Artigo Destaque dos editores

A moralidade como princípio validador da Lei da Ficha Limpa

Exibindo página 4 de 5
13/04/2014 às 15:22
Leia nesta página:

5. A LEI DA FICHA LIMPA (LEI COMPLEMENTAR N. 135/2010)

Com o intuito de regulamentar o §9º, art. 14, da Constituição Federal, o Congresso Nacional editou a Lei Complementar n. 135, de 04 de junho de 2010, a qual estabelece hipóteses de inelegibilidade como forma de proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato com base na análise da vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

Essa lei ficou conhecida como Lei da Ficha Limpa e sua edição se deve fundamentalmente à pressão e iniciativa popular. O projeto de lei (PLP n. 518/2009)[7] foi elaborado pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE)[8] e posteriormente encampado pelos deputados federais Antônio Carlos Biscaia (PT-RJ), Arnaldo Jardim (PPS-SP) e outros. Com fundamental apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que mobilizou a sociedade por meio das igrejas católicas, foram obtidas mais de 1,6 milhões de assinaturas de apoio ao projeto que restou aprovado e recebeu sanção presidencial na véspera do início das convenções partidárias para as eleições de 2010. Na internet foram mais de 2,1 milhões de assinaturas.[9]

A alteração legislativa colocou a vida pregressa do candidato em primeiro plano nas eleições, como forma de também combater o crescente número de escândalos de corrupção no Poder Público nos últimos anos em todo o país. Essa foi uma das principais motivações que mobilizou os signatários do projeto e milhões de cidadãos que emprestaram suas assinaturas.

Vê-se que o objetivo constitucional da lei, somada à vontade dos cidadãos que a impulsionaram, ocasionou importante inovação jurídica com reflexo profundo no processo de escolha de mandatários para o exercício do poder, pois estabeleceu acurado filtro nas eleições ao vedar a candidatura de pessoas com vida pregressa desabonadora. Esse é o espírito da lei que veio de baixo com notável apoio popular, circunstância a qual seus intérpretes não podem ignorar.

Sucede que, para atribuir efetividade à nova lei, o legislador incluiu hipóteses expressas e objetivas de inelegibilidade que, para muitos candidatos, afrontam à Constituição Federal. Sustentou-se em vários tribunais eleitorais do país, em especial no Tribunal Superior Eleitoral e no Supremo Tribunal Federal, que a Lei da Ficha Limpa ofenderia vários princípios constitucionais, como os da Presunção de Inocência, Legalidade, Duplo Grau de Jurisdição etc.

Os tribunais, por seus juízes que votaram a favor da validade e constitucionalidade da nova lei, rebateram a tese dos candidatos chamados “fichas-sujas” sustentado que a Lei Complementar n. 135/2010 também se assenta em princípios constitucionais, como o da moralidade e o da probidade (arts. 14, §9º, 37, caput). Conclui-se, portanto, que a questão acarreta inevitavelmente o confronto de princípios da Constituição Federal, circunstância que reclama a ponderação dos valores que abarcam para apurar qual a solução deve ser prevalente.


6. PONDERAÇÃO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NA LEI DA FICHA LIMPA

Na Constituição Federal não deve haver conflito de normas, uma vez que a Lei Maior deve ser una e harmônica. Essa é máxima do princípio da unidade da Constituição, que estatui que a Constituição deve ser interpretada de modo a evitar contradições entre suas normas, especialmente entre os princípios. Como diz Christine Peter, “a Constituição é [...] um sistema normativo fundado em determinadas idéias que constituem um núcleo irredutível, condicionante da inteligência de seus intérpretes” (2005, p. 278).

Em relação às normas-regras, não há maiores dificuldades quanto à solução para eventuais conflitos, resolvendo-se através dos critérios clássicos de solução de conflitos normativos, a saber, hierárquico, cronológico e da especialidade.

A questão para o presente trabalho, entretanto, trata-se de colisão entre normas-princípios de estatura constitucional, em que a proposta de solução se encontra na ponderação judicial dos valores albergados pelos princípios envolvidos.

Luís Roberto Barroso esclarece do quê se trata exatamente a ponderação judicial de princípios:

Consiste em uma técnica de decisão jurídica aplicável a casos difíceis, em relação aos quais a subsunção se mostrou insuficiente, especialmente quando uma situação concreta dá ensejo à aplicação de normas de mesma hierarquia que indicam soluções diferenciadas (2003, p. 357).

Diante da colisão, o exegeta jurídico deve fazer a ponderação entre princípios contrapostos para perquirir qual deve ceder parcialmente em prestígio do outro, mediante o menor sacrifício possível. Será a dimensão do princípio que pesará na balança da ponderação.

Sobre o tema, cumpre mencionar a lição de Eros Roberto Grau, Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, para o qual:

Não há, no sistema, nenhuma norma a orientar o intérprete e o aplicador a propósito de qual dos princípios, no conflito entre eles estabelecido, deve ser privilegiado, qual o que deve ser desprezado. Em cada caso, pois, em cada situação, a dimensão do peso ou importância dos princípios há de ser ponderada (1990, p. 145).

Nesse viés, os princípios constitucionais relacionados com a Lei da Ficha Limpa que estão aparentemente em confronto devem ser ponderados. O método utilizado como regra para tal exercício é o juízo de proporcionalidade. Através dele é possível sopesar os princípios favoráveis ao candidato barrado pela Lei da Ficha Limpa com os que protegem a sociedade, como a moralidade para o exercício do mandato (§9º, art. 14, CF/88). A equação redundará no alcance e significado que a lei deve ter frente aos valores que deve prestigiar e irradiar para o caso concreto. Nesse norte acrescenta Carbonel ao citar Luís Prieto Sachís que:

Certamente no mundo do direito o resultado da ponderação não será necessariamente o equilíbrio entre tais interesses, razões ou normas; ao contrário, o habitual é que a ponderação desemboque no triunfo de algum deles no caso concreto (2003, p. 78).

