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A moralidade como princípio validador da Lei da Ficha Limpa

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13/04/2014 às 15:22
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4. PRINCÍPIO DA MORALIDADE PARA O EXERCÍCIO DO MANDATO

Ao se consultar a história do país é possível constatar que os candidatos que foram detentores de uma vida pregressa repleta de imoralidades públicas e anotações criminais em suas folhas de antecedentes, costumaram praticar crimes de toda ordem, a maioria em prejuízo do erário. Não é difícil perceber, portanto, que o administrador público – sob o pretexto de exercer o mandato eletivo em nome do povo – transforma por vezes a caneta de seu ofício no mesmo pé-de-cabra que arromba os cofres públicos (metáfora notoriamente repetida pelo eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Augusto Ayres de Freitas Britto).

São por razões como essas que o Princípio da Moralidade para o exercício do mandato foi introduzido na Constituição como objeto de inelegibilidade. Está previsto no art. 14, § 9º da Constituição Federal (CF88, 2010) que exige lei complementar para estabelecer casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

A proteção do exercício do mandato eletivo, com a elevação do Princípio da Moralidade a objeto de inelegibilidade, foi inaugurada pela nova redação atribuída ao §9º do art. 14 da Constituição pela Emenda Constitucional de Revisão n. 4/94.

A inovação, dessa maneira, veio proteger o exercício do mandato, valor digno da maior proteção, conforme já era ressaltado há tempo por doutrinadores clássicos como José Afonso da Silva, que assim dispôs sobre o referido dispositivo constitucional (§9º do art. 14):

Entenda-se que a cláusula ‘contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício da função’ só se refere à normalidade e à legitimidade das eleições. Isso quer dizer que ‘a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato são valores autônomos em relação àquela cláusula, não são protegidos contra a influência do poder econômico ou o abuso de função, etc., mas contra valores em si mesmos dignos de proteção, porque a improbidade e imoralidade, aí, conspurcam só por si a lisura do processo eleitoral (2006, p. 670).

Nesta senda, embora sempre fosse claramente perceptível a importância do referido Princípio da Moralidade para o exercício do mandato, é interessante ressaltar que muito se debateu sobre sua eficácia, ou seja, se era ou não dotado de eficácia suficiente para sua imediata aplicação.

Para Marcos Ramayana, o Princípio da Moralidade para o exercício do mandato, o qual denomina de Princípio da Moralidade Eleitoral, é dotado de eficácia contida. Dessa forma, o doutrinador rebate que o preceito constitucional (art. 14, § 9º) que trata do referido princípio seja norma de eficácia limitada, vale dizer, discorda do teor da Súmula n. 13 do Tribunal Superior Eleitoral que conclui pela não auto-aplicabilidade da regra prevista no §9º, art. 14, da Constituição. Diz a súmula: “não é auto-aplicável o §9º do art. 14 da Constituição, com a redação de Revisão nº 4/94”.

Ramayana pontua:

Cabe ao órgão jurisdicional competente para o deferimento do pedido de registro de candidatos (TSE, TRE’s e juízes eleitorais) perscrutar se o interessado é possuidor de vida pregressa ilibada aplicando a norma dos artigos 1º, II, e 14, § 9º, da CRFB.

Se concluir que as anotações criminais são decorrentes de fatores graves, tais como: processos criminais hediondos ou assemelhados aos mesmos; crimes de roubo, extorsão, estelionato, defraudações, seqüestros, latrocínios e outros deverão fiscalizar a ordem constitucional e indeferir os respectivos pedidos, cabendo as instâncias superiores à análise da razoabilidade destas decisões. As normas são de eficácia contida e não limitada: o que neste ponto, data vênia, ousamos discordar da posição sumulada no verbete 13 do egrégio Tribunal Superior Eleitoral [...] (2009, p. 58).

Essa discussão doutrinária era acentuada antes da edição da Lei da Ficha Limpa, pois com a Lei Complementar n. 135/10 o dispositivo constitucional que trata sobre a vida pregressa do candidato e a moralidade para o exercício do mandato foi regulamentado.

Mesmo assim, entende-se que não era razoável, com vênia à doutrina contrária, portanto, o argumento levantado no sentido de que o art. 14, §9º, da Constituição, seria de eficácia limitada, porque se trata, decerto, de norma de eficácia contida, ou seja, norma que tem aplicação imediata, podendo apenas e, tão-somente, a legislação infraconstitucional restringir a sua aplicabilidade, como bem estabeleceu o legislador constitucional no próprio dispositivo.

