1. Introdução.
Há certa controvérsia quanto à possibilidade de as autarquias e fundações públicas federais instituírem o parcelamento extrajudicial de créditos não-tributários não inscritos em dívida ativa.
A despeito da inexistência de previsão legal, uma interpretação analógica do art. 10, da lei nº 10.522/2002, além da aplicação do princípio da isonomia, há de conduzir ao entendimento de que é possível àquelas entidades prever, por meio de atos normativos próprios, a instituição de tal parcelamento, respeitadas algumas balizas dispostas pela Procuradoria-Geral Federal, conforme melhor explicitado a seguir.
2. DESENVOLVIMENTO.
Há argumento no sentido da impossibilidade de as autarquias e fundações públicas federais disciplinar o parcelamento extrajudicial de créditos não inscritos em dívida ativa, sob a fundamentação de que o art. 37-B, da lei nº 10.522/2002, foi expresso ao mencionar somente os créditos inscritos em dívida ativa. Preceitua referido dispositivo legal que:
Art. 37-B. Os créditos das autarquias e fundações públicas federais, de qualquer natureza, poderão ser parcelados em até 60 (sessenta) prestações mensais.
§ 1º O disposto neste artigo somente se aplica aos créditos inscritos em Dívida Ativa e centralizados nas Procuradorias Regionais Federais, Procuradorias Federais nos Estados e Procuradorias Seccionais Federais, nos termos dos §§ 11 e 12 do art. 10 da Lei no 10.480, de 2 de julho de 2002, e do art. 22 da Lei no 11.457, de 16 de março de 2007.
Assim, o fundamento principal estaria relacionado ao princípio da legalidade, até porque o art. 10[1], da lei nº 10.522/2002, não seria aplicável às autarquias e fundações públicas, uma vez que tal dispositivo prevê a possibilidade de parcelamento à Fazenda Nacional, que, certamente, não pode ser confundida com a Fazenda Pública em geral.
De fato, o art. 37-B, da lei nº 10.522/2002, restringiu a possibilidade de parcelamento somente aos créditos inscritos em dívida ativa. Inclusive, a regulamentação do parcelamento por meio da Portaria nº 954/2009, da Procuradoria-Geral Federal, observou o comando legal ao preceituar, no seu art. 1º, que “os créditos das autarquias e fundações públicas federais, de qualquer natureza, centralizados nas Procuradorias Regionais Federais, Procuradorias Federais nos Estados, Procuradorias Seccionais Federais e Escritórios de Representação, inscritos em dívida ativa, poderão ser parcelados em até 60 (sessenta) prestações mensais”.
A questão relativa aos parcelamentos de débitos não-tributários ainda não inscritos em dívida ativa não encontra disciplina legal, o que tem ocasionado controvérsia nas mais diversas autarquias e fundações públicas federais.
Inicialmente, convém mencionar que a presente análise restringe-se aos créditos de natureza não-tributária, sendo estreme de dúvidas que, quanto aos créditos de natureza tributária, exige-se expressa previsão legal para a concessão de parcelamento.
Embora a expressão Fazenda Nacional não se confunda com Fazenda Pública em geral, o que se busca é verificar, diante de uma lacuna na legislação, se é possível às autarquias e fundações públicas federais permitir o parcelamento dos seus créditos não-tributários anteriormente à inscrição em dívida ativa.
Sem embargo dos argumentos em sentido contrário, merece prevalecer o entendimento de que realmente é possível às autarquias e fundações públicas federais a concessão de parcelamentos de créditos não-tributários anteriormente à inscrição em dívida ativa, mesmo que não haja previsão em lei em sentido estrito.
Tal raciocínio não se deve à aplicação do art. 37-B, da lei nº 10.522/2002 – que tratou somente do parcelamento para os débitos inscritos em dívida ativa –, mas sim em virtude da aplicação analógica do art. 10, da referida lei.
A aplicação da analogia pressupõe a inexistência de norma jurídica; se houver lei regulando a matéria, ter-se-á interpretação extensiva[2].
De fato, não há norma jurídica que discipline o parcelamento administrativo dos créditos não-tributários não inscritos em dívida ativa.
Carlos Maximiliano[3] leciona que a aplicação da analogia pressupõe: i) uma hipótese não prevista, senão se trataria apenas de interpretação extensiva; ii) a relação contemplada no texto, embora diversa da que se examina, deve ser semelhante, ter com ela um elemento de identidade; iii) este elemento não pode ser qualquer, e sim, essencial, fundamental, isto é, o fato jurídico que deu origem ao dispositivo.
Segundo esse autor, “não bastam afinidades aparentes, semelhança formal; exige-se a real, verdadeira igualdade sob um ou mais aspectos, consistente no fato de se encontrar, num e noutro caso, o mesmo princípio básico e de ser uma só a ideia geradora tanto da regra existente como da que se busca. A hipótese nova e a que se compara com ela, precisam assemelhar-se na essência e nos efeitos; é mister existir em ambas a mesma razão de decidir. Evitem-se as semelhanças aparentes, sobre pontos secundários (sic)”[4].
Não há dúvidas de que o parcelamento após a inscrição em dívida ativa guarda estrita semelhança com a possibilidade de parcelamento anteriormente àquela inscrição, o que justifica a aplicação da analogia para admitir a possibilidade de concessão de parcelamento de débitos não-tributários não inscritos em dívida ativa, conquanto ausente previsão legal para algumas autarquias e fundações públicas federais.