Destarte, conclui-se que – no plano abstrato - o exegeta opera com princípios jurídicos de mesmo peso, de forma que se torna possível harmonizá-los no sistema normativo constitucional. Porém – no plano concreto - quando houver a colisão dos mesmos valores será indispensável a ponderação, pela qual a solução poderá levar na prevalência de um sobre o outro, sem que o relativizado seja totalmente suprimido.

A adoção da proporcionalidade como técnica interpretativa é mencionada pela doutrina e utilizada pelos tribunais, inclusive pela Suprema Corte, segundo é possível constatar no Habeas Corpus n. HC n. 93250, da lavra da eminente Ministra Ellen Gracie:

[...] Na contemporaneidade, não se reconhece a presença de direitos absolutos, mesmo de estatura de direitos fundamentais previstos no art. 5º, da Constituição Federal, e em textos de Tratados e Convenções Internacionais em matéria de direitos humanos. Os critérios e métodos da razoabilidade e da proporcionalidade se afiguram fundamentais neste contexto, de modo a não permitir que haja prevalência de determinado direito ou interesse sobre outro de igual ou maior estatura jurídico-valorativa. [...][10]

Santiago Guerra Filho também adota a proporcionalidade como regra de ponderação, qualificando-o como “princípio dos princípios.” Diz então que:

[...] para resolver o grande dilema da interpretação constitucional, representado pelo conflito entre princípios constitucionais, aos quais se deve igual obediência, por ser a mesma posição que ocupam na hierarquia normativa, preconiza-se o recurso a um ‘princípio dos princípios, o princípio da proporcionalidade, que determina a busca de uma ‘solução de compromisso’, na qual se respeita mais em determinada situação, um dos princípios em conflito, procurando desrespeitar o mínimo o(s) outro(s), e jamais lhe(s) faltando totalmente com o respeito, isto é, ferindo-lhe(s) seu ‘núcleo essencial’, onde se acha insculpida a dignidade humana (1999, p. 59).

Veja-se que é comum adotar a conclusão que não há princípios e direitos absolutos na Constituição, malgrado seja possível sustentar como raras exceções os princípios da dignidade da pessoa humana, e vedação de tortura e racismo, os quais teriam qualidade de absolutos. Celso de Mello, eminente Ministro da Suprema Corte, trata com clareza sobre a possibilidade da relativização de princípios:

Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas - e considerado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.[11]

Para melhor compreensão sobre a ponderação, Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcelos mencionam alguns exemplos de valores que podem ser sopesados:

a) a relativização da coisa julgada (colisão entre o princípio da segurança jurídica e valores tais como justiça); b) eficácia horizontal dos direitos fundamentais (aplicação das normas constitucionais às relações privadas); c) contraste entre a liberdade de expressão e o direito à informação com o direito à honra, à imagem e à privacidade (2003, p. 349).

Veja-se que já restou superada a interpretação e aplicação meramente formalista e positivista do direito. Hoje, permite-se ao julgador que avalie a justiça ou injustiça de sua decisão no caso concreto, ponderando princípios, o que não significa total liberdade ao magistrado, mas sim maior flexibilidade dentro dos limites normativos. A existência de ponderação não é uma “carta branca” para voluntarismos ou o exercício indiscriminado de ativismo judicial; jamais. A ponderação deve ser realizada sob o estrito trilho da convicção motivada do juiz, com basilares e sólidos preceitos jurídicos de sustentação lançados com base na teoria da argumentação.

Assim sendo, é clarividente que, se de um norte o magistrado deve buscar a ponderação de bens constitucionalmente tutelados, no caso concreto, de outra senda, não significa a permissão para voluntarismos e subjetivismos, porquanto a sua conclusão estará sujeita ao controle de racionalidade por meio da mencionada teoria da argumentação. Em suma, quer se dizer que na ponderação judicial de princípios a imparcialidade do intérprete é fundamental, pois caso contrário poderá sustentar a prevalência de um ou outro valor de acordo com suas convicções pessoais sem o devido amparo técnico-jurídico. Nesse sentido, bem pontua Carbonel ao mencionar Luiz Prieto Sachís, para o qual a ponderação deve ser a “ação de considerar imparcialmente os aspectos contrapostos de uma questão ou o equilíbrio entre o peso de duas coisas” (2003, p. 151). (grifo nosso)

Afirma ainda que:

isto não significa que a ponderação estimule um subjetivismo desembocado, nem que seja método vazio ou que conduza a qualquer conseqüência, pois se não dá garantia a uma resposta para todo caso prático, nos indica que há de fundamentar para resolver um conflito constitucional (2003, p. 151).

Destacando da mesma forma a importância da ponderação equilibrada e controlada, Márcio Paulo Cruz e Rogério Gomes Zuel sustentam que:

O Estado Democrático de Direito exige a controlabilidade das decisões, e tanto quanto possível a minimização das paixões e racionalidade do julgador. É por isso que se diz póspositivista a metódica por nós adotada. Não se ignora o texto, mas ele deve ser transcendido pela práxis do operador do direito (2007, p. 23).

Percebe-se que a interpretação do direito constitucional encontra-se intimamente ligada a valores e princípios e, por conseguinte, à possibilidade de colisão entre eles, razão que existe a técnica da ponderação pelo juízo de proporcionalidade, processo este hermenêutico, necessário e condizente com o direito constitucional aberto e moderno.

É nesse campo que será possível verificar a validade da Lei da Ficha Limpa, primordialmente sobre a vereda do Princípio da Moralidade, porquanto é prisma que fomenta aprofundado debate na comunidade jurídica.


7. A MORALIDADE COMO PRINCÍPIO VALIDADOR DA LEI DA FICHA LIMPA

A edição da Lei Complementar n. 135/2010, famigerada Lei da Ficha Limpa, veio atender o forte clamor popular, evidenciado notadamente por meio de mais de 1,6 milhões de assinaturas de cidadãos, que reclamava uma alternativa eficaz, substancial e ampla para barrar a candidatura de pessoas com vida pregressa desabonadora, incompatível para o exercício de funções públicas. A lei, portanto, veio ocupar o espaço constitucional previsto no §9º do art. 14 da Carta da República, o qual autorizou que o legislador infraconstitucional estabelecesse novas hipóteses de inelegibilidade, como forma de proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato com base na vida pregressa do candidato.