A Lei da Ficha (LC n. 135/2010) estabeleceu várias hipóteses objetivo-delineadoras para a identificação do candidato que não detém moralidade para o exercício do mandato, a saber:

Art. 2º [...] c) o Governador e o Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal e o Prefeito e o Vice-Prefeito que perderem seus cargos eletivos por infringência a dispositivo da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término do mandato para o qual tenham sido eleitos;

d) os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes;

e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes:

1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público;

2. contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência;

3. contra o meio ambiente e a saúde pública;

4. eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade;

5. de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública;

6. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores;

7. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos;

8. de redução à condição análoga à de escravo;

9. contra a vida e a dignidade sexual; e

10. praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando;

f) os que forem declarados indignos do oficialato, ou com ele incompatíveis, pelo prazo de 8 (oito) anos;

g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição;

h) os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional, que beneficiarem a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político, que forem condenados em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes;

....................................................................................................

j) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição;

k) o Presidente da República, o Governador de Estado e do Distrito Federal, o Prefeito, os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa, das Câmaras Municipais, que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo por infringência a dispositivo da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término da legislatura;

l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena;

m) os que forem excluídos do exercício da profissão, por decisão sancionatória do órgão profissional competente, em decorrência de infração ético-profissional, pelo prazo de 8 (oito) anos, salvo se o ato houver sido anulado ou suspenso pelo Poder Judiciário;

n) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, em razão de terem desfeito ou simulado desfazer vínculo conjugal ou de união estável para evitar caracterização de inelegibilidade, pelo prazo de 8 (oito) anos após a decisão que reconhecer a fraude;

o) os que forem demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo ou judicial, pelo prazo de 8 (oito) anos, contado da decisão, salvo se o ato houver sido suspenso ou anulado pelo Poder Judiciário;

p) a pessoa física e os dirigentes de pessoas jurídicas responsáveis por doações eleitorais tidas por ilegais por decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, pelo prazo de 8 (oito) anos após a decisão, observando-se o procedimento previsto no art. 22;

q) os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos;

Mas a análise da moralidade para o exercício do mandato não se resume tão-somente nas balizas da LC n. 135/10. Deve-se lembrar que o ordenamento jurídico é uno e nesse sentido a Constituição Federal, em especial, não pode ser ignorada. Seus inúmeros preceitos relacionados com a moralidade também devem ser observados quando da análise da moralidade eleitoral.

Nesse norte, para Marcelo Figueiredo, em sua obra "O controle da moralidade na Constituição", o conteúdo da moralidade pode e deve ser buscado na Constituição. Ademais:

[..] Sendo assim, ao amparo dos valores prestigiados na Lei maior, como a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, da livre iniciativa, do pluralismo político (art. 1º), o legislador tem o dever de observar a moralidade quando legisla. É dizer: como seria atender à "dignidade humana" não observando a moralidade? Sem dúvida alguma, lei que não atendesse à moralidade ou que estabelecesse conteúdo contrário aos standards da moralidade estaria, por certo, violando direta ou indiretamente os valores constitucionais (2003, p. 124).

Já Ferreira Filho, ao tratar sobre a moralidade eleitoral no artigo com o título "A inelegibilidade para proteger a ‘moralidade para o exercício do mandato’", diferencia os aspectos negativo e positivo sobre o tema.

Dois aspectos avultam na análise: um, do ângulo positivo; outro, do negativo.

O primeiro se comprova pelo espírito em que é levada a vida pública. Traduz-se no "espírito público", que concerne ao procedimento para com o interesse geral.

O segundo muito se aproxima da "probidade administrativa"; contudo, não se resume nesta. Vai além, porque afasta a exploração do poder, pro domo sua. Isto renega a busca das vantagens materiais que podem provir do mandato, ou as possibilidades que este propicia (2006, p. 18).

Ainda no referido texto, Ferreira Filho lembra Aristóteles, quando tratou da instituição da dokimasia (que em uma tradução livre para o português significa "exame"), característica da democracia de Atenas, a qual os candidatos às magistraturas eletivas e os designados para outras magistraturas ou funções eram sujeitos a uma espécie de “investigação social” ou “sindicância da vida pregressa". Segundo Ferreira Filho:

A dokimasia era um exame em que se investigava o passado do aspirante à magistratura, escrutinando-se as suas origens familiares, a sua participação nas cerimônias religiosas, ou cívicas, o cumprimento de suas obrigações cívicas, militares, ou financeiras. Visava isso evidentemente a verificar se, em razão de sua conduta passada, era ele apto e confiável para exercer funções de interesse geral.

