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Ativismo judicial no Brasil e a importância da experiência norte-americana em hermenêutica constitucional

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06/05/2013 às 14:42
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3. A crítica de Jeremy Waldron ao controle jurisdicional de constitucionalidade

A jurisdição constitucional e a atuação expansiva do Judiciário têm recebido, historicamente, críticas de natureza política que questionam sua legitimidade democrática e a suposta maior eficiência na proteção dos direitos fundamentais.

Um dos principais representantes dessa corrente é o filósofo Jeremy Waldron, autor de Law and disagreement, 1999, e The core of the case against judicial review, Yale Law Journal, 2006. A ideia central é de que nas sociedades democráticas nas quais o Legislativo não seja disfuncional as divergências acerca dos direitos devem ser resolvidas no âmbito do processo legislativo, de forma exaustiva, e não do processo judicial.

Waldron é um dos principais críticos do judicial review e consequentemente do ativismo judicial. O autor reconhece, no entanto, que o controle de constitucionalidade de atos normativos pode ser necessário para enfrentar questões anômalas específicas, num ambiente em que certas características políticas e institucionais das democracias liberais não estejam totalmente presentes.

A crítica está intrinsecamente ligada à democracia, pois a judicialização tende a mudar o foco da discussão pública, que passa de um ambiente onde as razões podem ser postas de maneira aberta e abrangente para um outro altamente técnico e formal, tendo por objeto textos e ideias acerca de interpretação.

Waldron demonstra as dificuldades encontradas quando se tenta justificar, a partir de uma teoria liberal, que juízes não eleitos democraticamente sejam os encarregados de defender a Constituição. Em outras palavras, que sua interpretação do texto constitucional, especialmente em matéria de direitos fundamentais, seja prevalecente frente à leitura realizada pelo legislador.

Os argumentos utilizados pelo filósofo são basicamente quatro: 1) a defesa de uma teoria moral baseada em direitos como a de Dworkin não leva necessariamente a propugnar pelo estabelecimento de uma declaração de direitos e de um órgão de controle de constitucionalidade de acordo com o modelo norte-americano; 2) os filósofos políticos liberais devem ser, precisamente, os primeiros a duvidar da oportunidade de canonizar direitos em um documento legal se isso acarreta, ao fim e ao cabo, um indubitável obstáculo ao debate político democrático em torno desses direitos; 3) a filosofia política recente não tem prestado atenção suficiente aos processos de tomada de decisões em circunstâncias de radical desacordo; 4) o respeito aos direitos de participação política é incompatível com a criação de uma instituição encarregada da revisão e adaptação dos direitos fundamentais em uma conjuntura de desacordo e mudança social.

Com essas premissas, e desde que existentes condições específicas que o autor elenca em uma democracia moderna, Waldron renova a controvérsia sobre quem deve deter a competência, dentro da organização constitucional de poderes, para delimitar e definir o conteúdo dos direitos protegidos pela Constituição.

De um lado juízes, escolhidos por processos não-democráticos, sob pretexto de que detém conhecimento político, jurídico e filosófico que os tornam mais aptos para exercer a tarefa; e de outro o Parlamento, cujos componentes, em princípio, não possuem a sabedoria no sentido filosófico, mas recebem sua legitimação por eleições democráticas, com ampla participação das minorias.

Esse questionamento encerra duas posições básicas antagônicas que unem dois autores até aqui abordados: o embate entre o fórum dos princípios e a maximização da participação popular. Ou seja, o antagonismo entre as ideias de Dworkin e Waldron.

Na concepção de Dworkin, uma democracia constitucional tem necessariamente duas dimensões: a política, na qual os membros de uma comunidade decidem em conjunto questões relativas aos interesses coletivos; e a dimensão dos princípios, relativa à proteção dos direitos individuais dos cidadãos. No fórum dos princípios – cujo local por excelência é o Judiciário através de um tribunal de cúpula ou constitucional – esses direitos servem como trunfos contra decisões da política. Daí a justificativa para um controle de constitucionalidade dos atos políticos: garantir os direitos individuais contra a política e contra maiorias circunstanciais. Seria a garantia de direitos que conferiria legitimidade ao controle de constitucionalidade.