A aplicação da lei acabou sendo destinada especialmente à Justiça Eleitoral quando do julgamento dos registros de candidatura. Não se trata apenas de uma tarefa casual, mas sim uma obrigação, ante os valores que estão envolvidos. Como já destacava o ex-Ministro do TSE Cesar Asfor Rocha, a Justiça Eleitoral tem o poder-dever de velar pela aplicação dos preceitos constitucionais de proteção à probidade administrativa e à moralidade para o exercício do mandato, verbis:

[...] Os casos legais complementares de inelegibilidade do cidadão têm por escopo preservar valores democráticos altamente protegidos, sem cujo atendimento o próprio modo de vida democrático se tornará prejudicado ou mesmo inviável”, argumentando ainda que “[...] a Justiça Eleitoral tem o poder-dever de velar pela aplicação dos preceitos constitucionais de proteção à probidade administrativa e à moralidade para o exercício do mandato (art. 14, § 9º, CF/88).[12]

A observância do espírito da nova lei não pode ser ignorado, sendo obrigação do julgador observá-lo, inclusive porque trata de postura imposta pelo próprio ordenamento jurídico, já que na Lei de Introdução ao Código Civil, norma esta de sobre-direito que estabelece princípios maiores para a interpretação das leis em geral, está claro que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum” (art. 5º). Deixar de observar o desiderato da lei em casos como este, notadamente onde o clamor popular escancarou a motivação da norma, é ser infiel com as razões que levaram à sua edição, é ignorar os seus fins sociais. E nesse viés exsurge claro que o desiderato da norma é prestigiar o Princípio da Moralidade para o exercício do mandato eletivo, ainda que para isso seja necessária a complexa ponderação com outros valores também de estatura constitucional.

A ponderação que se visualiza, e tem como base o Princípio da Moralidade como base da Lei da Ficha Limpa, pode ocorrer com os principais princípios suscitados pelos candidatos, como os da Presunção de Inocência, Anualidade e Irretroativade da Lei. Para o presente trabalho interessa, contudo, ponderar a moralidade com o Princípio da Presunção de Inocência, já que nova lei considerou a vida pregressa do candidato em situações que sequer há trânsito em julgado das decisões.

Assim, busca-se balancear o Princípio da Moralidade com o clássico e relevante Princípio da Presunção de Inocência, a fim de peneirar uma solução substancial para a validade e constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa.

Não é difícil perceber que - na verdade - há um conflito de interesses, onde de um lado está, em suma, o direito de pleno exercício de direitos políticos do candidato, e, de outro lado, à proteção à moralidade para o exercício do mandato, com base na vida pregressa do candidato. Vale dizer, o pretenso candidato inelegível nos termos da nova lei quer ter seu registro deferido invocando que preenche os requisitos de elegibilidade, uma vez que as hipóteses de inelegibilidade da LC n. 135/2010 aparentemente não resistiriam ao princípio constitucional da Presunção de Inocência.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Antes de adentrar exatamente no balanceamento do Princípio da Presunção de Inocência, cumpre, a propósito do tema, notadamente em prestígio ao compromisso de bem informar neste trabalho acadêmico, tecer breves comentários sobre os princípios da Irretroatividade e da Anualidade em relação à Lei da Ficha Limpa.

Acerca do PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE, o Tribunal Superior Eleitoral se manifestou que a Lei da Ficha Limpa pode ser aplicada para as eleições de 2010, sem que isso represente retroação a atingir o ato jurídico perfeito e do direito adquirido, segundo consignou nas Consultas de números n. 1120 e 1147.[13] Para sustentar essa conclusão, a Corte Eleitoral entendeu que as condições de elegibilidade devem ser aferidas no momento do registro de candidatura, e que não há direito adquirido a regime jurídico de inelegibilidade anterior.

Do voto condutor do Ministro Hamilton Carvalhido, relator da Consulta n. 1120, extrai-se que, embora a lei considere fatos condenatórios do passado, isso não significa que seja retroativa. Segundo o Ministro, “seus termos não deixam dúvida quanto a alcançar situações anteriores ao início de sua vigência e, consequentemente, as eleições do presente ano, de 2010”. Acrescentou ainda:

[...] a LC n. 135/10 se aplica aos processos em tramitação, já julgados e em grau de recurso. Por isso mesmo, insisto, o art. 3º desta lei abriu a possibilidade de aditamento dos recursos antes da sua entrada em vigor. [...][14]

O Relator da Consulta n. 1147, Ministro Arnaldo Versiani, também se posicionou quanto à possibilidade de aplicação da lei a fatos anteriores, sem ter ressalvado que isso represente ofensa ao principio da irretroatividade da lei:

[...] essa questão não é nova e já foi decidida antes por este Tribunal, quando entrou em vigor a própria Lei Complementar n. 64/90, como se viu dos precedentes nos Recursos nos 8.818 e 9.797, segundo os quais a ‘inelegibilidade prevista no art. 1º, I, e, da Lei Complementar 64-90, aplica-se às eleições do corrente ano de 1990 e abrange sentenças criminais condenatórias anteriores à edição daquele diploma legal’, ‘ainda que o fato e a condenação sejam anteriores à vigência’.

[...] a LC n. 135/10, que alterou as causas de inelegibilidade, aplica-se aos processos em tramitação iniciados, ou mesmo já encerrados, antes de sua entrada em vigor, nos quais tenha sido imposta qualquer condenação a que se refere a nova lei.

Assim, para a maior Corte Eleitoral do país, não há ofensa a direito adquirido ou a ato jurídico perfeito, pois as causas de inelegibilidade, embora relacionadas a situações anteriores à edição da nova lei, devem ser aferidas a cada eleição, entendimento este existente em data precedente à Lei da Ficha Limpa, segundo consta no Agravo Regimental no Recurso Especial n. 32158, de 25/11/2008, da relatoria do eminente Ministro Eros Grau:[15]

As condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade devem ser aferidas a cada eleição, na conformidade das regras aplicáveis no pleito, não cabendo cogitar-se de coisa julgada, direito adquirido ou segurança jurídica.