Era esse exame realizado perante o Conselho (Boulè), que decidia pela qualificação ou desqualificação do cidadão, nem processo contraditório em que se ouviam testemunhas e, eventualmente, acusadores. Da decisão cabia recurso para os heliastas, isto é, para o Tribunal, que era também composto de cidadãos sorteados, portanto, que tinham passado pela dokimasia (2006, p. 19).

Ao discorrer sobre à auto-aplicabilidade do § 9º do artigo 14 da Constituição, o ex-Procurador Regional Eleitoral do Estado do Acre, Marcelo Antônio Ceará Serra Azul, traz valiosas justificativas para a moralidade no exercício do mandato, verbis:

O registro de candidatura é ato judicial, no qual se deve ter em vista o princípio da moralidade administrativa, sendo certo que parcela do Poder estatal somente pode ser alcançada por pessoas idôneas, de moral ilibada e reputação indene de dúvidas, haja vista o Preâmbulo da Constituição Federal, e os artigos 14, parágrafo 9º, 5º, XXXV, 37, caput e parágrafo 4º, Art. 54, Art. 85, V, 101, 105, 119, II, 120, II, 123, I que, sistematicamente, demonstram que a acessibilidade à parcela do Poder Estatal, seja Federal, Estadual, Distrital ou Municipal, somente é possível a pessoas probas, cuja moral seja ilibada, indene de dúvidas.

Decidir pelo registro de candidatura de pessoa cuja moral é maculada é violar a Constituição da República, pois, permite-se que pessoas sem moral para o exercício de mandato eletivo possam a ele se candidatar, fazendo tabula rasa do princípio da moralidade e de seus corolários os princípios da moralidade para o exercício de mandato eletivo e princípio da moralidade para acesso à parcela de poder estatal, dando acesso ao Poder Pátrio a pessoas sem moral para o exercício do Poder Político (2006, p. 11).

Djalma Pinto, ao defender a dispensabilidade de lei que regulasse a moralidade eleitoral, reforça a conclusão pela suficiência que os dispositivos da Constituição já conferiam para o tema antes mesmo da edição da Lei da Ficha Limpa. Diz o doutrinador:

A exigência de lei para definir "vida pregressa", traçando os contornos dos seus efeitos, no âmbito eleitoral, parece excessiva. Tenha-se presente que a Constituição, em diversos artigos, exige probidade para o exercício de qualquer função pública, recomendando, inclusive, a cassação dos direitos políticos e o afastamento do cargo nos casos de corrupção. Fácil, pois, concluir que qualquer pessoa, condenada por crime relacionado com desvio de dinheiro público, mesmo que não transitada em julgado a decisão, não preenche o requisito constitucional que manda considerar a vida pregressa na aferição dos casos de inelegibilidade. Aguardar a edição de mais uma lei para ratificar e assegurar eficácia àquilo que a Constituição erigiu a nível de princípio, importa, em última análise, em subtrair-lhe a vigência (2006, p. 116).

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Por compromisso a dialética acadêmica, cumpre mencionar os fundamentos dos que defendiam o sentido contrário, que propugnavam pela eficácia constitucional limitada do § 9º do art. 14 da Constituição Federal. Essa corrente salientava para o risco de uma aplicação da referida disposição normativa, sem que tenha havido a sua devida regulamentação por Lei Complementar, o que acarretaria indevida invasão do Poder Judiciário na seara do processo legislativo.

Assim, para Henrique Neves da Silva, ex-Ministro do Tribunal Superior Eleitoral:

As hipóteses de inelegibilidade, por serem regras impeditivas que excluem a incidência da regra geral, necessitam ser examinadas de forma restrita e de acordo com o princípio da tipicidade.

E é bom que assim seja, sob pena de permitir que a discricionariedade de valores para a edição de leis – atribuição exclusiva do legislador – seja exercida por pessoas às quais a Constituição não reconhece competência.

Em jogo os princípios da independência dos poderes e a própria expressão da soberania nacional, que se revela pelo sufrágio universal e pelas leis editadas pelos representantes eleitos.

A "ira cívica" é procedente. Os quadros revelados pelos reiterados episódios revelados nos últimos tempos dão conta disso. Não se deve, contudo, dirigir esse sentimento ao Poder Judiciário. A ele não compete elaborar as leis, exercer o juízo de valor previsto no texto constitucional e nem criar hipóteses de inelegibilidade fora do texto legal, mesmo que em observância ao princípio da moralidade para o exercício do mandato em razão da vida pregressa do candidato (2006, p. 12).

