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As falácias sobre o combate internacional às drogas

22/10/2013 às 15:16
Leia nesta página:

Aborda questões referentes às distorções existentes entre o discurso e a prática do enfrentamento dos problemas gerados pelo tráfico de drogas.

Não é de hoje que o combate às drogas vem sendo uma das principais preocupações de diversas nações. Há várias décadas, estabeleceu-se uma linha de atuação conjunta, pela qual foi determinado que o problema relativo as drogas deveria ser solucionado mediante a adoção de uma política repressiva contra todos aqueles que integram, de alguma forma, a cadeia de circulação destas substâncias psicotrópicas, sejam aqueles que cultivam as plantas das quais se extraem estas substâncias necessárias ao preparo de entorpecente, sejam os que produzem a droga ou que a distribuem (traficantes), ou até mesmo os próprios usuários.

Na década de 80, mais precisamente no ano de 1987, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu a data de 26 de junho como sendo o Dia Internacional de Combate às Drogas.

Na década seguinte, em 1998 foi realizada uma nova assembléia, na qual foi institucionalizada a campanha "Um mundo livre de drogas - nós podemos fazer isso" (A drug free world -- we can do it),  que não fazia distinção entre as diferentes espécies de drogas, valendo esta política institucional para todas as espécies de entorpecentes.

Entretanto, em março de 2009, a ONU acabou por reconhecer o fracasso da postura eminentemente repressiva até então adotada. Como expressamente afirmou Genevieve Horwood, especialista no assunto, e membro do grupo International Drug Policy Consortium, responsável por desenvolver e elaborar programas contra as drogas.[1] Ao reconhecer que tanto no campo da saúde e segurança públicas, como noutras áreas sociais, esta postura de enfrentamento não tem produzido os resultados desejados.

Agora em junho de 2009, entretanto, a ONU corroborou a orientação repressiva que deveria ser seguida pelos seus membros no que se refere às drogas.[2] No que se convencionou nominar de Relatório Mundial sobre Drogas 2009 (divulgado em 24 de junho de 2009), redigido pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc), no qual foi terminantemente afastada a possibilidade de descriminalização das drogas ilícitas.{C}[3]

O novo texto alinhavou como objetivo minimizar (ou quem sabe até eliminar) a produção, distribuição e uso de drogas ilegais até o ano de 2019.

E, portanto, apesar da resistência ao chancelamento desta resolução – especialmente por vários países europeus, que exigiam a inclusão de um anexo que tratasse das denominadas políticas de “redução de danos”, que vem sendo promovidas por um próprio órgão da ONU, Organização Mundial da Saúde (OMS), pelas quais são previstas medidas preventivas e de tratamento, como o fornecimento de seringas descartáveis para usuários) – esta passou a ser a doutrina oficial a ser seguida pelos membros da ONU.

Na realidade, a ONU praticamente se limita a prorrogar os termos daquilo que ficou deliberado na última convenção realizada em 1998. Manteve a percepção de que é um equívoco pensar que a legalização das drogas ilícitas poderia servir como meio eficaz para solucionar os problemas decorrentes do mercado ilegal de entorpecentes. Indicou que somente serão obtidos melhores resultados se houver uma maior cooperação internacional entre as nações, no enfrentamento de práticas criminosas relacionadas ao tráfico de drogas, tal qual a lavagem de dinheiro.

Alguns países, todavia, escudados neste posicionamento da ONU, vêm se valendo deste subterfúgio para implementar suas políticas de ingerência indevida nos assuntos internos de outros países.

Ilustrativo sobre este aspecto, é a intenção dos Estados Unidos da América de construir bases militares (ou utilizar instalações militares existentes) na Colômbia. Para que, segundo apregoado, dentre outras metas, pudesse fornecer auxílio à concretização desta determinação da ONU, de promover o combate às drogas.[4]

Isso tem sido motivo de acaloradas críticas, especialmente pelos demais países da América do Sul, que encaram esta suposta cooperação como um pretexto para que os Estados Unidos possam exercer maior influência, e defender seus interesses numa região do planeta extremamente rica em recursos minerais e naturais.