O que deve ficar claro é que a nova lei é aplicada para o futuro, pois foi editada antes dos registros de candidatura. Não há assim falar em aplicação retroativa.  Nesse sentido, disse o Min. Hamilton Carvalhido na Consulta n. 1120:

Como já assinalado anteriormente, não se trata de retroatividade de norma eleitoral, mas, sim, de sua aplicação aos pedidos de registro de candidatura futuros, posteriores à sua entrada em vigor, não havendo que se perquirir de nenhum agravamento, pois a causa de inelegibilidade incide sobre a situação do candidato no momento de registro de candidatura. [...]

As situações passadas, as quais constituíram o regime jurídico anterior de inelegibilidade, não alcançaram a qualidade de direito adquirido. Logo a lei pode considerá-las para fins de inelegibilidade, pois - como vem se sustentando - inexiste direito adquirido a regime jurídico, conforme já decidiu o Pretório Excelso ao reconhecer a possibilidade de tributação dos inativos (Ações Diretas de Inconstitucionalidade números 3105/04 e 3128/04).[16]

Ausente o direito adquirido a regime jurídico, no regime de inelegibilidades também não haverá o aludido direito. Sobre o tema, disse o Min. Arnaldo Versiani na Consulta n. 1147:

As novas disposições legais atingirão igualmente a todos aqueles que, repito, ‘no momento da formalização do pedido de registro da candidatura’, incidirem em alguma causa de inelegibilidade, não se podendo cogitar de direito adquirido às causas de inelegibilidade anteriormente previstas. [...][17]

É imprescindível ressaltar, contudo, que a Lei da Ficha Limpa não pode impedir a candidatura dos candidatos que já cumpriram integralmente suas penas, ainda que não decorra mais de oito anos antes da edição da nova lei. Caso contrário, haveria dupla punição, indubitável bis in idem. Assim, por exemplo, um candidato declarado inelegível por três anos, por ter sido condenado por abuso do poder econômico praticado nas eleições de 2006, não incide na Lei da Ficha Limpa, pois sua inelegibilidade foi integralmente cumprida no ano de 2009. Porém, caso o mesmo candidato fosse condenado por captação ilícita de sufrágio (art. 41-A, Lei n. 9.504/97), também nas eleições de 2006, a Lei da Ficha Limpa lhe será aplicável, pois sua condenação não lhe impôs inelegibilidade; logo não há que falar em bis in idem neste caso.

O TSE já decidiu nesse sentido ao julgar em 01/10/2010 o Recurso Ordinário n. 788-47.2010.6.22.0000. Disse o eminente Ministro Arnaldo Versiani na decisão monocrática:[18]

[...] Assim, tendo sido o candidato condenado, por captação ilícita de sufrágio nas eleições de 2006, ele está inelegível pelo período de oito anos a contar da referida eleição, nos termos da alínea j, o que alcança o pleito de 2010.

Anoto que o Tribunal, inclusive, já se pronunciou em caso também alusivo à alínea j no julgamento do Recurso Ordinário nº 4336-27.2010.6.06.0000, concluído em 25.8.2010, do qual destaco a seguinte ementa:

‘Inelegibilidade. Condenação por captação ilícita de sufrágio.

Aplicam-se às eleições de 2010 as inelegibilidades introduzidas pela Lei Complementar nº 135/2010, porque não alteram o processo eleitoral, de acordo com o entendimento deste Tribunal na Consulta nº 1120-26.2010.6.00.0000 (rel. Min. Hamilton Carvalhido).

As inelegibilidades da Lei Complementar nº 135/2010 incidem de imediato sobre todas as hipóteses nela contempladas, ainda que os respectivos fatos ou condenações sejam anteriores à sua entrada em vigor, pois as causas de inelegibilidade devem ser aferidas no momento da formalização do pedido de registro da candidatura, não havendo, portanto, que se falar em retroatividade da lei.

Tendo sido condenado pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado, por captação ilícita de sufrágio, com a cassação de diploma, é inelegível o candidato pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição em que praticado o ilícito, nos termos da alínea j do inciso I do art. 1º da Lei Complementar nº 64/90, na redação dada pela Lei Complementar nº 135/2010. Grifo nosso.

Recurso ordinário a que se nega provimento.’

No que diz respeito à condenação por abuso de poder econômico, anoto que no julgamento do Recurso Ordinário nº 2544-32, relator Ministro Marco Aurélio, concluído na sessão de 30.9.2010, o Tribunal entendeu, por maioria e com a ressalva de meu ponto de vista, que, na hipótese de condenação pretérita em ação de investigação judicial que já tenha decorrido o prazo alusivo à inelegibilidade de três anos imposta ao candidato, não cabe reconhecer a inelegibilidade por oito anos do art. 1º, I, d, da LC nº 64/90, com a redação dada pela LC nº 135/2010.

Anoto que essa hipótese de inelegibilidade da alínea d não constitui inovação trazida pela LC nº 135/2010, mas teve sua redação apenas alterada, elevando-se o respectivo prazo de inelegibilidade - de três para oito anos - e estabelecendo sua caracterização também diante da existência de decisão proferida por órgão colegiado, e não mais apenas com o trânsito em julgado da decisão na AIJE.

Desse modo, tendo sido o candidato condenado, com base na antiga redação do art. 22, XIV, da LC nº 64/90, a três anos de inelegibilidade a partir da eleição de 2006, não há como se aplicar a nova redação da alínea d e concluir que o candidato está inelegível por oito anos.

Nesse ponto, afasto o fundamento alusivo à inelegibilidade do art. 1º, I, d, da LC nº 64/90, mantendo-se o indeferimento do pedido de registro, em virtude da causa de inelegibilidade decorrente da citada alínea j. (grifo nosso).