As conclusões que podem ser extraídas dos fundamentos da corrente contrária a auto-aplicabilidade do art. 14, § 9º da CF/88 são: 1) Decisão favorável à consideração da vida pregressa dos candidatos como causa geradora de inelegibilidade conduziria a um ativismo judicial indevido, formulador de um desequilíbrio entre os poderes Judiciário e Legislativo; 2) A decretação de inelegibilidade por análise da vida pregressa poderia se tornar um instrumento de perseguição política; 3) Caberia aos partidos políticos, e não ao Poder Judiciário, fazer uma triagem entre os candidatos, excluindo os corruptos; 4) Não havia previsão relativa à análise da vida pregressa na Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar n. 64/90); 5) O eleitor brasileiro, em sua maioria, tem formação suficiente para distinguir os probos dos ímprobos.

Sucede que a edição da Lei Complementar n. 135/10 enfraqueceu sobremaneira a corrente que defendia a eficácia limitada do princípio da moralidade eleitoral, pois ocupou exatamente o espaço normativo que servia de fundamento para esta corrente.

Destarte, para o deferimento do registro de candidatura protocolizado após a Lei da Ficha Limpa é indispensável que o pretenso candidato não se enquadre em nenhuma das hipóteses de restrição insertas na Lei de Inelegibilidades, pois o legislador entendeu que estará desprovido de honestidade para a função público-eletiva, bastando que tenha uma decisão colegiada em seu desfavor.

Sobre esse aspecto da decisão que ainda não transitou em julgado, percebe-se que o Brasil não é o inaugurador deste entendimento. Mesmo antes da edição da Lei Complementar n. 135/10, Marcos Ramayana defendia com a citação de riquíssimos exemplos do direito comparado a prescindibilidade da existência de decisão judicial com trânsito em julgado:

Na Bélgica, o Código Eleitoral no art. 6º, com a alteração da Lei de 5 de julho de 1976 (art. 3º), assim dispõe: ‘Ficarão definitivamente privados da capacidade eleitoral, não podendo ser admitidos à votação, os que tenham sido condenados a uma pena criminal’. A lei não especifica se deve haver o trânsito em julgado. Vê-se, portanto, que na legislação pátria deveria existir um dispositivo legal que não permitisse o deferimento de pedidos de candidaturas cujos interessados já estivessem condenados, sem trânsito em julgado. Nestes casos, poder-se-ia constituir uma espécie de inelegibilidade criminal.

A Lei Eleitoral da Dinamarca de 31 de maio de 1987, no art. 4º, item I, assim expressa: ‘A inelegibilidade para o Parlamento é atribuída a todo o indivíduo que gozar do direito de voto, nos termos do arts. 1º e 2º, salvo se estiver condenado por um acto que, aos olhos da opinião pública, o torne indigno de ser membro do Parlamento’.

Outrossim, a Lei Orgânica nº 5, de 19 de junho de 1985, do Regime Eleitoral Espanhol, no art. 6º, item 2, disciplina: ‘Não poderão ser eleitos: a) os condenados por sentença transitada em julgado, a pena privativa de liberdade, durante o período de duração da mesma; b) ainda que a sentença não seja transitada em julgado, os condenados por crime de rebelião ou os membros de organizações terroristas condenados por crime contra a vida, a integridade física ou liberdade das pessoas’.

É interessante observar que na Lei Eleitoral de 31 de julho de 1924 (texto refundido), de Luxemburgo, o eleitor perde a capacidade ativa e, por via de conseqüência, a capacidade passiva, quando: ‘Art. 4º: 2º - os que tiverem sido objeto de condenação penal; 3º - os que tiverem sido condenados, bem como seus cúmplices, a pena de prisão por furto, receptação, fraude ou abuso de confiança, contrafacção, emprego de falsificações, falso testemunho, falso juramento, suborno de testemunhas, peritos ou intérpretes...’

Como se nota, as aludidas legislações dos países da União Européia procura adotar mecanismos impeditivos de candidaturas revestidas de imoralidade pela vida pregressa, quando já existe uma condenação, mesmo sem que haja o trânsito em julgado (2009, p. 64).