O argumento, afora eventuais exageros regionalistas, tem lá sua justificativa. Notadamente porque é sabido que, por mais que a Colômbia seja considerada como um dos maiores produtores de cocaína do planeta (provavelmente o maior), sua indústria não tem a menor capacidade de produzir e fornecer os insumos químicos precursores, necessários ao refino da droga para o preparo do cloridrato de cocaína, tais quais acetona, éter, hidróxido de sódio, ácido muriático e acido sulfúrico, e outros derivados benzênicos e solventes orgânicos.

Noutros dizeres, para que os traficantes colombianos sejam capazes de produzir em larga escala a cocaína pura, necessitam de toneladas e mais toneladas destes produtos químicos, imprescindíveis ao refino da droga, e que, à toda evidência, não são obtidos de indústrias colombianas, e nem mesmo dos demais países vizinhos da América do Sul (nem mesmo do Brasil) ou América Central. São conseguidos dos países ricos industrializados. Especialmente dos Estados Unidos da América e de países europeus (principalmente da Suíça). Eles adentram o território colombiano pelas vias legais, ou pelo menos sob conivência das autoridades locais, que fazem vistas grossas ao ingresso e circulação destes insumos dentro do território colombiano. Seria praticamente impossível o ingresso pelas fronteiras colombianas de tamanha quantidade de derivados químicos, que a indústria local sequer teria condições de utilizar nas suas atividades rotineiras.

Ou seja, se houvesse a real intenção de se reprimir a produção de cocaína na Colômbia, seria muito mais fácil efetuar um rigoroso controle do acesso a estes derivados químicos neste país. Providência que num curto espaço de tempo certamente asfixiaria os produtores de cloridrato de cocaína. E causariam uma drástica diminuição do tráfico desta espécie de entorpecente.

Mas outros interesses seriam seriamente prejudicados se esta iniciativa fosse adotada. Dentre os quais os das próprias indústrias químicas norte-americanas, que deixariam de obter vultosos lucros com estas vendas, prejudicando ainda mais a combalida economia americana neste período de recessão após a crise financeira de 2008. Por certo deixariam de efetuar suas generosas contribuições para as campanhas eleitorais de políticos que viessem a defender políticas contrárias aos anseios destes grupos empresariais.

Além disto, insofismavelmente, existem ainda os interesses geopolíticos da grande nação do norte. Pois, se não houvesse o pretexto de combate as drogas na Colômbia, não haveria mais justificativa para que os Estados Unidos continuassem a manter um grande contingente militar neste país. Perdendo, assim, um importante ponto de apoio que lhe servisse como plataforma para promover a influência nos assuntos sul americanos. Mormente se for considerado que alguns países latinos (como a Venezuela) vem sendo cortejados por países como a Rússia e Irã, para consolidarem uma espécie de aliança destinada a capitanear uma frente anti-americanista.

Outra não é a realidade vivenciada no México. Onde a violência decorrente do tráfico de drogas vem tomando proporções somente encontráveis em situações de guerra declarada. Há enormes preocupações nos governantes norte-americanos, que receiam que esta onda de violência extravase para seu lado da fronteira.[5]

Em realidade, boa parte do armamento pesado utilizado pelas quadrilhas de traficantes em operação no México é comprada dos próprios americanos, que, absurdamente, admitem a venda destas armas de fogo de grosso calibre praticamente para qualquer um, independentemente do fato de que depois muitas delas são levadas clandestinamente para o país vizinho, com o objetivo de serem entregues aos grupos de traficantes.

Vale dizer, para manter uma boa relação com a indústria armamentista (que fatura milhões de dólares anualmente) não se contraria o poderoso lobby dos integrantes da National Rifle Association (NRA – www.nra.ogr) –  ou numa tradução livre, equivaleria a associação nacional dos portadores de armas de fogo (cujos integrantes possuem uma enorme capacidade de mobilização e pressão sobre as autoridades americanas, impedindo qualquer restrição mais severa que se pretenda impor ao comércio de armas) –  e não se impede esta venda indiscriminada destas armas, que também acabam sendo encaminhadas aos traficantes mexicanos.