Para encerrar sobre o princípio, vale lembrar o voto do Ministro Pedro Acioli, quando do julgamento no TSE do Recurso n. 9.052, de 30.8.1990, ocasião que se pode concluir que o Princípio da Irretroatividade da Lei não é óbice às hipóteses de inelegibilidades inseridas pelo legislador, in verbis:

Bem se posiciona o recorrente, em suas razoes, quando assim expressa: O argumento de que a lei não pode retroagir para prejudicar, em matéria eleitoral, ou seja, que o art. 1°, I, ‘g’, da LC 64/90 não pode ser aplicada a fatos pretéritos à sua vigência, contrapõe-se a doutrina pátria, representada pelo festejado Caio Mário da Silva Pereira (in Instituições de Direito Civil - Vol I - Ed. Forense - 1971 - p. 11O):

‘As leis políticas, abrangendo as de natureza constitucional, eleitoral e administrativa, têm aplicação imediata e abarcam todas as situações individuais. Se uma lei nova declara que ficam sem efeito as inscrições eleitorais anteriores e determina que todo cidadão deve requerer novo título, aplica-se a todos, sem que ninguém possa opor à nova disposição a circunstancia de já se ter qualificado eleitor anteriormente.’ Com a devida vênia, as inelegibilidades representam ditames de interesse público, fundados nos objetivos superiores que são a moralidade e a probidade; à luz da atual construção doutrinária vigente os coletivos se sobrepõem aos interesses individuais, não ferindo o regramento constitucional.

Ademais o princípio da irretroatividade para prejudicar não é absoluto, como na lei penal. A se validar aquele entendimento, chegaríamos à absurda hipótese de deferir registro a candidato que até o dia 20 de maio passado, como titular de cargo público, cometeu os maiores desmandos administrativos (a data é a véspera da vigência da LC 64/90). Ora, o interesse público recomendou e fez incluir na legislação referida a penalização da inelegibilidade para os casos de improbidade, não restringindo a sua aplicabilidade a qualquer título; aliás, esse eg. TSE, respondendo às Consultas nº 11.136 e 11.173 (em 31.05.90) da mesma forma, não mencionou qualquer restrição à vigência dessa lei complementar. (fls. 114/115). [...]

Em relação ao PRINCÍPIO DA ANUALIDADE ou DA ANTERIORIDADE ELEITORAL, destaque-se inicialmente que também tem assento constitucional e, por tal razão, foi amplamente sustentado pelos candidatos e debatido nos tribunais eleitorais. Está previsto no art. 16 da Constituição Federal com a seguinte redação:

A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.

Segundo a tese levantada pelos candidatos barrados pela Lei da Ficha Limpa nos tribunais eleitorais nas Eleições de Gerais de 2010, a nova norma ofenderia o mencionado Principio da Anualidade. Sustentam que a lei alterou o processo eleitoral a menos de um ano das eleições, portanto em frontal ofensa à regra de segurança do art. 16 da Carta Democrática.

Quanto a esse aspecto, o eg. TSE também enfrentou o tema por ocasião da já referida Consulta n. 1120, na qual se assentou que a nova lei não atenta contra o Princípio da Anualidade. O fundamento para tanto é que inelegibilidade é norma de natureza material-eleitoral que não altera o processo eleitoral. Disse o e.Ministro Hamilton Carvalhido:[19]

Infere-se do caso em tela que as inovações trazidas pela Lei Complementar n. 135/2010 têm a natureza de norma eleitoral material e em nada se identificam com as do processo eleitoral, deixando de incidir, destarte, o óbice esposado no dispositivo constitucional.

A propósito, recorto do pronunciamento da ASESP (fls. 11-12):

“[...] O conceito de processo eleitoral tem com importante distinção realizada doutrina processualista, entre a materialidade do direito e sua instrumentalidade. Nesse sentido, Cintra, Grinover e Dinamarco preceituam que

O que distingue fundamentalmente direito material e direito processual é que este cuida das relações dos sujeitos processuais, da posição de cada um deles no processo, da forma de se proceder aos atos deste – sem nada dizer quanto ao bem da vida que é objeto do interesse primário das pessoas (o que entra na órbita do direito substancial).

Ressaltando o aspecto da instrumentalidade, ou seja, da distinção entre normas de direito eleitoral e normas de direito processual eleitoral, o e. Ministro Moreira Alves proferiu elucidativo voto, nos autos da ADIN n. 354/1990.

O Eminente Ministro consignou, em síntese, que o processo eleitoral abrange as normas instrumentais diretamente ligadas às eleições, desde a fase inicial, ou seja, da apresentação das candidaturas, até a fase final, com a da diplomação dos eleitos.

Transcreve-se os seguintes excertos de seu voto:

‘O que é certo é que processo eleitoral é expressão que não abarca, por mais amplo que seja o sentido que se lhe dê, todo o direito eleitoral, mas apenas o conjunto de atos que estão diretamente ligados às eleições.

[...]

A meu ver, e desde que processo eleitoral não se confunde com direito eleitoral, parte que é dele, deve-se entender aquela expressão não como abrangente de todas as normas que possam refletir-se direta ou indiretamente na série de atos necessários ao funcionamento das eleições por meio do sufrágio universal – o que constitui o conteúdo do direito eleitoral -, mas, sim, das normas instrumentais diretamente ligadas à eleições

[...]

Note-se, porém, que são apenas as normas instrumentais relativas às eleições, e não as normas materiais que a elas de alguma forma se prendam.

Se a Constituição pretendesse chegar a tanto não teria usado da expressão mais restrita que é ‘processo eleitoral’

[...]”. (grifos no original)

Com base em entendimento desta Corte em situação análoga à dos presentes autos, sobre a aplicabilidade de lei eleitoral, o Tribunal manifestou-se nos seguintes termos:

“- Inelegibilidade. Desincompatibilização. Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. Presidentes e demais membros das Diretorias dos Conselhos e Subseções. Vigência da Lei Complementar nº 64-90.

