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Conflito de normas nas relações trabalhistas:

da resolução de antinomias à ponderação de princípios

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29/12/2013 às 13:33
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3. Solução dos conflitos de normas nas relações de trabalho: existe uma especificidade trabalhista?

As características peculiares do Direito do Trabalho, percebidas desde o final do século XIX, fizeram com que restasse consolidada a autonomia desse ramo jurídico. Para justificarem tal autonomia, os doutrinadores costumam apresentá-la sob três perspectivas distintas: a) sob o ponto de vista doutrinário, afirma-se a autonomia científica da nova disciplina quando se verifica a existência de princípios específicos, estranhos aos demais ramos ou, a utilização diferenciada de princípios comuns; b) quanto à legislação, a autonomia manifesta-se através de amplo repertório de normas peculiares – costuma-se sustentar a necessidade de um código próprio, ou ao menos uma consolidação; c) por fim, a autonomia didática ocorre quando se passa a estudar de forma particular, determina disciplina jurídica.[25]

Sustentando o preenchimento das três condições, à unanimidade, os doutrinadores do Direito do Trabalho defendem a autonomia desse ramo  jurídico. Por certo, merece menção que, os mesmos doutrinadores são enfáticos ao afirmarem que essa autonomia tem apenas fins didáticos, não representando o seu isolamento em relação aos demais ramos do direito, e mesmo em relação à ciência em geral. Argumentam, em suma, que toda autonomia é relativa.[26]

O que se questiona, aqui, é se essa autonomia científica do Direito do Trabalho é suficiente para determinar uma forma própria de solução de conflito de normas na resolução de questões que envolvam relações de trabalho?

A resposta a essa pergunta pode envolver dois âmbitos, tendo em vista a distinção atualmente aceita na doutrina e na jurisprudência entre normas-regras e normas-princípios ou sua superação.

Conforme referido na primeira parte do presente artigo, a teoria geral do direito vem sustentando que, em face de seu caráter “tudo-ou-nada”, o conflito entre regras jurídicas, resolve-se por uma das clássicas fórmulas de resolução de antinomias: hierarquia, anterioridade e especialidade, segundo os quais a regra superior prevalece sobre a inferior, a posterior revoga a anterior e a específica prejudica a geral, respectivamente, fazendo com que as regras preteridas sejam completamente afastadas da solução do caso; ao passo que a colisão entre princípios, tendo em vista a sua dimensão de peso, é resolvida pelo critério de ponderação.

No Direito do Trabalho, entretanto, os conflitos normativos não se resolvem da mesma forma. Como decorrência de uma das possíveis formas de expressão do princípio da proteção, a regra da norma mais favorável determina que, “no caso de haver mais de uma norma aplicável, deve-se optar por aquela que seja mais favorável, ainda que não seja a que corresponda aos critérios clássicos de hierarquia das normas”[27]. De plano, percebe-se que as formas clássicas de resolução de antinomia sofrem drástica alteração quando se trata de resolver conflito entre regras trabalhistas. Isso porque a regra da aplicação da norma mais favorável faz com que a hierarquia das normas definidoras de direitos trabalhistas não seja orientada por um critério formal, tal como ocorre no direito comum, mas sim por um critério substancial, que diz respeito, justamente, ao conteúdo das normas conflitantes. Nesse sentido, fala-se em uma hierarquia dinâmica dessas normas:

Havendo duas ou mais normas jurídicas trabalhistas sobre a mesma matéria, será hierarquicamente superior, e portanto aplicável ao caso concreto, a que oferecer maiores vantagens ao trabalhador, dando-lhe condições mais favoráveis, salvo no caso de leis proibitivas do Estado.[28]

Que o critério é válido para determinar uma alteração no critério de hierarquia das normas trabalhistas, não há dúvidas. Os questionamentos surgem quanto à aplicação da cláusula da norma mais benéfica também quando se trata de solucionar antinomias que envolvem conflitos de regras no tempo e no que pertine ao grau de especificidade. Considerado, entretanto, os fundamentos que justificam a existência do critério da norma mais favorável, devem ser dirimidas todas as dúvidas, no sentido da aplicação da cláusula também para esses casos de antinomia.

Nesse sentido, sob o ponto de vista legal, o caput do art. 7º da Constituição determina que “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”, denotando, pois, o caráter de prevalência das normas mais favoráveis aos trabalhadores em prejuízo de todas as demais. No mesmo sentido, o artigo 620 da CLT que preceitua que “As condições estabelecidas em Convenção, quando mais favoráveis, prevalecerão sobre as estipuladas em Acordo”. Da mesma forma, sob uma perspectiva doutrinária, a finalidade de realização de justiça social, que deve orientar o Direito do Trabalho e o próprio princípio da proteção, que o deve reger, impõe a prevalência da norma mais favorável, ainda que anterior ou mais genérica a qualquer outra espécie normativa. Nesse sentido, quanto ao critério da anterioridade, doutrinadores nacionais e internacionais defendem a noção de proibição de retrocesso em matéria de direitos sociais.[29]

Questão mais tormentosa, entretanto, é a que diz respeito à observância da regra que determina a aplicação da norma mais favorável quando se está diante de uma colisão de princípios, haja vista que a própria formulação da regra decorre da concretização de uma norma dessa natureza: o princípio da proteção.

Poder-se-ia argumentar que, em que pese a regra faça referência à aplicação da “norma mais favorável”, em verdade, deveria ser aplicada apenas na hipótese de conflito de regras, em que a solução determina o afastamento completo de uma das fontes normativas, o mesmo não ocorrendo, entretanto, quando da colisão de princípios que, em face de sua dimensão de peso e de seu caráter de otimização, requerem uma aplicação orientada pela prática da ponderação, mesmo no âmbito trabalhista.

Entretanto, é justamente o Direito do Trabalho o ramo que melhor revela a insubsistência da teoria da ponderação seguida pela maioria absoluta dos juristas brasileiros. Princípios são em realidade a porção da norma jurídica que se aproxima da moralidade, que a compromete com o projeto de sociedade constituído. Por sua vez, a regra é a porção da norma que contém o comando efetivo de conduta e que só será aplicável caso expresse adequadamente o princípio que a inspira ou complementa. É o que se extrai de uma leitura mais atenta de Dworkin que, ao contrário do que preconiza Alexy, compreende exista uma “resposta correta” para cada caso concreto (embora admita a exceção dos ‘casos difíceis’).

A regra da aplicação da norma mais favorável é decorrência lógica do princípio da proteção que é infenso à ponderação, sob pena de descaracterizarmos o Direito do Trabalho. Bem por isso, sua aplicação é exigida em qualquer hipótese de conflito ou colisão normativa.

O que se sustenta é que, nesse ramo jurídico, por razões que justificam a sua própria existência como direito autônomo, ligadas às ideias orientadoras de justiça social e igualdade material, a proteção deve ser considerada como um princípio fundante, que deve orientar a aplicação de toda e qualquer norma (princípio ou regra) nos conflitos trabalhistas, sempre.

Assim, seja por razões de ordem positiva (constitucional ou legal), seja por razões de ordem doutrinária, o princípio fundamental da proteção e a sua concretização na forma da regra que determina a aplicação da norma mais favorável ao trabalhador devem servir como parâmetro inafastável de aplicação do Direito do Trabalho ao caso concreto.

Reside, pois, nesse ponto, a especificidade do conflito de normas no Direito do Trabalho: independentemente de sua estrutura lógica, de sua hierarquia, posteridade ou especificidade, a norma mais favorável ao trabalhador gozará, invariavelmente, de uma preferência[30],  em prejuízo da norma que lhe seja menos favorável, em razão mesmo do que justifica a existência de um Direito do Trabalho.

Essa conclusão pode ser sustentada inclusive a partir da teoria da ponderação de Alexy, estabelecendo uma precedência prima facie do princípio da proteção, na linha do que escreve o professor Juarez de Freitas, quando propõe uma interpretação constitucional axiológica, em que sejam identificados os ou o valor que, por sua especial importância, se sobrepõe aos demais na ordem jurídica brasileira, impedindo a ponderação entre princípios com características e importâncias diversas. O valor da dignidade da pessoa humana, que no âmbito das relações de trabalho é explicitado, no texto constitucional, pela expressão “valores sociais do trabalho”[31], também denominado princípio/dever da proteção, é o valor fundamental que orienta a regra da inviolabilidade da intimidade e da privacidade, no ambiente de trabalho[32].

A introdução dos valores como elementos do ordenamento jurídico não constitui novidade. Embora durante um significativo período de tempo, direito tenha significado conjunto de regras jurídicas, que não deveriam ser contaminadas por valores ou ideologias, o certo é que os valores sempre constituíram o fundamento da estrutura jurídica de determinada comunidade, em certo momento histórico[33]. E essa noção, a princípio, seria passível de ser compatibilizada com a estrutura de princípios e regras (e com a lógica da ponderação) da doutrina de Alexy.

O que propomos, porém, é um passo adiante. Propomos uma reflexão sobre a própria aplicação da teoria de que princípios e regras são espécies de normas, tendo os primeiros a possibilidade / necessidade de serem ponderados quando de sua aplicação ao caso concreto. Propomos, a partir do exemplo significativo do Direito do Trabalho, a ruptura dessa dualidade para, na linha da doutrina de Streck, considerarmos princípios e regras como parte do que denominamos norma jurídica. Sob essa perspectiva, a norma jurídica trabalhista se justifica e tem validade, apenas quando informada pelo princípio da proteção, que é exatamente o princípio, a razão de ser desse conjunto especial de normas jurídicas.


Conclusão

O surgimento do Direito do Trabalho entre o final do século XIX e início do século XX, coincide com uma nova proposta de se considerar o próprio direito. Com a passagem do Estado Liberal para o Estado Social, o direito deixa de ser percebido apenas como um limite da atuação do Estado em favor da liberdade dos indivíduos e passa a regular, de forma imperativa – ou seja, mediante imposições estatais –, as relações entre os próprios indivíduos.

Orientado pela ideia de igualdade material e pelo ideal de justiça social, esse “novo direito” visa, por intermédio de prestações positivas do Estado, assegurar uma efetiva igualdade de condições entre os sujeitos particulares. Nesse contexto, o Direito do Trabalho surge e se desenvolve como um ramo jurídico autônomo, orientado por premissas inteiramente diversas das que até então vinham fundando o direito privado, em especial a consideração da necessidade de proteção de uma das partes da relação que rege. Nesse sentido, é possível afirmar que a ideia de proteção ao trabalho humano é da essência do Direito do Trabalho no sentido de que lhe é a nota peculiar que o diferencia dos demais ramos jurídicos. Essa nota peculiar não pode deixar de ser considerada quando se trata de resolver eventuais conflitos de normas na solução de questões trabalhistas.

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A par disso, as normas definidoras de direitos trabalhistas gozam de características próprias capazes de lhes outorgar o caráter de normas definidoras de direitos fundamentais. Não apenas por tratarem de regular uma relação que é inerente à própria condição humana – o trabalho –, mas também por dizerem respeito a aspectos que, em uma perspectiva maior, acabam por configurar a própria forma de atuação do Estado. Conforme demonstramos no presente artigo, a política estadunidense do New Deal passou por forte influência de regras que regulavam as relações de trabalho e somente foi plenamente possível após a mudança de posicionamento da Suprema Corte norte-america, que passou a considerar constitucional as medidas então adotadas pelo presidente Roosevelt. Presente, pois, a nota de fundamentalidade em seu aspecto material, que se caracteriza, segundo lição de Sarlet, pela circunstância de tais direitos representarem decisões fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade. Indiscutível, por outro lado, o caráter formal da fundamentalidade das normas definidoras de direitos trabalhistas, seja em função de sua previsão expressa no texto constitucional de 1988, seja pelo caráter de superioridade hierárquica que essas mesmas normas possuem.

Tais particularidades fazem com que o conflito de normas no Direito do Trabalho deva ser resolvido de uma forma peculiar. O caráter de fundamentalidade de suas normas aliado à ideia de igualdade material e ao ideal de justiça social, que se traduzem no princípio da proteção ao trabalho humano afetam a solução de um eventual conflito de normas, modificando as tradicionais formas aplicáveis no direito comum. A regra da aplicação da norma mais favorável revela-se como concretização do princípio protetivo, evidenciando a impossibilidade de tratarmos princípio e regra como espécies distintas de um gênero (norma jurídica).

Em realidade, as regras são criadas e se justificam em razão do princípio que concretizam e, bem por isso, no caso das normas trabalhistas deve prevalecer sempre (de forma definitiva), a norma mais favorável ao trabalhador, afastando-se, assim, na seara trabalhista, os clássicos critérios de resolução de antinomias: hierarquia, anterioridade e especialidade.

O Direito do Trabalho é, pois, o ambiente ideal para percebermos a necessidade de superação da dicotomia proposta por Dworkin e secundada por Alexy, e a inviabilidade de ponderação quando da colisão de princípios, justamente em razão do reconhecimento de que princípios são apenas uma face da norma e se caracterizam por constituírem a razão de ser de determinado ramo do direito. Nesse contexto, a proteção é o fundamento do Direito do Trabalho e afastá-la, a pretexto de ponderá-la com outros princípios, implicaria desconfigurar, negar, esse ramo especial do direito.


Referências

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Sobre o autor
Almiro Eduardo de Almeida

Juiz do Trabalho Substituto no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Professor de Graduação no Centro Universitário Metodista - IPA. Especialista em Direito do Trabalho pela Universidad de la República Oriental del Uruguay. Mestre em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Doutorando em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo – USP. Membro-pesquisador do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Centralidade do Trabalho e Marxismo. Membro-pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Teoria e Prática da Greve no Direito Sindical Brasileiro Contemporâneo. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Direito do Trabalho do Centro Universitário Metodista – IPA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Almiro Eduardo. Conflito de normas nas relações trabalhistas:: da resolução de antinomias à ponderação de princípios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3833, 29 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26258. Acesso em: 26 abr. 2024.

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