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Com esta desculpa, os mandatários americanos conseguem mais facilmente oferecer suporte ao México, interferindo diretamente na gestão dos assuntos públicos locais. A circunstância é do maior interesse dos Estados Unidos, não apenas por fazer fronteira com o México, mas também para poder se imiscuir na administração regional e por exemplo, obter uma maior cooperação ou maiores poderes para impedir que imigrantes mexicanos adentrem ilegalmente o território americano.

Semelhante aquilo que também se verifica no Afeganistão, considerado o maior fornecedor mundial de papoula, planta a partir da qual se obtém o ópio e a heroína. Estima-se que algo em torno de 35% do Produto Interno Bruto (PIB) do país esteja direta ou indiretamente relacionado ao tráfico destas substâncias psicotrópicas. E, nada obstante as tropas militares dos Estados Unidos da América tenham invadido o Afeganistão para debelar a milícia do Talebã, pelo que se sabe, continua a permitir o cultivo da papoula. Ela representa, em boa parte, quase que a única alternativa de subsistência da sofrida população afegã, a qual obviamente não consome nem uma ínfima porção de tudo aquilo que é produzido. A destinação final, claro, é o mercado internacional.[6]

Ora, como a terminante proibição do cultivo desta planta poderia acarretar uma insurgência da população contra a presença americana, a solução adotada pelos responsáveis por delinear as estratégias de segurança e militares foi a mais simples possível. Permitir a continuidade desta atividade, mesmo sabendo que os derivados da papoula (ópio, heroína, morfina etc) cairão na rede internacional de tráfego de drogas. Num cínico pragmatismo de que os fins justificam os meios.

Em síntese, portanto, o que se pode extrair destes fatos é que, por mais que exista o discurso oficial da repressão as drogas, não se pode inocentemente acreditar que todos estejam comungando dos mesmos interesses sinceros de eliminar este problema. Na realidade, o tráfico de entorpecentes acaba por ser uma atividade muito lucrativa para uns, e servindo como excelente pretexto para o exercício de ingerências em políticas locais por parte de países que, a despeito da retórica, mascaram suas verdadeiras intenções escusas.

Lamentavelmente, ao que parece, enquanto este cenário de dissimulação persistir, não haverá vitória a ser comemorada contra as drogas, porque, pelo visto, a permanência deste mercado ilegal interessa a muita gente.


Notas

[1]  ONU promete apresentar novo programa de combate ao narcotráfico em Viena:   http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u532147.shtml, 10 de março de 2009.

[2] UNIC Rio: Centro de Informações das Nações Unidas; http://rio.unic.org/index.php?option=com_content&task=view&id=1970&Itemid=73

[3] ONU recomenda a governos mais investimento social no combate às drogas: http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia182/2009/06/24/mundo,i=121199/ONU+RECOMENDA+A+GOVERNOS+MAIS+INVESTIMENTO+SOCIAL+NO+COMBATE+AS+DROGAS.shtml

[4] Jornal O Estado de S. Paulo: Acordo EUA-Colômbia não criará bases militares, diz Hillary: http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,acordo-eua-colombia-nao-criara-bases-militares-diz-hillary,420929,0.htm)

[5] Brazilian Press: http://www.brazilianpress.com/20090606sab/usa/noticia06.htm

[6] Afegãos recorrem ao cultivo de papoula para sobreviver: http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u100095.shtml

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Sobre o autor
Sérgio de Oliveira Netto

Procurador Federal. Mestre em Direito Internacional (Master of Law), com concentração na área de Direitos Humanos, pela American University – Washington College of Law. Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Professor do Curso de Direito da Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE (SC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA NETTO, Sérgio. As falácias sobre o combate internacional às drogas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3765, 22 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25587. Acesso em: 22 dez. 2024.

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