- Aplicação imediata do citado diploma (art. 1º, II, g), por se tratar da edição de lei complementar, exigida pela Constituição (art. 14, § 9º), sem configurar alteração do processo eleitoral, vedada pelo art. 16 da mesma Carta.

- Devem afastar-se de suas atividades, quatro meses antes do pleito, os ocupantes de cargo ou função de direção, nas entidades representativas de classe, de que trata a letra g do item II do art. 1º da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, entre as quais se compreende a O.A.B.” (Cta nº 11.173/DF, Relator Min. Octávio Gallotti, julgada em 31.5.90, DJ 9.7.90 – nosso o grifo) [...]

O Principio da Anualidade para o eg. TSE, assim, abarca apenas as inovações normativas que alterem “o processo eleitoral”, o que não é o caso das inovações trazidas com a Lei da Ficha Limpa.

Em reforço a essa conclusão, cumpre lembrar do julgamento do Recurso Extraordinário n. 129.392, de 16/04/93,[20] no qual o Supremo Tribunal Federal tratou do mesmo tema e consignou pela inaplicabilidade do Princípio da Anualidade ao regime de inelegibilidades. O Pretório Excelso entendeu que o regime de inelegibilidade não está afeto à regra do art. 16 da Constituição. Neste ano, o Supremo Tribunal Federal também voltou a discutir a questão e, embora os julgamentos estejam empatados em cinco a cinco, ante a falta de um ministro, a Corte entendeu que devem prevalecer as decisões judiciais do TSE que indeferiram os registros de candidatura com base na Lei da Ficha Limpa.[21]

Vê-se, assim, que tanto o princípio da irretroatividade da lei, como o Princípio da Anualidade, nenhum foi óbice para que os tribunais eleitorais deferissem os registros dos candidatos com vida pregressa objetivamente desabonadora nos termos da nova lei. Tem prevalecido a vontade do legislador infraconstitucional motivada pelo desiderato do constituinte insuflado no Princípio da Moralidade encartado no 9º, art. 14, da Carta da República.

Pois bem, voltando o estudo em relação ao PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, a Lei da Ficha Limpa supostamente o ofenderia porque previu hipóteses de inelegibilidade em que foram dispensadas o trânsito em julgado das decisões judiciais, bastando que houvesse decisão colegiada de órgão judicial. Citam-se os seguintes exemplos:

 [...] d) os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes;

e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes: [...]

Há evidente colisão entre o Princípio da Presunção de Inocência (art. 5º, LVII da Constituição) e o Princípio da Moralidade para o exercício do mandato (art. 14, § 9º, da Constituição).

Inicialmente, deve-se esclarecer que está claro que o Princípio da Moralidade para o exercício do mandato tem acepção mais ampla que o Princípio da Presunção de Inocência, já que este, enquanto protege em primeiro momento o cidadão - individualmente, aquele outro princípio protege a coletividade – o conjunto de indivíduos, bem como a própria representação popular, a coisa pública. Esse aspecto tem grande relevância para o presente trabalho, pois é nessa qualidade mais ampla do Princípio da Moralidade que está seu sobrepeso para ser ponderado com os demais princípios.

Sobre a presunção de inocência, cumpre lembrar o entendimento do Colendo TSE esposado nas recentes consultas de números 1120 e 1147 (2010), nas quais assentou que inelegibilidade não é a rigor uma pena, mas sim mera restrição temporária à elegibilidade.

Parece bem razoável a tese que a inelegibilidade não é exatamente pena, mas apenas restrição sui generis. Menciona-se que as hipóteses de inelegibilidades previstas na própria Constituição não possuem pena, até porque não há decisão judicial, como é o caso dos inalistáveis e analfabetos, que são inelegíveis, ou como é o caso das inelegibilidades reflexas, nas quais:

são inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição (§7º, art. 14).

O TSE, mesmo antes da edição a Lei da Ficha Limpa, já vinha assentando que inelegibilidade não era pena, conforme se pode depreender do Recurso n. 9.052, de 30.8.1990, de Relatoria do Ministro Pedro Acioli:[22]

[...] Ao contrário do que afirmado no voto condutor, a norma ínsita na LC 64/90, não tem caráter de norma penal, e sim, se reveste de norma de caráter de proteção à coletividade. Ela não retroage para punir, mas sim busca colocar ao seu jugo os desmandos e malbaratações de bens e erário público cometidos por administradores. Não tem o caráter de apená-los por tais, já que na esfera competente e própria e que responderão pelos mesmos; mas sim, resguardar o interesse público de ser, novamente submetido ao comando daquele que demonstrou anteriormente não ser a melhor indicação para o exercício do cargo.

A Suprema Corte também já se manifestou no mesmo sentido:

[...] inelegibilidade não constitui pena. Destarte, é possível a aplicação da lei de inelegibilidade, Lei Complementar nº 64, de 1990, a fatos ocorridos anteriormente a sua vigência. No acórdão 12.590, Rec. 9.7.97-PR, do T.S.E., o Relator, Ministro Sepúlveda Pertence, deixou expresso que a inelegibilidade não é pena, sendo-lhe impertinente o princípio da anterioridade da lei. [...][23]

Conquanto esse enfoque da “não pena” exaltado pelo TSE e pelo STF reforce a tese que sequer haveria afronta ao Princípio da Presunção de Inocência, prefere-se enfrentar a questão por outro flanco, o da ponderação com o Princípio da Moralidade, pois suplantaria a discussão se há ou não afronta ao importante postulado da inocência.

Para esse sopesamento, contudo, é indispensável que o intérprete não se limite a avaliar a questão sob um único norte. O princípio da proporcionalidade utilizado para a ponderação deve ser fracionado nos seus sub-princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, conforme de Robert Aléxy lembrada pelo Professor Luiz Henrique Urquhart Cademartori.

No caso do conflito entre princípios (ou colisão entre princípios, nos termos de Aléxy), diversamente das regras, este se dá no plano do seu “peso” valorativo que entre eles – os princípios colidentes - deverá ser ponderado e não no plano da validade, como no caso do conflito entre regras.