Para Waldron, contudo, justificar o controle judicial de constitucionalidade a partir da ideia de que direitos devem funcionar como trunfo contra decisões legislativas majoritárias ignoraria o desacordo moral existente em sociedades plurais, ou seja, ignoraria o fato de que as pessoas têm concepções diferentes acerca dos seus direitos mais básicos, da mesma forma que têm concepções diferentes sobre justiça social e políticas públicas.

Em decorrência desse amplo desacordo acerca dos direitos fundamentais, a decisão acerca da questão sobre quem deve decidir sobre esses direitos deve ser tomada em igualdade de condições pelos cidadãos em uma comunidade, algo que não ocorre quando se reserva essa decisão a uma elite judiciária. Percebe-se, com isso, que a ideia de participação em igualdade de condições é central na tese de Waldron. A partir do reconhecimento do desacordo moral disseminado na sociedade em relação aos direitos que possuímos, o autor contesta o poder dado ao juiz para decidir por último sobre tais divergências, legitimando o legislador instituído democraticamente, para dar a última palavra quanto a estas questões.

O relacionamento entre controle judicial de constitucionalidade e democracia sempre foi assunto bastante debatido por constitucionalistas e pensadores do direito. Antes visto como consequência lógica das ideias de supremacia e rigidez da Constituição, o controle de constitucionalidade contemporaneamente sofre questionamentos a respeito de sua necessidade e fundamentação.

No Brasil, esta discussão possui características peculiares. Ao contrário do que ocorre no sistema norte-americano, a Constituição Federal brasileira atribui expressamente ao Poder Judiciário a competência de declarar a inconstitucionalidade de leis e atos normativos, além de conter restrições materiais ao poder de emenda – as cláusulas pétreas -, que permitem ao Supremo Tribunal Federal tomar para si a incumbência de julgar a constitucionalidade de emendas constitucionais, impossibilitando, consequentemente, a alteração desta própria competência.

Mas mesmo reconhecendo e relevando essas diferenças, o estudo do positivismo democrático de Waldron e das teses opostas a este pensamento é relevante.

De um lado para que se possa compreender quais são os papéis do legislador e do juiz na resolução dos conflitos fundamentais de direito e, de outro, no caso específico brasileiro – e ainda que não se possa colocar em questão a legitimidade do Judiciário para o controle de constitucionalidade em razão da expressa previsão constitucional – para se analisar os limites do exercício dessa atribuição e as tensões dela decorrentes.

Como se vê, nos últimos anos o debate sobre a justificação filosófico-jurídica do controle judicial de constitucionalidade tem sido revigorado devido à obra do filósofo político Jeremy Waldron.


Considerações finais

O presente artigo é uma exposição sucinta sobre o ativismo judicial e a saudável correlação com a teoria constitucional norte-americana contemporânea.

Buscou-se demonstrar as ideias centrais de Ronald Dworkin, John Hart Ely e Jeremy Waldron e a colaboração dessas teorias para o desenvolvimento da democracia brasileira e o funcionamento harmônico do sistema de freios e contrapesos na separação dos poderes.

O debate é atualmente relevante porque no Brasil está se vivendo um momento de fortalecimento da atuação proativa dos juízes. Esse ativismo é fruto principalmente da inércia do Legislativo.

Essa postura mais ativa é bastante controversa e nos remete à necessidade de aprofundar os estudos em interpretação constitucional. Muitos enxergam no ativismo judicial uma invasão da esfera de competências do Legislativo e consequente desarmonia entre os três Poderes. Para outros, o fenômeno apenas revela a dinâmica do sistema de freios e contrapesos, em que o ativismo se expande quando outros Poderes se retraem. Nesse sentido, o ativismo tem um ponto positivo: responde às demandas sociais não atendidas por instâncias políticas. Mas apresenta um aspecto negativo ao revelar que as instituições constitucionalmente competentes não funcionam satisfatoriamente.

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Já o oposto do ativismo é a auto-contenção, pela qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes. Nessa linha juízes e tribunais evitam aplicar diretamente a Constituição a situações que não estejam no âmbito de incidência expressa, aguardando o pronunciamento do legislador ordinário. Os critérios para a declaração de inconstitucionalidade de leis e atos normativos são mais rígidos e conservadores, abstendo-se de interferir na definição das políticas públicas.

Até a abertura democrática e a promulgação da Constituição de 1988 essa era a inequívoca linha de atuação do Judiciário no Brasil. A diferença metodológica entre as  posições reside no fato de que, em princípio, o ativismo judicial procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, sem contudo invadir o campo da criação livre do Direito. Já a auto-contenção restringe o espaço de incidência da Constituição em favor das instâncias tipicamente políticas.

Importante salientar que esse debate ora resumido e todas as dicotomias apontadas anteriormente pecam pelo extremismo, como se o problema se resumisse às alternativas “todo poder aos juízes" ou "todo poder ao legislador".

Na verdade, para aproveitar as experiências democráticas e constitucionais de cada país como objeto de estudo e aprimoramento, é mais plausível pressupor a existência de uma gama de possibilidades de arranjos institucionais que extrapolam a contraposição simplista.

As ideias decorrentes do desenvolvimento do constitucionalismo norte-americano servem ao propósito de estabelecer métodos para a melhor aplicabilidade do direito, seja numa postura ativista ou contida, e independentemente da força maior ou menor que cada Poder pode ostentar no exercício da democracia, pois esse dinamismo é normal no sistema de freios e contrapesos.

O certo é que o cerne da questão passa necessariamente pelo estudo da hermenêutica no controle jurisdicional de constitucionalidade, justamente o judicial review tão bem aprofundado no sistema norte-americano.

Isto porque, seja qual for a atitude ideal do Judiciário na democracia brasileira, crê-se que o mais importante é perseguir uma linha de interpretação que preze pela integridade do sistema, protegendo os pilares fundamentais da democracia, com especial relevo para a autodeterminação.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARVALHO NETTO, Menelick de. "A hermenêutica constitucional sob o paradigma do Estado Democrático de Direito". In: Notícia do direito brasileiro. Nova série, nº 6. Brasília: Ed. UnB, 2º semestre de 1998.

DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. de Jefferson Luiz Camargo, São Paulo: Martins Fontes, 1999.

__________________ Uma questão de princípio. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000

ELY, John Hart, Democracia e desconfiança, uma teoria do controle judicial de constituciionalidade, Trad. de Juliana Lemos. São Paulo: Martins Fontes, 1ª Ed., 2010.

FINE, Toni M., Introdução ao sistema jurídico anglo-americano, São Paulo: Martins Fontes, 1ª Ed., 2011.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia – entre facticidade e validade (I e II). Trad. de Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

RAMOS, Eliseu da Silva, Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos, São Paulo: Saraiva, 1ª Ed., 2010.

WALDRON, Jeremy, A dignidade da legislação, Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1ª Ed. 2003.


Notas

[1] DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003/A, p. 62-3.

[2]Citado por CARVALHO NETTO, Menelick de. "A hermenêutica constitucional sob o paradigma do Estado Democrático de Direito". In: Notícia do direito brasileiro. Nova série, nº 6. Brasília: Ed. UnB, 2º semestre de 1998.

[3] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 235-7.


Abstract: This article is an attempt to encourage debate on the phenomenon of judicial activism in Brazil and the cooperation of American constitutional theory, modern paradigm of legal interpretation as to improve the system of checks and balances in Brazilian democracy.

Key-word: judicial activism, self-restraint, control of constitutionality, constitutional hermeneutics, U.S. law

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Sobre o autor
Rafael Machado de Oliveira

Procurador Federal, atualmente Procurador Regional do INSS na 2ª Região, graduado na UFSM e especialista pela UNB. Professor de direito previdenciário e do trabalho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Rafael Machado. Ativismo judicial no Brasil e a importância da experiência norte-americana em hermenêutica constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3596, 6 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24367. Acesso em: 23 abr. 2024.

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