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Apontamentos sobre o prévio requerimento administrativo

20/12/2013 às 07:44
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A opção pela exigência ou não de prévio requerimento administrativo como condição para a ação judicial em face da Administração implica sopesar dois valores fundamentais no Estado Democrático de Direito: o acesso à Justiça e a separação de poderes.

Introdução

A falta de interesse de agir por ausência de prévio requerimento administrativo tem sido, nos últimos anos, questão bastante discutida no âmbito das demandas em face da Administração Pública e, com maior ênfase, nos processos previdenciários. A controvérsia deu azo a uma jurisprudência variada, cujos contornos até hoje não foram bem definidos, a ponto de sua repercussão geral ter sido reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal no RE-RG n.º 631.240-MG, relator Min. Joaquim Barbosa, ainda pendente de julgamento.

A necessidade ou não de prévia postulação administrativa como condição para a ação judicial em face da Administração Pública, menos do que mera questão processual, implica verdadeiro sopesamento de dois valores fundamentais no Estado Democrático de Direito: o acesso à justiça e a separação de poderes. De fato, a conclusão pela necessidade ou não de requerimento administrativo anterior ao ajuizamento da demanda como condição para a viabilidade desta última impõe se afira se, relativamente ao objeto da ação judicial específica, não estará tolhido, de um lado, o direito constitucional do cidadão postular em juízo e, de outro, o que Celso Antônio Bandeira de Mello chama de “reserva da primeira palavra”, ou seja, o direito de a Administração se pronunciar de forma inicial no que diz respeito aos pedidos a ela dirigidos.

Assim, a análise da matéria é também a análise da tensão entre esses dois princípios fundamentais do Estado Brasileiro. Daí a importância de lançar olhos sobre a discussão sem cingir-se à questão meramente processual das clássicas condições de ação de Liebman.


1. Inafastabilidade da jurisdição e desnecessidade de prévio requerimento administrativo

A Constituição Brasileira consagra o livre acesso ao Judiciário, dadas as garantias fundamentais da inafastabilidade do controle judicial (art.  5º, XXXV), do juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII) e do devido processo legal (art. 5º, LV). Está-se, portanto, diante de um sistema de jurisdição única que, nos dizeres de Moraes, “tem como característica básica a possibilidade de pleno acesso ao Poder Judiciário, tanto dos conflitos de natureza privada, quanto dos conflitos de natureza administrativa”.[1]Por este prisma, compete ao Poder Judiciário brasileiro exercer o controle último da atividade estatal, não havendo matéria a ele vedada.

O princípio da inafastabilidade do controle judicial tem sua origem na Constituição de 1946, derivando do receio existente, à época, quanto ao ressurgimento do regime do Estado Novo. Daí sua redação em fórmula excessivamente ampla, da qual decorre, na lição de Pontes de Miranda, o fato de que “em todo caso, no sistema jurídico brasileiro, o controle judicial vai muito mais longe do que nos outros sistemas jurídicos, inclusive no dos Estados Unidos da América.”[2]

Com o advento da Constituição de 1988, deu-se a constitucionalização dos princípios afetos à Administração Pública[3], o que permitiu um alargamento da função jurisdicional sobre seus atos, dada a plena incidência do controle de constitucionalidade sobre a matéria. Em consequência, o Poder Judiciário, no exercício do controle horizontal do poder, passou a exercer verdadeira função de legislador negativo também em relação às principais normas de direito público. Como “os princípios constitucionais a serem observados pela Administração Pública direta, indireta e fundacional em sua atividade são generalíssimos”[4], o controle judicial, a partir de então, passou a ser não mais meramente legal, consistindo, isso sim, em verdadeiro controle de legitimidade.

Fato é que desde sua instituição o princípio da inafastabilidade da jurisdição, que ora vem consagrado no inciso XXXV do art. 5º da Constituição de 1988, deu ensejo ao que recente estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para o Conselho Nacional de Justiça denominou de sistema de duplicidade de instâncias: a garantia concomitante do cidadão de valer-se livremente da complexa instância administrativa brasileira e, ao mesmo tempo, encetar ex novo o contencioso com a Administração Pública, por sua iniciativa, frente ao Poder Judiciário.[5]

A existência dessas duas esferas diferenciadas – a administrativa e a judicial - poderia ser tomada como a outorga de uma dupla proteção ao cidadão lesado.[6]Por esse viés, a desnecessidade do prévio requerimento administrativo, independentemente da matéria, haveria de ser vista como extensão da interpretação do conteúdo do princípio do livre acesso à Justiça: se o cidadão pode valer-se da instância administrativa e, ao final, reconstruir a mesma demanda em face do Poder Judiciário, razão não haveria para que não pudesse ele, desde logo, optar pela via judicial, na medida em que somente esta última faria verdadeira coisa julgada. A matéria, contudo, está a exigir ponderação dessa afirmativa com outros princípios constitucionais e, mais ainda, com as consequências práticas do afastamento da exigência de prévia manifestação da Administração como condição para o pronunciamento do Judiciário.


3. Separação de poderes e exigência de prévio requerimento administrativo

Se a opção pela desnecessidade da prévia provocação da Administração ou da existência mesma de um ato ou omissão administrativos a serem apreciados pelo Judiciário pode ser tida como válida à vista da inafastabilidade da jurisdição, não se pode deixar de concluir que denota ela uma escolha racional pela não-observância dos limites inerentes a outro princípio igualmente fundamental: a separação dos Poderes da República. De um lado, basta a pretensão do cidadão em face do Estado; de outro, há uma disseminada convicção de que, no contraste de intelecções entre a Administração e o Judiciário, prevalece sempre, de forma substitutiva, a opção do órgão controlador, independentemente de a interpretação do controlado ser ou não conforme ao direito.

Por esse viés, não se olvida que o papel do Judiciário de legislador negativo foi e tem sido importantíssimo em vários aspectos relacionados à Administração Pública. De fato, não se pode negar que, a partir da Constituição da República de 1988, conquanto tenha havido incremento do controle social sobre a Administração Pública, ganhou maior relevância seu controle externo e, com mais ênfase, o controle pela via judicial.[7]O fenômeno da constitucionalização das normas básicas do direito público no Brasil permite ao Judiciário, hoje, impedir que o Executivo molde a Administração Pública em discordância com seus princípios e preceitos constitucionais básicos, cumprindo ele, pois, seu papel protagonista no controle da função administrativa.

No entanto, a possibilidade de atuação direta do juiz singular na solução do caso concreto tem ensejado um nocivo distanciamento entre as esferas administrativa e judicial. À vista da amplitude dos princípios constitucionais afetos à Administração Pública, o resultado é que “no fundo é o juiz que determina, no caso concreto, o seu alcance. Ou seja, é este que vai especificar, no caso concreto, o seu conteúdo. Assim, já não basta ao administrador cumprir formalmente a lei”.[8]Com efeito, nas questões afetas ao Regime Geral da Previdência Social, por exemplo, pleitos individuais que seriam da rotina da Administração Previdenciária são postos ao Judiciário diuturna e diretamente, a fim de que se decida se estão em conformidade com sua lei de regência e respectivos princípios constitucionais, independentemente de prévia manifestação da Administração.

Dadas as vastas possibilidades de interpretação próprias das normas abertas e a amplíssima competência dos diversos órgãos jurisdicionais para apreciação dos litígios, a consequência é uma jurisprudência heterogênea, em que cada caso tem uma regulação judicial singular e distinta dos parâmetros adotados pela Administração. É que “à Administração é vedada, como deve ser, declaração de inconstitucionalidade e, máxime, construções constitucionais. Sendo, porém, tais poderes admitidos, em nossa cultura jurídica atual, ao juiz ordinário, mesmo em primeiro grau, cria-se, desde logo, um espaço real e efetivo que tende a opor, crescentemente, a instância administrativa à instância judicial.”[9]

Assim, o princípio da inafastabilidade da jurisdição não tem ensejado apenas o desejável controle da atividade administrativa na forma de controle-fiscalização, ou seja, mediante verificação, pelo Judiciário, da atuação administrativa concreta, a fim de apurar sua compatibilidade com as normas gerais e os valores fundamentais.[10]A ampla e irrestrita atuação jurisdicional sobre matérias próprias da Administração sem que haja sua prévia manifestação tem tido como consequências, de um lado, a reinterpretação, pelo Judiciário, também de critérios intrinsecamente políticos; e de outro, com base justamente na insegurança jurídica, o incremento do número de demandas judiciais, especialmente em matéria previdenciária.


3. A jurisprudência sobre o tema em matéria previdenciária

Até há pouco, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça assentava a prescindibilidade de prévia postulação administrativa de benefício previdenciário para o ajuizamento da ação judicial previdenciária. Conquanto se entendesse pela sua desnecessidade, porém, prevalecia a inteligência de que, à sua ausência, o termo inicial do pagamento do benefício se fixaria na data da citação da autarquia.[11]Na prática, portanto, o Judiciário atuava em verdadeira e integral substituição da autarquia previdenciária, na medida em que, ausente postulação perante esta última, cabia ao juiz verdadeiramente conceder e negar benefícios. Depois do julgamento do REsp 1.310.042/PR, Relator Min. Herman Benjamin, DJ de 28.5.2012, o entendimento da Segunda Turma daquele Tribunal se alterou, passando a reconhecer a necessidade de prévio requerimento administrativo para postular nas vias judiciais. Assim, no âmbito da Segunda Turma, entende-se atualmente que “o interesse processual do segurado e a utilidade da prestação jurisdicional concretizam-se nas seguintes hipóteses: recusa de recebimento do requerimento; negativa de concessão do benefício previdenciário, seja pelo concreto indeferimento do pedido, seja pela notória resistência da autarquia à tese jurídica esposada”.[12]

Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal já afirmou, em algumas oportunidades, no sentido de que o exaurimento da via administrativa não se confunde com a ausência de prévio requerimento. Até o momento, porém, aquela Corte ainda não se manifestou especificamente quanto à hipótese de total ausência de requerimento administrativo de benefício previdenciário.

No âmbito dos Tribunais Regionais Federais e Juizados Especiais Federais, por fim, a despeito de algumas oscilações, a jurisprudência mais recente é favorável à preliminar de falta de interesse de agir, muito embora haja hipóteses específicas em que se adentra em questões fáticas para afastá-la (pessoa não-alfabetizada, benefício assistencial, bóia-fria e quando, à luz da documentação apresentada na via administrativa, seria possível à autarquia vislumbrar a procedência do que o segurado visa judicialmente).

Da jurisprudência se depreende, pois, que o acolhimento da preliminar no caso concreto evoluiu, passando, aos poucos, a exigir efetiva existência de pretensão resistida como condição para a prestação jurisdicional, na medida em que a intervenção do Poder Judiciário somente deve ocorrer nas hipóteses em que haja prévio litígio a ser dirimido. Vê-se, pois, um movimento no sentido de que a alegação e o acolhimento da preliminar não mais são tidos como negativa de jurisdição, tampouco ofensa ao direito de ação previsto no art. 5º, XXXV, da CRFB. Trata-se, antes disso, de explicitação da impropriedade da via jurisdicional, uma vez que não faz sentido colocar o aparato judicial para atender interesses que podem e devem ser supridos pela atuação administrativa.

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Nessa linha, é certo que há hipóteses em que não tem cabimento entender-se pela falta de interesse de agir, as quais, conforme o Superior Tribunal de Justiça vem delineando, dizem com aquelas pretensões cujo indeferimento administrativo é certo ou notório. Além disso, há muito a jurisprudência é pacífica quanto à configuração da lide, como pretensão resistida, a partir do momento em que a preliminar vem acompanhada de uma refutação do mérito. É que, embora haja entendimento de que tal posição seria incompatível com o princípio da eventualidade, no caso específico da postulação judicial com ausência de prévio requerimento a dúvida quanto às possibilidades de sucesso em eventual pedido administrativo se tornaria uma quase-certeza quando a Administração afirma em juízo, ainda que por meio de seu representante legal, a ausência do direito.


4. Considerações finais

Num contexto em que cada decisão singular de um juiz afeta a seu modo a atuação da Administração Pública como um todo, o resultado é o atual assoberbamento dos tribunais superiores, porque lhes incumbe a uniformização da interpretação da legislação e a última palavra quanto à conformidade da lei à Constituição. Por esse prisma, a análise da necessidade de prévio requerimento administrativo exige se pondere até que ponto a atividade de controle-fiscalização exercida pelo Poder Judiciário pode não apenas se sobrepor, mas substituir na íntegra as decisões administrativas.

Se é fato que o Executivo não pode moldar a Administração de forma discricionária, ao revés, contudo, também não cabe ao Judiciário moldar a Administração Pública discricionariamente. Esse, pois, o equívoco em que se incorre no Brasil: uma interpretação alargada do princípio do livre convencimento motivado, com base na qual se permite ao juiz, partindo da Constituição, aplicar, no lugar da lei, outro parâmetro de nível e força legal construído a partir de princípios abstratos e gerais ao fato ou à situação em julgamento,[13]em verdadeira atividade de substituição a que se refere a moderna doutrina processual.

Ora, a decisão do juiz somente deve ter lugar quando se estiver diante de um critério ou decisão administrativa e, mais que isso, quanto tais atos administrativos infringirem direito subjetivo ou interesse jurídico do cidadão. Do contrário, incabível uma atividade de fiscalização propriamente jurídica por parte do Poder Judiciário. Daí por que, na grande maioria dos casos, a prévia análise da pretensão pela Administração não é apenas recomendável, mas plenamente exigível.

Em matéria previdenciária, os efeitos da necessidade de prévio requerimento administrativo como regra geral são bem ilustrativos: parece evidente que não é tarefa típica do juízo, por exemplo, analisar e computar todos os períodos de labor constantes de uma Carteira de Trabalho para fins de concessão de benefício de aposentadoria. Essa tarefa é a atividade-fim da autarquia previdenciária. Ao juízo, quando instado, cabe a relevante função de efetuar o controle da legitimidade do ato administrativo concessório ou indeferitório do benefício, corrigindo os equívocos porventura havidos na via administrativa. Conclusão diversa implica permitir que uma atividade tipicamente administrativa seja absorvida diretamente por outro poder, com o que, afinal, se perpetuarão situações de insegurança jurídica quanto à atuação administrativa e ineficiência da máquina judiciária, em detrimento do Estado Democrático de Direito, cuja existência depende, para a efetividade dos direitos e garantias sociais, do bom funcionamento de ambos.


Notas

 [1]MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 777.

 [2]MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. I de 1969. T. 5. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 106.

 [3]O que, como refere Alexandre de Moraes, não encontra paralelo no direito comparado. Op. cit., p. 774.

 [4]FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 239.

 [5]Universidade Federal do Rio Grande do Sul. As inter-relações entre o processo administrativo e o judicial (em matéria fiscal), a partir da identificação de contenciosos cuja solução deveria ser tentada previamente na esfera administrativa. Relatório Final. Porto Alegre, 2011.

 [6]MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 1306.

 [7]TORRES, Marcelo Douglas de Figueiredo. Estado, democracia e administração pública no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 82.

 [8]FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit., p. 239.

 [9]Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Op. cit.

 [10]JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 740.

 [11]EResp 735329/RJ, Ministro Jorge Mussi.

 [12]AgRg no AREsp 283.743/AL, Rel. Min. CASTRO MEIRA, Segunda Turma, DJe 26/4/13; REsp 1310042/PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/05/2012, DJe 28/05/2012.

[13]Como referido no Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, “se todos têm que agir em conformidade com a lei, ter-se-ia, ipso facto, respeitada a isonomia. Essa relação de causalidade, todavia, fica comprometida como decorrência do desvirtuamento da liberdade que tem o juiz de decidir com base em seu entendimento sobre o sentido real da norma.”

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Sobre a autora
Aline Machado Weber

Procuradora Federal. Especialista em Direito Público pela UnB. Especialista em Direito Ambiental pela UFRGS. Especialista em Direito Previdenciário pela PUC-Minas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WEBER, Aline Machado. Apontamentos sobre o prévio requerimento administrativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3824, 20 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26190. Acesso em: 21 nov. 2024.

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