Considerados prima facie, os princípios são todos válidos e hierarquicamente iguais, sendo que a sua colisão somente ocorre nos casos concretos, quando um princípio limita a irradiação de efeitos do outro. Quando se depara com a colisão de princípios, o intérprete deverá valer-se de um critério hermenêutico de ponderação dos valores jusfundamentais que Aléxy denomina de “máxima da proporcionalidade” a qual é composta de três máximas parciais: adequação, que ao estabelecer a relação entre o meio empregado e o fim atingido, mede seus efeitos a partir de hipóteses comprovadas ou altamente prováveis; necessidade, que estabelece que a medida empregada (vale dizer, a norma) deve considerar, sempre, o meio mais benéfico ao destinatário, e proporcionalidade em sentido estrito que é a ponderação com base nos valores jusfundamentais propriamente ditos, os quais, na jurisprudência da Suprema Corte da Alemanha, encontram na noção de dignidade da pessoa humana uma espécie de meta-valor a orientar a interpretação dos demais direitos fundamentais, embora em Aléxy a sua interpretação seja diversa, pois é ancorada na análise de dois princípios colidentes, sejam quais forem, de igual hierarquia e tendo como critério de opção, em última instância, as decorrências sociais do caso concreto face aos dois critérios de adequação e necessidade, antes observados, que influirão na escolha do princípio que deva prevalecer naquela situação (2008, p. 1).

Com base em Aléxy, diz Olivar Coneglian (2009, p. 26) que, para o sub-princípio da adequação, o meio escolhido deve ser capaz para a obtenção do resultado almejado. Para o sub-princípio da necessidade, o meio deve ser o mais plausível e suave entre os disponíveis. Já para o princípio da proporcionalidade estrita, o meio deve revelar que o resultado obtido com a intervenção é proporcional à carga coactiva da mesma, ou seja, o meio deve ser o que trouxer mais vantagens como o menor sacrifício possível.

Com essas balizas, a relativização do Princípio da Presunção de Inocência diante do Princípio da Moralidade restou plenamente enquadrada nos três sub-princípios.

É adequada, porquanto sua relativização encorpa e torna hábil a efetividade da lei da Ficha Limpa, a qual visa impedir a candidatura de candidatos com vida pregressa desabonadora. O resultado pretendido pelo legislador é do contemplar a própria vontade constitucional de prestigiar a moralidade em detrimento da vida pregressa do candidato.

É necessária, porque a relativização da presunção de inocência é meio razoável, que não impede absolutamente que o candidato participe das eleições, uma vez que poderá obter o direito de ser candidato mediante liminar, conforme prevê o art. 3º da Lei Complementar n. 135/2010.

 É proporcional em sentido estrito, porque a mitigação imposta ao Princípio da Presunção de Inocência encontra arrimo no julgamento por um grupo de juízes, o que já lhe confere maior segurança jurídica que um julgamento judicial monocrático. Vale dizer, as vantagens na relativização pesam mais que as desvantagens, mormente porque se contemplará maior número de pessoas representados pela coletividade, ao invés de apenas um ou outro candidato.

Vale destacar que o Princípio da Presunção de Inocência já foi relativizado por diversas vezes pelos tribunais e pela própria legislação. Nesse aspecto bem assentou o Tribunal Regional Eleitoral de Rondônia no Acórdão n. 240, de 03/08/2010, de relatoria do eminente Desembargador Rowilson Teixeira:

Cumpre lembrar que a mitigação do princípio da presunção de inocência tem sido aceita pelos tribunais, especialmente pela Suprema Corte. São os casos das prisões cautelares (prisão preventiva, em flagrante, temporária). Todas são válidas mesmo diante da ausência de uma decisão judicial transitada em julgado. A finalidade é a cautela em favor da sociedade. Com a Lei da Ficha Limpa não foi diferente. O legislador concedeu mais uma medida de cautela à sociedade. Trata-se de relevante medida liminar, permitindo-se que seja afastada a elegibilidade de quem tem vida pregressa reprovável.

A restrição é razoável, até porque o cidadão nestas condições não estaria impedido de obter uma contra-cautela para participar das eleições (art. 3º da LC n. 135/10 c/c art. 26-C, LC n. 64/90) ou de alcançar a própria absolvição nos processos pendentes.

O argumento que essa inelegibilidade traria efeitos irreversíveis ao pretenso candidato, pois lhe tiraria tempo de mandato que não voltaria mais, não pode ser vista apenas sobre esse ponto de vista. Do outro lado, a sociedade também teria no cargo público o político por um tempo que não voltaria mais. A questão, portanto, não é de certeza de um lado e nem de outro, mas sim de razoabilidade, de peso de valores. Se o princípio da presunção de inocência tutela o indivíduo em face do Estado, quais valores tutelam a sociedade e o Estado em face do indivíduo, como bem questiona o Ministério Público à fl. 161? Vale dizer, a quem deve ser concedida a cautela, ao candidato (e seus eleitores que o apóiam a despeito de sua vida pregressa), ou ao restante do eleitorado, a sociedade, ao Estado, ao bem comum? Eis a inteligência da Lei da Ficha Limpa, que concede imperiosa medida cautelar ao povo.

Em razão desses fundamentos, é razoável que o Princípio da Presunção de Inocência, por ter menor peso e amplitude que o Princípio da Moralidade para o exercício do mandato, deve ser mitigado em prestígio deste e para que seja preservada a idoneidade da representação popular.

Em defesa do princípio democrático e presentes as hipóteses objetivas de inelegibilidade com base na vida pregressa do candidato, cabe ao Poder Judiciário fazer uso de seu poder contramajoritário e vedar a candidatura de pessoa sem condições morais que pretende desempenhar uma função política na democracia representativa, notadamente porque esta sequer dispõe de meios mais rápidos e eficazes para a revogação do mandato, a exemplo do recall, pelo qual o povo destitui o mandatário do poder.

É preciso ter presente que para se constituir a democracia representativa imperioso se faz que o cidadão – eleitor tenha diante de si a possibilidade real de escolher dentre vários candidatos aquele que detenha patrimônio moral compatível com a importância da função representativa que irá exercer.

