5. Da família homoafetiva
A Constituição Federal, ao elencar as entidades familiares, em seu artigos 226, silenciou a respeito da união homoafetiva, negando uma realidade fática social. Diante desta omissão, a doutrina se divide, havendo duas teses a respeito:
Maria Helena Diniz e Carlos Roberto Gonçalves entendem que a natureza da união homoafetiva é de mera sociedade de fato. Negam a sua natureza familiar, mas não negam os seus efeitos jurídicos. Para eles a união homoafetiva produz efeitos apenas obrigacionais, sendo da vara cível a competência para julgar estas ações. Carlos Roberto Gonçalves cita o artigo 1363 do Código Civil, que trata sobre o contrato de sociedade. 23
Maria Berenice, Luiz Edson Fachim, Gustavo Tepedino, Rolf Madaleno e a grande maioria dos autores defendem a natureza familiar da união homoafetiva, com base na pluralidade das famílias e no seu caráter instrumental. Entendem que esta união produz todos os efeitos típicos de uma família, não só produzindo os efeitos patrimoniais, mas também existenciais. Para este entendimento doutrinário a competência, no caso, seria da vara de família.
Dualidade de sexos: (...) no sistema aberto, inclusivo e não discriminatório inaugurado a partir da Constituição de 1988, espaço não há para uma interpretação fechada e restritiva que pretenda concluir pela literalidade da norma constitucional (artigo 226, parágrafo 3, CF) ou até mesmo da legislação ordinária (artigo 1723, CC) com o propósito de somente admitir a união heterossexual.
Pablo Stolze, em sua obra, cita Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves: 24
Efetivamente, a união entre pessoas homossexuais poderá estar acobertada pelas mesmas características de uma entidade heterossexual, fundada, basicamente, no afeto e na solidariedade. Sem dúvida, não é a diversidade de sexos que garantirá a caracterização de um modelo familiar, pois a afetividade poderá estar presente mesmo nas relações homoafetivas.
Neste mesmo sentido dispõe o artigo 5º da lei Maria da Penha, que engloba a união homoafetiva no conceito de família.
Antigos precedentes dos tribunais superiores eram no sentido de que a habilitação para o casamento e a declaração da união estável entre pessoas do mesmo sexo não tinham sido recepcionados pela Constituição no conceito de entidade familiar. Assim, com esta interpretação literal da Constituição da República, se não houvesse uma reforma constitucional, em tese, a união homoafetiva não se enquadraria em nenhum dos conceitos de entidade familiar. Porém, aos poucos este panorama vem se modificando.
Depois de superada a negativa deste direito, em um primeiro momento o STJ aplicou, por analogia, as regras da união afetiva aos parceiros homoafetivos e, aos poucos, como demonstraremos a seguir, vem reconhecendo esta união como família, tendo, inclusive, permitido o casamento entre duas mulheres.
Aplicando as regras da união afetiva aos parceiros homoafetivos, estes podem reclamar, dentre outros direitos, herança, alimentos e aquisição de sobrenome. O STJ, inclusive, estabeleceu que é possível a adoção de uma criança por um casal homoafetivo, por aplicação analógica das regras da união estável.
Relação homoafetiva e entidade familiar – 5 (informativo 625 do STF):
(...) O segundo se limitou a reconhecer a existência dessa união por aplicação analógica ou, na falta de outra possibilidade, por interpretação extensiva da cláusula constante do texto constitucional (CF, art. 226, § 3º), sem se pronunciar sobre outros desdobramentos. Ao salientar que a ideia de opção sexual enfatizou que a relação homoafetiva estaria contemplada no exercício do direito de liberdade (autodesenvolvimento da personalidade), acenou que a ausência de modelo institucional que permitisse a proteção dos direitos fundamentais em apreço contribuiria para a discriminação. No ponto, ressaltou que a omissão da Corte poderia representar agravamento no quadro de desproteção das minorias, as quais estariam tendo seus direitos lesionados.