O simples ato de inscrever em dívida ativa não pode figurar como marco para garantir o direito do devedor de parcelar seu débito não-tributário. E nisso não há, a priori, qualquer prejuízo à atuação da Procuradoria-Geral Federal e ao direito de crédito das autarquias e fundações públicas federais; ao contrário, procura resguardar os interesses dos entes públicos, na medida em que traz maior efetividade ao necessário ressarcimento dos seus respectivos cofres.
Merece relevo, ainda, o fato de que não admitir a concessão de parcelamentos em situações deste jaez representaria verdadeira ofensa ao princípio da isonomia, segundo o qual, na clássica definição aristotélica, adotada por Rui Barbosa[5], busca-se “quinhoar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam”, cabendo ao aplicador do Direito estabelecer critérios que apontem desigualdade entre as situações e justifiquem o tratamento diferenciado.
Assim, os devedores com interesse de saldar seus débitos ainda não inscritos em dívida ativa de forma parcelada se encontrariam em situação de desigualdade em relação àqueles com seus débitos inscritos em dívida ativa, sem haver suporte em qualquer discrimen justificável.
O preceito da igualdade visa firmar a impossibilidade de desequiparações fortuitas ou injustificadas. Para analisar a existência de isonomia em cada caso deve-se: a) verificar o elemento tomado como fator discriminante; b) estabelecer uma relação lógica abstrata entre o fator e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico; c) verificar a consonância dessa correlação com o ordenamento jurídico[6].
Para que não haja ofensa ao princípio da isonomia, é mister que os três aspectos sejam observados cumulativamente, sob pena de descumprimento desse preceito constitucional.
Assim, cumpre explicitar os pontos acima elencados para a correta compreensão da situação fática, a ser verificada no momento da aplicação do direito: a) o elemento tomado com fator discriminante no caso em análise é o fato de estar o débito não-tributário inscrito ou não em dívida ativa; b) a disparidade estabelecida no tratamento jurídico de ambos os casos não se justifica, uma vez que eventual interesse demonstrado precocemente pelo devedor de parcelar aludido débito não pode significar prejuízo aos seus interesses, sobretudo em razão dos efeitos que o parcelamento poderá acarretar (v.g., de o devedor não ter em qualquer momento seu nome inscrito no CADIN); c) há perfeita correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional, sobretudo porque, na hipótese de o devedor não cumprir aos termos do parcelamento, o débito não-tributário remanescente poderá ser inscrito em dívida ativa, com posterior ajuizamento da execução fiscal, sem se vislumbrar qualquer prejuízo às autarquias e fundações públicas federais.
Contudo, até mesmo em observância ao princípio da isonomia, não se pode admitir que a concessão de parcelamentos dos débitos não-tributários antes da inscrição em dívida ativa possa ser objeto de casuísmos ou discriminações.
Nesse sentido, é fundamental que a autarquia ou fundação pública federal edite ato normativo disciplinando a questão de forma a conferir o direito ao parcelamento do débito não-tributário pelo interessado antes mesmo da inscrição em dívida ativa, até que sobrevenha lei em sentido estrito.
Convém mencionar que esse ato normativo a ser editado por cada autarquia ou fundação pública federal que não tenha previsto em lei a possibilidade de parcelamento nesses casos não pode se afastar das balizas previstas na Portaria nº 954/2009, da Procuradoria-Geral Federal, justamente porque as situações fáticas (parcelamento antes da inscrição em dívida ativa e parcelamento posterior à inscrição em dívida ativa para débitos não-tributários) não apresentam distinção apta a permitir que cada autarquia preveja condições de parcelamento muito distintas, com o que se busca evitar justamente o tratamento desigualitário entre devedores, cabendo a cada ente público a observância da citada Portaria da Procuradoria-Geral Federal.
3. CONCLUSÃO.
Ante ao exposto, há de se concluir pela possibilidade de as autarquias e fundações públicas federais preverem o parcelamento extrajudicial de créditos não-tributários não inscritos em dívida ativa, em razão da aplicação analógica do art. 10, da lei 10.522/2002, bem como em respeito ao princípio da isonomia.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. Transações administrativas: um contributo ao estudo do contrato administrativo como mecanismo de prevenção e terminação de litígios e como alternativa à atuação administrativa autoritária, no contexto de uma administração pública mais democrática. São Paulo: Quartier Latin, 2007.
- DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. 4ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 1998.
- GUERRA, Marcelo Lima. DIREITOS FUNDAMENTAIS E A PROTEÇÃO DO CREDOR NA EXECUÇÃO CIVIL. SÃO PAULO: RT, 2003.
- MACHADO, Hugo de Brito. CURSO DE DIREITO TRIBUTÁRIO. 31ª EDIÇÃO. ED. MALHEIROS, 2010.
- MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002.
- MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª edição, 16a tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2008.
Notas
[1] Art. 10, da lei nº 10.522/2002. “Os débitos de qualquer natureza para com a Fazenda Nacional poderão ser parcelados em até sessenta parcelas mensais, a exclusivo critério da autoridade fazendária, na forma e condições previstas nesta Lei”.
[2] DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. 4ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 1998.
[3] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002.
[4] MAXIMILIANO, Carlos. Ob. cit., pg. 173.
[5] BARBOSA, Rui, Oração aos Moços, 5. ed., Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1999, p. 26, apud BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves, Transações administrativas: um contributo ao estudo do contrato administrativo como mecanismo de prevenção e terminação de litígios e como alternativa à atuação administrativa autoritária, no contexto de uma administração pública mais democrática, São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 125.
[6] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª edição, 16ª tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2008, pg. 21.