Em assim sendo, não há razoabilidade no deferimento de registro de candidatura ao cidadão com vida pregressa desabonadora, conforme prevista objetivamente na nova lei, pois é indigno de se lançar como candidato e mais ainda de exercer mandato, ainda que sustente em seu favor o Princípio da Presunção de Inocência. Essa restrição à candidatura baseada na vida pregressa não adotada apenas pelo Brasil, mas também por vários países, principalmente os europeus, conforme já se demonstrou anteriormente.

Decerto, o deferimento de registro de candidato indigno de representar não interessa à sociedade, já enfastiada de se deparar com mandatários preocupados tão-somente com seus projetos particulares, os quais pouco ou nada têm de benefícios ao interesse comum e coletivo.

O noticiário diário revela que o povo, seja onde estiver, está – em regra – desamparado com a falta de compromisso real dos governantes, que se enlameiam com casos de corrupção. Os poderes Legislativo e Executivo estão desacreditados pela população diante da atual conjuntura de sucessivos escândalos envolvendo os aludidos representantes do povo. São por essas razões que o Judiciário deve evitar a ruína do modelo da representação popular, expurgando os aspirantes ao mandato com vida pregressa reprovável, ainda que para isso seja necessária a ponderação de interesses do candidato e da população.

A ponderação de princípios como forma de prestigiar a Lei da Ficha Limpa não viola a tripartição de funções do Poder Estatal, porquanto as novas hipóteses de inelegibilidade foram trazidas a lume pelo poder competente para tanto [legislativo], restando ao Poder Judiciário se valer do seu poder contramajoritário e indeferir o registro de candidatos objetivamente inelegíveis.  Interpretar a lei com esses parâmetros é imprescindível para a defesa da liberdade do voto, da moralidade administrativa para o exercício do mandato, da normalidade e legitimidade das eleições, dos valores democráticos (igualdade e liberdade) e dos princípios fundamentais da democracia (princípio da soberania popular e princípio da participação do povo no poder).

Nesse cenário, resta indubitável que a aplicação do Princípio da Moralidade não implicará necessariamente a exclusão do clássico e também importante Princípio da Presunção de Inocência. Um não excluirá o outro, mas tão-somente mitigará o outro, já que as normas constitucionais devem ser insufladas pela máxima efetividade possível. O Princípio da Presunção de Inocência é mitigado com o sacrifício mínimo, pois garante-se ao cidadão ao menos a decisão por órgão colegiado.

Enfim, a problemática do presente estudo se resume a indagação: deve prevalecer o Princípio da Moralidade para o exercício do mandato para impedir o registro de candidato com vida pregressa desabonadora mesmo que não haja trânsito em julgado da causa de inelegibilidade?

Durante todo o desenvolvimento deste trabalho quis se demonstrar que o Princípio da Moralidade tem preferência sobre os demais alegados em defesa dos candidatos.

O intérprete da norma tem que se manter firme nesse prisma para defender a moralidade para o exercício do mandato, e, por consequência, indeferir os registros de candidaturas daqueles que têm contra si decisões que, malgrado recorríveis, demonstram – aos olhos do legislador e do povo – a indignidade para exercer a função pública eletiva.

Sem embargos de opiniões em sentido contrário, basta verificar a história antiga ou recente do país para constatar que o candidato com vida pregressa nada ilibada, notadamente aquele condenado por atos de improbidade, corrupção, falsidades, dentre outros ilícitos, tende - em regra – a praticar as imoralidades inatas ao seu caráter já nas eleições, pois abusa do poder econômico e político para obter votos, isso quando não age para captar ilicitamente os votos.

A Lei da Ficha Limpa é da maior importância e pode representar a cisão na história pátria para um período de maior higidez na representação popular, pois possibilitará que o candidato indigno seja afastado do poder antes mesmo de assumi-lo, já que no exercício do poder tem se verificado inúmeros entraves e demora em cassá-los.

O que se sustenta, assim, é que os direitos coletivos, aqui como conseqüências de fundo do Princípio da Moralidade, devem se sobrepor aos direitos individuais do candidato. Decerto, a idoneidade moral deve ser uma condição de elegibilidade inafastável e o exercício dos direitos políticos deve ser entendido como meio de tutela da soberania popular e da democracia representativa e não como direito do candidato para participar das eleições. A moralidade é imperiosa nesse embate.

O interesse da coletividade com a higidez da representação popular deve prevalecer sobre o direito individual do candidato que pretende disputar mandato eletivo, mesmo tendo contra si condenações recorríveis. O povo não pode ser refém da duvidosa moralidade do candidato.

Por todas essas razões, a Lei da Ficha Limpa é válida, é constitucional, porque os princípios erguidos pelos candidatos em suas defesas não resistem à ponderação com o amplo e relevante Princípio da Moralidade para o exercício do mandato eletivo, para o qual – por vontade expressa do legislador constituinte – deve impedir a candidatura daqueles que tenham vida pregressa reprovável, nos termos da Lei de Inelegibilidade (LC n. 64/1990), com a nova redação atribuída pela famigerada Lei da Ficha Limpa (LC n. 135/2010).

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Edgard Manoel Azevedo Filho

Analista Judiciário Federal do Tribunal Regional Eleitoral de Rondônia desde 2005. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR (2004). Advogado Eleitoral e Tributarista entre 2004 e 2005. Especialista em Direito Público (Constitucional e Administrativo) pela UNIR (2007). Especialista em Direito Eleitoral e Direito Processual Eleitoral pela Faculdade de Ciências Humanas, Exatas e Letras de Rondônia – FARO (2011). Foi Assessor-Chefe da Presidência e da Corregedoria Regional Eleitoral e Parecerista da Diretoria Geral/TRE-RO. Twitter: @edgardmanoel. Email: [email protected].

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AZEVEDO FILHO, Edgard Manoel. A moralidade como princípio validador da Lei da Ficha Limpa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3938, 13 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27314. Acesso em: 19 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos