão constitucional de um sistema de ensino estruturado no regime de cooperação entre os entres federados. Muito embora o texto constitucional estabeleça uma preocupação com a garantia de acesso universal ao ensino, o Executivo federal tem demonstrado que essa universalização não segue um parâmetro adequado à atual conjuntura. O que se percebe é que o Estado brasileiro não possui, de fato, um programa eficaz destinado à educação de seus cidadãos, especialmente no que se refere à questão da inclusão.
Nos termos da Lei nº 12.711/12, de outro lado, as instituições federais de educação superior devem reservar, em cada processo seletivo para cursos de graduação, por curso e por turno, o mínimo 50% das vagas para estudantes que tenham cursado o ensino médio integralmente em escolas públicas, de maneira que, dessas vagas, 50% sejam reservadas para estudantes oriundos de famílias com renda per capita de até um salário-mínimo e meio. A preferência para a ocupação dessas vagas é para aqueles que se autodeclararem pretos (ou negros), pardos (ou mulatos ou mestiços) ou indígenas, em uma proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas da respectiva população da unidade da Federação em que se encontra a instituição, de acordo com os dados do IBGE. No caso de vagas remanescentes, estas deverão ser ocupadas por estudantes que tenham cursado o ensino médio integralmente em escolas públicas. A mesma lógica aplica-se às instituições federais de ensino técnico em nível médio.
As instituições deverão implantar, no mínimo, 25% da reserva de vagas a cada ano, tendo prazo máximo de quatro anos, a partir da data da publicação da norma, para o cumprimento integral de suas disposições. Importa observar que a própria Lei não comina qualquer tipo de penalidade específica para o caso de descumprimento do que estabelece.
Sistematizando o disposto na Lei nº 12.711/12, tem-se o seguinte: Grupo a – 25% das vagas, no mínimo, devem ser reservadas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, devendo ser dada preferência às pessoas que se autodeclararem de etnia preta (negra), parda (mulata ou mestiça) ou indígena, observada a proporção em relação à presença das mesmas etnias na respectiva população da unidade federativa em que se ache instalada a instituição; Grupo b – 25% das vagas, no mínimo, devem ser reservadas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas e que sejam oriundos de famílias com renda per capita de até um salário-mínimo e meio; e Grupo c – 50% das vagas, no máximo, devem ser reservadas para estudantes que não se adéquem a nenhum dos grupos anteriores. Com isso, surge a grande polêmica que gira em torno da nova legislação: como estabelecer um programa de inclusão baseado em cotas raciais?
A partir deste entendimento, outras questões foram suscitadas. Se a Constituição de 1988 estabelece que o acesso ao ensino se dê de acordo com o mérito de cada um, supondo que a lei em comento seja constitucional, já que em relação a ela labora a presunção de constitucionalidade, não poderia haver redução da nota de corte para o ingresso na instituição, de maneira que não havendo candidatos dos grupos a e b habilitados, poderiam as vagas remanescentes ser preenchidas por candidatos do grupo c, ultrapassando a percentagem legal máxima? Ou o acesso ao ensino será negado aos candidatos do grupo c que não foram alcançados pelas cotas? A resposta, aqui, é que os candidatos do grupo c deverão ocupar as vagas remanescentes, pois, embora a Lei nº 12.711/12 não traga a previsão, a Constituição Federal consagra a universalidade do ensino, não podendo ficar desocupadas as vagas existentes por falta de mérito dos cotistas.
O Executivo federal, ao sancionar a lei em vigor, mostra-se absolutamente contraditório em seu discurso de que “a importância desse projeto e o fato de nós sairmos da regra e fazermos uma sanção especial tem a ver com um duplo desafio. Primeiro é a democratização, o acesso às universidades, e segundo, o desafio de fazer isso mantendo um alto nível de ensino e a meritocracia. O Brasil precisa fazer face frente a esses dois desafios, não apenas um. Nada adianta manter uma universidade fechada e manter a população afastada em nome da meritocracia. Também de nada adianta abrir a universidade e não preservar a meritocracia”.1
O grande problema é como instaurar a meritocracia em uma política governamental de inclusão que não se destina à sua aferição. Não há como afirmar que a inclusão por meio da Lei nº 12.711/12 tenha o condão de garantir a superação dos desafios apresentados. Ademais, referida legislação não estabelece parâmetros concretos, capazes de infirmar uma política que não continue a gerar desigualdades. Talvez aquele discurso se mostre mais destinado à propaganda eleitoreira do que, propriamente, à análise das circunstâncias que permeiam a lei sancionada.
Nesse ponto, por mais que seja difundida a premissa de que devemos tratar desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades, esta afirmação deve ser administrada com cautela. A justificativa de que há uma “dívida histórica” com as diversas etnias que habitam o território brasileiro já não mais se sustenta. Não é o estabelecimento de distinção por critérios raciais que superará um problema de séculos – até porque, historicamente, não foram os brasileiros que introduziram o trabalho escravo no Brasil, muito menos que lucraram com a exploração desta mão de obra. Uma real distinção fará, tão somente, aumentar as disparidades já existentes entre os ingressantes das instituições de ensino superior e técnico federais: a meritocracia cede aí a uma política discriminatória.
Esse viés da discussão permite discutir se o interesse público está realmente sendo atingido com a regulamentação dada pela Lei 12.711/12. Isso porque, aparentemente, ela se enquadra na possibilidade de diferenciação, constituindo-se como exceção ao princípio da igualdade, já que considera pessoas em situações diferentes. Todavia, há que se questionar até que ponto esse critério diferenciador é efetivamente constitucional. Quando a Constituição Federal determina que o sistema de ensino público deve primar pela qualidade, o que se estabelece é que a qualidade da educação seja, no mínimo, boa, permitindo aos estudantes que, por seu próprio mérito e com os saberes adquiridos, tenham acesso ao ensino superior, sem que dependam de cotas. Nesse sentido, o sistema de cotas, considerado em linhas gerais, viola o interesse público e fere o texto constitucional, estabelecendo uma diferenciação entre pessoas que estão em situações diferentes em virtude da deficiência do Estado em oferecer ensino básico e médio de qualidade, descumprindo o compromisso constitucional. Daí que a política de cotas é, verdadeiramente, um paliativo para um problema mais profundo, que o Estado tem demorado a resolver.
Nesse sentido, a instituição de cotas talvez só seja constitucional no que diz respeito aos candidatos de baixa renda. Nesse sentido, de fato, há uma política de inclusão, o que não se verifica quanto às reservas segundo a etnia, já que o povo brasileiro é, majoritariamente, formado por mestiços. Também não há que se falar em constitucionalidade no que pertine aos estudantes que tenham cursado o ensino médio integralmente em escola pública, pois os demais cidadãos que cursaram em escolas privadas não podem ser sancionados em virtude de prestações públicas deficientes. Desta forma, analisando racionalmente a nova lei, é possível constatar que foram dados “alguns passos atrás” com a questão das cotas.
Se o ideal era gerar inclusão, tal escopo se tornou utópico. A prevalecer a sistemática lançada pela Lei nº 12.711/12, o que se faz é retomar o modelo de castas, um apartheid às avessas, em que os brancos estariam em um patamar inferior aos negros, índios e pardos. É preciso refletir muito antes de aceitar leis apresentadas como ações afirmativas. Importante é que a inclusão seja efetiva, nos moldes como arremata Flávia Schilling: “O grande desafio contemporâneo é não aceitar os isolamentos – por idade, gerações, sexo ou sexualidade, raça, etnia, religião, classe ou grupo de status social ou profissional. Mais do que nunca é importante negar – criticar – os ‘guetos’, os enclaves fortificados, o ‘não fale com estranhos’”.2
NOTAS
1 Disponível em: <http://www.defensoria.pa.gov.br/noticia_detalhe.php?ID=2747>.
2O direito à educação: um longo caminho. In: Educação e metodologia para os direitos humanos. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 282.