Veja-se que os países europeus não hesitavam de sobrelevar o Princípio da Moralidade, ainda que fosse preciso relativizar o clássico Princípio da Presunção de Inocência ao dispensar o trânsito em julgado das decisões judiciais. Fica fácil perceber que esses países, a exemplo dos novos rumos inaugurados pelo Brasil com a Lei da Ficha Limpa, entendiam que a vida pregressa do candidato fere o Princípio da Moralidade, constituindo obstáculo para que exerça o mandato eletivo, mesmo que não haja decisão judicial definitiva.

Por derradeiro, vale lembrar que a Justiça brasileira já enfrentava a utilização do Princípio da Moralidade como requisito impeditivo ou não do exercício do mandato eletivo, ocasiões que, em sua maioria, decidiu pelo prestígio ao postulado da Moral. Nesse sentido:

RECURSO ORDINÁRIO. ELEIÇÕES 2006. INDEFERIMENTO. REGISTRO DE CANDIDATURA. EXAME DE VIDA PREGRESSA. ART. 14, § 9º, CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. AFRONTA AOS PRINCÍPIOS DA MORALIDADE E DA PROBIDADE ADMINISTRATIVA. RESSALVA DO ENTENDIMENTO PESSOAL. PROVIMENTO.

1. O art. 14, § 9º, da CF, deve ser interpretado como contendo eficácia de execução auto-aplicável com o propósito de que seja protegida a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerando-se a vida pregressa do candidato.

2. A regra posta no art. 1º, inciso I, g, da LC nº 64, de 18.05.90, não merece interpretação literal, de modo a ser aplicada sem vinculação aos propósitos da proteção à probidade administrativa e à moralidade pública.

3. A autorização constitucional para que Lei Complementar estabelecesse outros casos de inelegibilidade impõe uma condição de natureza absoluta: a de que fosse considerada a vida pregressa do candidato. Isto posto, determinou, expressamente, que candidato que tenha sua vida pregressa maculada não pode concorrer às eleições.

4. A exigência, portanto, de sentença transitada em julgado não se constitui requisito de natureza constitucional. Ela pode ser exigida em circunstâncias que não apresentam uma tempestade de fatos caracterizadores de improbidade administrativa e de que o candidato não apresenta uma vida pregressa confiável para o exercício da função pública.

5. Em se tratando de processos crimes, o ordenamento jurídico coloca à disposição do acusado o direito de trancar a ação penal por ausência de justa causa para o oferecimento da denúncia. Em se tratando de acusação de prática de ilícitos administrativos, improbidade administrativa, o fato pode ser provisoriamente afastado, no círculo de ação ordinária, por via de tutela antecipada, onde pode ser reconhecida a verossimilhança do direito alegado.

6. No entanto, no julgamento do RO nº 1.069/RJ, Rel. Min. Marcelo Ribeiro, sessão de 20.9.2006, esta Corte assentou entendimento segundo o qual o pretenso candidato que detenha indícios de máculas quanto a sua idoneidade, não deve ter obstaculizado o registro de sua candidatura em razão de tal fato.

7. Desta forma, em homenagem ao princípio da segurança jurídica, alinho-me a novel jurisprudência do TSE, ressalvando o meu entendimento.[6]

É imperioso destacar que a moralidade é utilizada para refinar não só o acesso aos cargos eletivos do Poder Executivo e Legislativo, mas também aos que compõem o Poder Judiciário. Para ingresso nos órgãos do Poder Judiciário é exigida a reputação ilibada de seus membros, não havendo - neste sentido - qualquer justificativa razoável para os membros dos Poderes Executivo e Legislativo também não atenderem ao requisito constitucional da moralidade para o exercício do mandato, previsto no art. 14, § 9º.

Vale citar os dispositivos constitucionais que exigem a necessidade de idoneidade da vida pregressa para ingresso em vários órgãos do Poder Judiciário, a saber:

Art. 94. Um quinto dos lugares dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais dos Estados, e do Distrito Federal e Territórios será composto de membros, do Ministério Público, com mais de dez anos de carreira, e de advogados de notório saber jurídico e de reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional, indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes.

Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada.

Art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de quinze membros com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e seis anos de idade, com mandato de dois anos, admitida uma recondução, sendo:

XIII dois cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal.

Art. 104. O Superior Tribunal de Justiça compõe-se de, no mínimo, trinta e três Ministros.

Parágrafo único. Os Ministros do Superior Tribunal de Justiça serão nomeados pelo Presidente da República, dentre brasileiros com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal [...]

Art. 119. O Tribunal Superior Eleitoral compor-se-á, no mínimo, de sete membros, escolhidos:

I – [...]

II - por nomeação do Presidente da República, dois juízes dentre seis advogados de notável saber jurídico e idoneidade moral, indicados pelo Supremo Tribunal Federal.

Parágrafo único. O Tribunal Superior Eleitoral elegerá seu Presidente e o Vice- Presidente.

Art. 120. Haverá um Tribunal Regional Eleitoral na Capital de cada Estado e no Distrito Federal.

§ 1º - Os Tribunais Regionais Eleitorais compor-se-ão:

I – [...]

II – [...]

III – por nomeação, pelo Presidente da República, de dois juízes dentre seis advogados de notável saber jurídico e idoneidade moral, indicados pelo Tribunal de Justiça.

Art. 123. O Superior Tribunal Militar compor-se-á de quinze Ministros vitalícios, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a indicação pelo Senado Federal, sendo três dentre oficiais-generais da Marinha, quatro dentre oficiais-generais do Exército, três dentre oficiais generais da Aeronáutica, todos da ativa e do posto mais elevado da carreira, e cinco dentre civis.

Parágrafo único. Os Ministros civis serão escolhidos pelo Presidente da República dentre brasileiros maiores de trinta e cinco anos, sendo:

I - três dentre advogados de notório saber jurídico e conduta ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional;

II - dois, por escolha. (grifo nosso)

O art. 187 da Lei Orgânica do Ministério Público da União (LC n. 75/93) e o art. 78 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LC n. 35/79) também exigem a presença da idoneidade moral, especificamente:

Art. 187. Poderão inscrever-se no concurso bacharéis em Direito há pelo menos dois anos, de comprovada idoneidade moral.

Art. 78 - O ingresso na Magistratura de carreira dar-se-á mediante nomeação, após concurso público de provas e títulos, organizado e realizado com a participação do Conselho Secional da Ordem dos Advogados do Brasil.

§ 2º - Os candidatos serão submetidos a investigação relativa aos aspectos moral e social, e a exame de sanidade física e mental, conforme dispuser a lei. (grifo nosso).

Dessa forma, se os membros do Poder Judiciário, do Ministério Público e de várias entidades da Administração Direta e Indireta também devem ser possuidores de moralidade para exercerem suas funções, com ainda mais razão, os representantes do povo, também devem sujeitar-se a essa peneira da Moral.

Vê-se que a moralidade enraizou-se no ordenamento jurídico brasileiro de tal forma que se encontra tanto nas relações entre particulares, conforme se extrai das regras do Código Civil vigente, bem como para o exercício da função Administrativa e acesso ao mandato eletivo. Neste último aspecto, viu-se que constitui óbice ao deferimento do requerimento de registro de candidatura a carência de moralidade para o exercício do mandato eletivo por parte de pré-candidato, cuja verificação dos fatos ilícitos relacionados à sua vida pregressa deverá ser examinada em função dos dispositivos objetivos da Lei das Inelegibilidades, com a nova redação atribuída pela Lei da Ficha Limpa (LC n. 135/10), os quais prevêem hipóteses maculadoras como as que derivam da prática de abuso do poder econômico ou político, crime contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público, crime contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência, crime contra o meio ambiente e a saúde pública, crimes eleitorais para os quais a lei comine pena privativa de liberdade, crime de abuso de autoridade nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública, crime de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, crime de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos, crime praticado por organização criminosa, quadrilha ou bando, infração de improbidade administrativa, crime de corrupção eleitoral, captação ilícita de sufrágio, dentre outras tantas situações.

A aplicação do princípio da moralidade previsto no §9º do art. 14 da Constituição Federal é imediata na análise do requerimento de registro de candidatura (RRC), que pode ser questionado também por meio de uma das diversas ações de natureza eleitoral.

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Sobre o autor
Edgard Manoel Azevedo Filho

Analista Judiciário Federal do Tribunal Regional Eleitoral de Rondônia desde 2005. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR (2004). Advogado Eleitoral e Tributarista entre 2004 e 2005. Especialista em Direito Público (Constitucional e Administrativo) pela UNIR (2007). Especialista em Direito Eleitoral e Direito Processual Eleitoral pela Faculdade de Ciências Humanas, Exatas e Letras de Rondônia – FARO (2011). Foi Assessor-Chefe da Presidência e da Corregedoria Regional Eleitoral e Parecerista da Diretoria Geral/TRE-RO. Twitter: @edgardmanoel. Email: [email protected].

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AZEVEDO FILHO, Edgard Manoel. A moralidade como princípio validador da Lei da Ficha Limpa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3938, 13 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27314. Acesso em: 22 dez. 2024.

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