O Presidente aludiu que a aplicação da analogia decorreria da similitude factual entre a união estável e a homoafetiva, contudo, não incidiriam todas as normas concernentes àquela entidade, porque não se trataria de equiparação.
Com a leitura destes precedentes se conclui que a aplicação deste regramento da união estável à união homoafetiva se dava por analogia, donde se podia concluir que união homoafetiva não se confundia com a união estável, que eram coisas distintas. Porém, em julgados posteriores o STJ passou a utilizar a expressão união estável homoafetiva. É o que podemos verificar no próximo julgado que transcreveremos logo a seguir.
STF RECONHECE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA
“Ao reconhecer por unanimidade a união estável homoafetiva no último dia cinco de maio de 2011 em Brasilia, o Supremo Tribunal Federal (STF) colocou fim a mais um drama social (...)
Embora o texto legal do Código Civil Brasileiro diga que somente será reconhecida a união estável entre pessoas de sexo oposto, os ministros seguiram o voto do relator Ayres Brito em entendimento de que não existe qualquer preceito legal que impeça o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.
Contudo a Lei é clara no seu artigo 1.723 do Código Civil de 2002, no parágrafo primeiro, que somente será reconhecida a união estável entre duas pessoas quando não houver presente nenhum dos impedimentos para o casamento, e o artigo 1.521 do mesmo diploma elenca os impedimentos para o casamento e não traz nenhuma ressalva quanto à união de pessoas do mesmo sexo.
Deste modo, parece razoável dizer que a justiça está sendo feita nesse momento histórico em nosso país, que tem número crescente de relações estáveis homoafetivas. Com este reconhecimento, de forma ampla, a instância superior do nosso país garante desde já aos casais homossexuais os mesmos direitos dos quais sempre gozaram os casais heterossexuais, e com o reconhecimento desde direito abre-se as portas para uma gama vasta de reconhecimentos de outros direitos das relações homoafetivas.”
Por: Meirelene Zaparoli de Campos
Esta ampliação da proteção das uniões homoafetivas alcançou, inclusive, o âmbito previdenciário, onde em uma instrução normativa o ministro da previdência reconheceu direitos previdenciários para quem vive em união homoafetiva.
5.1. A visão contemporânea da união homoafetiva
Tradicionalmente, posto não existisse norma legal explícita proibitiva do casamento homoafetivo, a diversidade de sexos, por princípio, sempre foi erigida como seu pressuposto existencial. Contudo, este requisito vem sendo mitigado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores.
Nos próximo julgados demonstraremos que os Tribunais Superiores, em seus julgados, vêm evoluindo, gradativamente, a respeito das uniões homoafetivas. Em um primeiro julgado utilizou-se da analogia para a utilização das regras da união estável à união homossexual. Em um segundo momento este Colendo Tribunal reconheceu a união homoafetiva como união estável e, posteriormente, como família25. E, por fim, em um julgado revolucionário, reconheceu a conversibilidade de uma união estável entre duas mulheres em casamento.26
Admitindo a conversão da união estável homoafetiva em casamento, segue esta ADI:
1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). União homoafetiva e seu reconhecimento como instituto jurídico.
2. Proibição de discriminação das pessoas em razão do sexo, seja no plano da dicotomia homem/mulher (gênero), seja no plano da orientação sexual de cada qual deles. a proibição do preconceito como capítulo do constitucionalismo fraternal. homenagem ao pluralismo como valor sócio-político-cultural. Liberdade para dispor da própria sexualidade, inserida na categoria dos direitos fundamentais do indivíduo, expressão que é da autonomia de vontade. direito à intimidade e à vida privada. Cláusula pétrea. O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. proibição de preconceito, à luz do inciso iv do art. 3º da constituição federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos”. silêncio normativo da carta magna (...) Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana”: direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. autonomia da vontade. cláusula pétrea.
3. (...) Direito subjetivo de constituir família. Interpretação não-reducionista. O caput do art. 226. confere à família, base da sociedade, especial proteção do estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. a constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria constituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso x do art. 5º).
Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. avanço da constituição federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural.
4. (...) Dispositivo que, ao utilizar da terminologia “entidade familiar”, não pretendeu diferenciá-la da “família”. Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado “entidade familiar” como sinônimo perfeito de família. A constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua não-equiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade do §2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem “do regime e dos princípios por ela adotados”, verbis: “os direitos e garantias expressos nesta constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a república federativa do Brasil seja parte”.
5. (...)
6. Interpretação do art. 1.723. do código civil em conformidade com a Constituição Federal (técnica da “interpretação conforme”). Reconhecimento da união homoafetiva como família. Procedência das ações. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723. do código civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.
ADI N. 4.277-DF RELATOR: MIN. AYRES BRITTO. Noticiado no informativo 625.
Neste diapasão, decisão emblemática do STJ acolheu a conversibilidade de uma união estável entre duas mulheres em casamento. É o que veremos no acórdão, que transcreveremos a seguir.27 A desta decisão, alguns estados da federação, por meio de seus tribunais de justiça, passaram a admitir a habilitação direta em cartório, para o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (artigo 44 do Provimento Conjunto CGJ/ CCI do TJBA número 12 de 2012/12/12).
Interpretação dos arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565 do código civil de 2002. Inexistência de vedação expressa a que se habilitem para o casamento pessoas do mesmo sexo. Vedação implícita constitucionalmente inaceitável. Orientação principiológica conferida pelo STF no julgamento da ADPF n. 132/RJ e da ADI n. 4.277/DF.
(...)2. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da ADPF n.132/RJ e da ADI n. 4.277/DF, conferiu ao art. 1.723. do Código Civil de 2002 interpretação conforme à Constituição para dele excluir todo significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família.
3. Inaugura-se com a Constituição Federal de 1988 uma nova fase do direito de família e, consequentemente, do casamento, baseada na adoção de um explícito poliformismo familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos a constituir esse núcleo doméstico chamado "família", recebendo todos eles a "especial proteção do Estado". Assim, é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção constitucional do casamento - diferentemente do que ocorria com os diplomas superados - deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade.
4. O pluralismo familiar engendrado pela Constituição -explicitamente reconhecido em precedentes tanto desta Corte quanto do STF - impede se pretenda afirmar que as famílias formadas por pares homoafetivos sejam menos dignas de proteção do Estado, se comparadas com aquelas apoiadas na tradição e formadas por casais heteroafetivos.
5. O que importa agora, sob a égide da Carta de 1988, é que essas famílias multiformes recebam efetivamente a "especial proteção do Estado", e é tão somente em razão desse desígnio de especial proteção que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, ciente o constituinte que, pelo casamento, o Estado melhor protege esse núcleo doméstico chamado família.
6. Com efeito, se é verdade que o casamento civil é a forma pela qual o Estado melhor protege a família, e sendo múltiplos os "arranjos" familiares reconhecidos pela Carta Magna, não há de ser negada essa via a nenhuma família que por ela optar, independentemente de orientação sexual dos partícipes, uma vez que as famílias constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos núcleos axiológicos daquelas constituídas por casais heteroafetivos, quais sejam, a dignidade das pessoas de seus membros e o afeto.
7. A igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o direito à auto-afirmação e a um projeto de vida independente de tradições e ortodoxias. Em uma palavra: o direito à igualdade somente se realiza com plenitude se é garantido o direito à diferença. Conclusão diversa também não se mostra consentânea comum ordenamento constitucional que prevê o princípio do livre planejamento familiar (§ 7º do art. 226). E é importante ressaltar, nesse ponto, que o planejamento familiar se faz presente tão logo haja a decisão de duas pessoas em se unir, com escopo de constituir família, e desde esse momento a Constituição lhes franqueia ampla liberdade de escolha pela forma em que se dará a união.
8. Os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil de 2002, não vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar.
11. Recurso especial provido.
REsp 1183378 RS 2010/0036663-8, Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO / 25/10/2011 28